22/06/2020
A rapper Katú Mirim é bissexual e buscou parentes indígenas LGBTs para formar coletivoImagem: Reprodução/Instagram
A rapper Katú Mirim participava de uma parada do orgulho LGBT em São Paulo, uma das maiores do mundo, quando foi abordada por passantes surpresos com os adornos indígenas que usava. “Nossa, que da hora. Não sabia que tinha índio LGBT!”, disse um deles. Aqueles não haviam sido os primeiros, nem seriam os últimos a não perceberem a ausência de indígenas em grupos e eventos LGBTs. Vivendo uma exclusão dupla, são os próprios indígenas LGBTs que estão se organizando em coletivos para participarem das discussões em grupos LGBTs; cujo mês do orgulho é celebrado em junho.
Ao mesmo tempo, eles lideram outro movimento para serem inseridos na pauta do movimento indígena, que é tradicionalmente empenhado na luta por direitos territoriais. Instituições indígenas abriram as portas para acolher e dar aos LGBTs uma vida mais plena com a própria identidade e sexualidade.
Katú é bissexual e se conectou a outros indígenas pelo país para formar há um ano o Tibira, hoje propagado a mais de 15 mil seguidores no Instagram pela página “Indígenas LGBTQ”. Encontrá-los não foi tarefa simples, e a reunião só foi possível pelas redes sociais. Muitas aldeias não possuem sequer temos para definir a homossexualidade ou orientações diversas. Em outras, a orientação sexual pode ser aceita, velada ou mesmo um alvo de homofobia.
“A gente não quer ir contra o movimento LGBT, a gente quer inclusão e incluir os povos em nossas terras” Katú Mirim, rapper.
A rapper já havia entendido a própria sexualidade por ter crescido na cidade, em Campo Limpo Paulista. O assunto, porém, não era conversado com os pais adotivos, que eram evangélicos. Para eles, as meninas que ela levava em casa eram apenas amigas.
Por volta dos 13 anos, Katú soube pelo pai biológico que ela pertencia ao povo bororo-boe, no Mato Grosso. Após buscá-los na internet, a artista encontrou Neimar Kiga, 23. O parente a levou para conhecer a informação sobre o pai de Katú. Na escola na cidade, uma professora disse a Katú que eles haviam sido “extintos”. Além dos bororo-boe, Katú foi bem recebida por guaranis que habitam a região norte da cidade de São Paulo, mesmo quando afirmou ser bissexual e não-monogâmica. A recepção, diz ela, é bem diferente da recebida pela população não indígena. “Já escutei que não bastava ser índia, ainda tinha que ser sapatão”, conta. “Já aconteceu de pessoas tirarem fotografias enquanto estava de mão dada com outra garota”.
Controle da sexualidade como dominação O designer Neimar Boe, que apresentou Katú ao povo Bororo no Mato Grosso, conta que para ele, gay, a aceitação na aldeia demorou a acontecer o que o fez crescer envolto por conflitos existenciais.
Neimar Kiga Boe é LGBT e um dos criadores do coletivo para discutir inclusão indígena no movimento Imagem: Reprodução .
Imagem: Divulgação (Fotos: Maria Gabriela Zanotti e Daniel Sakimoto/Perudá).
Segundo o jovem, LGBTs indígenas já habitavam a aldeia onde nasceu, mas nem todos eram afeminados como ele. No passado, relata que a cultura de seu povo respeitava performances mais diversas de gênero e acreditava que transgêneros, por exemplo, eram pessoas tratadas de maneira semelhante aos povos norte-americanos, com dois espíritos — um masculino, um feminino — permitidas a praticar atividades que não eram relegadas aos homens e mulheres. Com a colonização, o processo mudou. “Foi um processo lento de aceitação. Com o tempo, fui aceito e vivemos em harmonia. Creio que entenderam que não dava para mudar quem eu sou”, diz.
O antropólogo Estevão R. Fernandes é autor do livro “Existe índio gay?: a colonização da sexualidade indígena”, que analisa como os colonizadores incluíram o controle da sexualidade para tentar dominar os povos originários.
