26/11/2017
Frei Henri des Roziers faleceu, na tarde deste domingo (26), na mesma Paris em
que nasceu há 87 anos. Advogado de formação e dominicano por vocação, tornouse
um dos maiores defensores dos direitos dos trabalhadores rurais e camponeses
na região de fronteira agrícola da Amazônia brasileira.
Esse homem magro, de fala mansa e andar compassado tornou-se referência no
acolhimento de vítimas do combate ao trabalho escravo e na denúncia desse crime
à Justiça e ao mundo. Mas também tornou-se um dos principais atores na luta pela
reforma agrária, contra a impunidade dos ricos detentores de terras e pelo
fim das arbitrariedades policiais.
O falecimento de Henri por causas naturais, e não provocada por algum dos muitos
que queriam sua morte, foi uma vitória, apesar de trazer um vazio a todos seus
amigos – grupo ao qual, orgulhosamente, me incluo. Pois nenhuma das várias
ameaças que recebeu e nenhuma das tentativas de assassinato que sofreu
conseguiram impedir seu trabalho.
Ou seja, o fato de Henri ter deixado a vida devido ao agravamento de seu estado de
saúde (ele havia sofrido acidentes vasculares cerebrais e tinha uma miopatia
congênita, que paralisava seus músculos) é uma humilhante derrota para o rosário
de grileiros, madeireiros ilegais, escravagistas e latifundiários inescrupulosos do
Pará e do Tocantins que planejaram seu fim.
Mas, ao mesmo tempo, não pode ser visto como uma vitória de nossa frágil
democracia. Porque ele sobreviveu apesar da incompetência do Estado brasileiro
em garantir a vida aos defensores de direitos humanos em uma região regada periodicamente com sangue.
Henri, descendente de uma nobre família francesa que escolheu lutar ao lado do
povo, incomodou muita gente. E fez com que a Amazônia fosse um lugar menos
injusto para se viver.
Formado em direito e com um PhD em Direito Comparado, pela Universidade de
Cambridge, Henri foi ordenado sacerdote em 1963 – cinco anos antes de participar
dos protestos de estudantes e trabalhadores em Maio de 1968 nas ruas da capital
francesa. Vem ao Brasil em dezembro de 1978, quatro anos após frei Tito ter
cometido suicídio durante seu exílio, na França, como consequência da tortura que
sofreu do delegado Sérgio Paranhos Fleury.
”Cheguei ao Brasil no fim de 1978. Em 1979, vim para cá acompanhando um agente
pastoral ao Bico do Papagaio [norte do atual Estado do Tocantins]. É terra sem lei.
Os posseiros totalmente oprimidos, pequenos, não tinham uma organização mínima.
Queriam minha expulsão do país.”
Durante anos, Henri foi a única assessoria jurídica dos trabalhadores nessa região.
A violência na região tem uma origem histórica. Durante a ditadura militar, o governo
federal concedeu uma série de subsídios financeiros a empresas para que se
instalassem na Amazônia, garantindo também infraestrutura e segurança aos seus
empreendimentos. Isso foi feito sem a ordenação da divisão das terras ou instalação
de serviços essenciais que garantissem os mesmos direitos de ocupação para
pequenos colonos e posseiros. Com isso, a Amazônia tornou-se uma região livre
para grandes empreendimentos, grandes fazendas e seus interesses, em que o
poder econômico faz a lei. Entre 1971 a 2006, foram registrados no Estado do Pará,
814 assassinatos no campo, dos quais a grande maioria permaneceu sem
apuração.
Frei Henri des Roziers chegou a andar com proteção policial 24 horas por dia. No
dia 18 de outubro de 2007, chegaram informações à Polícia Militar no município de
Xinguara, Sul do Pará, que pistoleiros haviam contratados para assassinar Henri por
R$ 50 mil.
Em 1990, Henri planejou mudar-se para a América Central a fim de desenvolver por
lá o mesmo trabalho que fazia na Amazônia. Mas acabou se estabelecendo no
município de Rio Maria (PA) a fim de ajudar o padre Ricardo Rezende após o
assassinato, a tiros, de Expedido Ribeiro de Souza, presidente do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Rio Maria.