Segundo o especialista, os tupinambás foram particularmente massacrados devido à sexualidade, no território que conhecemos hoje como Maranhão. A morte é considerada o primeiro registro de homofobia no Brasil.
O caso foi relatado em um diário escrito por um francês viajante. Em 1614, um índio teve o corpo estraçalhado por um canhão da Igreja por ser homossexual, ou um “Tibira”. Há ainda textos falando sobre como, entre os tupinambás, havia muitos homens indígenas que eram “no exterior mais homem”, mas tinham “voz de mulher” e cometiam os pecados mais “sujos e desonestos”.
Em 1755, o Marquês de Pombal defendeu a criação de diretórios indígenas para controlar os povos originários. Nos planos dele, as aldeias receberiam cartórios, delegacias, escolas, seria proibido ficar nu e falar idiomas nativos. A ideia era acabar com a noção de coletividade dos povos nativos e inserir a individualidade europeia.
Com isso, os planos seriam controlar o povo indígena e facilitar a vigilância. Embora haja dificuldades para encontrar materiais históricos sem o viés do colonizador, acredita-se que até então a sexualidade dos índios era um comportamento físico reconhecido, mas não repudiado ou debatido publicamente como uma questão danosa. Para o especialista, é bem capaz que não houvesse conceito filosófico, moral ou metafísico para o indígena sobre sexualidade.
“A partir da intervenção moral, há um sistema em que o poder do colonizador faz sentido. O colonizador transforma-se na figura que tem a autoridade maior para dizer a todos o que é realmente certo e o que é errado”, explica o antropólogo. “Quando você nomeia um comportamento, você também o domina”.
Contra o exotismo e a hiperssexualização Até hoje há povos indígenas que utilizam termos homofóbicos para se referirem a índios LGBTs. Em outras aldeias, onde homossexuais e transgêneros são mais reconhecidos e respeitados, pode ser difícil identificar a própria sexualidade usando os termos defendidos pelo homem branco. E não há problema nisso.
Para a professora Tanaíra Sobrinho, 28, lésbica do povo Terena, não há sentido em definir a sexualidade indígena por terminologias ocidentais, afinal são 300 povos que habitam o território brasileiro com suas próprias visões sobre diversidade sexual.
Para ela, o termo “LGBT” foi escolhido como um guarda-chuva, um atalho para nomear mais uma opressão sofrida por indígenas e não exatamente sobre sexualidade. Hoje, indígenas sofrem homofobia e racismo enquanto estudam em grandes universidades e no mercado de trabalho urbano. Segundo o IBGE, cerca de 30% dos indígenas vivem nas cidades.
Danilo Tupiniquim em campanha contra homofobia Imagem: Reprodução/Instagram
A ideia também foi descolonizar o conceito LGBT tradicional e retirar a aura exótica que ainda recai sobre povos indígenas, o que inclui até a hipersexualização pelo homem branco. Em um dos comentários que mais chocaram os administradores do coletivo foi o de uma mulher branca que queria ajudá-los a “perpetuar a raça indígena” e pedia doações de sêmen indígena.
“Há uma intersecção das discriminações”, explica Tanaíra. “Nós criamos esses mecanismos conjuntos em coletivos para criar meios de cuidar da saúde mental, acolhimento e sensibilização dos nossos parentes indígenas”, explica.
Em 2017, o Acampamento Terra Livre, maior encontro indígena do país, promoveu uma mesa sobre o assunto. No Encontro Nacional de Estudantes Indígenas (Enei) do mesmo ano, foi criada uma roda de conversa sobre gênero e orientação sexual. Era o começo da discussão mais aberta sobre o tema.
Para Danilo Tupiniquim, do Espírito Santo e atualmente estudante de Ciência Política na Universidade de Brasília, uma forma eficiente de ajudar na pauta é simples: basta convidar indígenas para palestras, campanhas publicitárias e discussões sobre a experiência LGBT ou sobre qualquer outro assunto. “Nenhum antropólogo vai contar sobre nossas experiências melhor do que nós mesmos”, diz.