”Henri é uma das figuras singulares, únicas, que têm a vida marcada pelo
compromisso com os mais pobres. Teve uma atuação marcante pela proteção dos
migrantes, na França nos anos 60. E durante 35 anos, lutou pelos camponeses e os
trabalhadores em uma região que matava e escravizava”, lembra Ricardo Rezende.
Em uma de nossas conversas, ele me contou sobre essa época: ”Acompanhamos,
por exemplo, toda a apuração, o processo e o julgamento dos assassinos dos
sindicalistas da região de Rio Maria nos anos 80 e 90. Os fazendeiros resolveram
acabar com o sindicato dos trabalhadores de Rio Maria e assassinaram uma série
de presidentes. Nessa época, era um dos sindicatos mais atuantes da região. Foi
assassinado o primeiro presidente em 1985. Depois, foi a vez de um dos líderes em
90 e seus dois filhos, que eram do sindicato, o terceiro saiu ferido. Foi assassinado,
em 90, um diretor. E, em 91, o sucessor dele, além de baleados outros. Passei da
região do Bico-do-Papagaio para aqui [Xinguara] a fim de ajudar na apuração
desses crimes. Tem dado um trabalho enorme até hoje, mas conseguimos que todos
os pistoleiros fossem a júri. Vários foram condenados. Todos fugiram.”
A Teologia da Libertação, linha da igreja católica que acredita que a alma só será
livre se o corpo também for, tem sido uma pedra no sapato de quem lucra com a
exploração do seu semelhante na periferia do mundo. Na prática, esses religiosos
católicos realizam a fé que muitos não querem ver retirada do livro sagrado do
cristianismo. Para traduzir, nada como uma citação atribuída
(https://oglobo.globo.com/sociedade/religiao/o-santo-dom-helder-camara-15951531)
ao já falecido Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, que lutou contra a
ditadura e esteve sempre ao lado dos mais pobres: “Se falo dos famintos, todos me
chamam de cristão, mas se falo das causas da fome, me chamam de comunista”.
Henri recebeu a condecoração de cavalheiro da Legião de Honra, do governo
francês, em 1994, um dos tantos prêmios que ele recebeu. Após um dos AVCs que
sofreu, foi transferido, a contragosto, para um hospital particular em São Paulo.
Lembro do seu incômodo por estar lá. Achava que estava sendo mimado. Queria
estar no mesmo hospital usado pela população com a qual convivia diariamente.
Não por populismo ou a fim de provar algo para ninguém, ele não precisava. Mas
porque sentia que aquele não era seu lugar.
Em 2013, profundamente debilitado pela doença, Henri voltou para sua terra natal e
permaneceu no convento de Saint-Jacques até sua morte.
Frei Xavier Plassat, francês como Henri, coordena a campanha nacional da CPT
para o combate ao trabalho escravo e está há décadas no Brasil. Foi ele quem me
trouxe a notícia de sua morte. Desabafou: ”Henri tinha como mestre Bartolomeu de
las Casas, dominicano e defensor dos indígenas escravizados, que viveu no século
16. Tinha dele a paixão irredutível, incansável, eficaz. Paixão e compaixão. Uma
pessoa que sabia chorar de indignação e denunciar os potentados, sem medo. Dele,
é o Deus do canto do Magnificat: ‘Derrubou do trono os poderosos e exaltou os
humildes. Saciou de bens os indigentes e despediu de mãos vazias os ricos’. Henri
foi quem me conduziu aqui no Brasil. Grato para sempre, Henri, meu irmão”.
Ao receber o Prêmio Internacional de Direitos Humanos Ludovic Trarieux, em 2005,
mesmo reconhecimento dado a Nelson Mandela, ele afirmou: ”Neste mundo
globalizado em que vivemos a loucura do consumo, neste mundo da injustiça e da
desigualdade, da destruição da criação e, consequentemente, da vida, é essencial
retomarmos consciência dos valores fundamentais da existência, da diversidade, da
solidariedade, da relação com a natureza, de uma outra relação entre Norte e Sul,
para podermos embasar a esperança de que um outro mundo é possível e nos
motivarmos a construí-lo”.
Uma pessoa assim não morre. Eu que não tenho a mesma fé de Henri, acredito que
ele sim atingiu a imortalidade. Viverá para sempre como um dos capítulos mais
bonitos da história brasileira.