19/12/2018
Fonte:http://rioonwatch.org.br/?p=38032A Rede Favela Sustentável (RFS) é um projeto da Comunidades Catalisadoras (ComCat)* desenhado para construir redes de solidariedade, dar visibilidade, e desenvolver ações conjuntas que apoiem a expansão de iniciativas comunitárias que fortalecem a sustentabilidade ambiental e a resiliência social em favelas de toda a região metropolitana do Rio de Janeiro. O projeto começou em 2012 com a produção do filme Favela como Modelo Sustentável, tendo continuidade em 2017, quando foram mapeadas 111 iniciativas sustentáveis e foi publicado um relatório final que analisa os resultados.
Em 2018 o projeto realizou uma série de intercâmbios entre oito das mais duradouras e estabelecidas iniciativas que foram mapeadas na Rede Favela Sustentável (uma delas é o tema desta matéria), e em seguida foi realizado, no dia 10 de novembro, um dia inteiro de intercâmbio com toda a Rede Favela Sustentável. As oito iniciativas participantes dos intercâmbios, em campo, apresentadas nesta série incluem seis iniciativas comunitárias, sendo elas: a Cooperativa Vale Encantado no Alto da Boa Vista, o Ecco Vida em Honório Gurgel, o Verdejar no Engenho da Rainha e Complexo do Alemão, o Quilombo do Camorim em Jacarepaguá, o ReciclAção no Morro dos Prazeres, e a Eco Rede do Alfazendo na Cidade de Deus. Além disso, os integrantes dos intercâmbios visitaram duas iniciativas com foco além das favelas, com vasta experiência em sustentabilidade, sendo elas: a Onda Verde em Nova Iguaçu e o Ecomuseu de Sepetiba. Os intercâmbios têm apoio da Fundação Heinrich Böll Brasil.
Assista ao vídeo que acompanha os intercâmbios apresentados nesta série clicando aqui.
“Luta, força e resistência” foram as palavras que Adilson Almeida usou para apresentar a Rede Favela Sustentável (RFS) à sua comunidade.
Fundador e presidente da Associação Cultural Quilombo do Camorim (ACUQCA), Adilson nasceu e cresceu no Quilombo do Camorim, uma comunidade de descendentes de africanos escravizados fugidos cuja história remonta aos anos 1600, e que faz divisa com o Parque Estadual Pedra Branca. Adilson e seus co-diretores criaram a ACUQCA para proteger e promover as riquezas históricas, culturais e ambientais do quilombo, localizado na Zona Oestedo Rio de Janeiro.
Adilson contou aos membros da RFS, durante a visita do dia 20 de outubro, que a ACUQCA teve início quando ele começou a dar aula de capoeira para crianças locais, em 2000. Ele explicou que os jovens interessados em aprender capoeira imediatamente queriam aprender artes marciais. Contudo, Adilson desejava que os participantes primeiro entendessem a história da capoeira como uma forma de dança e de treinamento criada por escravos. “Quando você conhece a sua própria origem, no momento que você conhece seu próprio território, e a sua história, você consegue fazer um trabalho legal.”
Conforme as aulas de capoeira de Adilson tiveram continuidade, elas se expandiram para incluir uma perspectiva mais ampla da cultura afro-brasileira. A demanda por atividades cresceu, levando Adilson e outros membros da comunidade a registrarem a ACUQCA como “uma instituição representativa do quilombo”, em 2003.
ACUQCA está no processo de titulação de terras com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) desde 2004. Em 2014, a Fundação Cultural Palmares certificou a comunidade como um quilombo, um primeiro passo necessário no processo de titulação e uma conquista que Adilson considera ser uma das maiores vitórias da ACUQCA.
Hoje, a ACUQCA sedia atividades culturais que incluem a regular feijoada e rodas de jongo, além de sua horta orgânica e projetos de agrofloresta. “Tudo isso, meus antepassados já faziam”, explica Adilson, enraizando essas práticas na história do quilombo. A organização também treina jovens da comunidade para serem guias turísticos, abrindo as portas para que estudantes e outros moradores do Rio visitem e aprendam sobre o quilombo. Além disso, o grupo está no processo de planejamento de um espaço físico que servirá como o Centro Comunitário do Quilombo do Camorim.
Adilson explicou que levaria dias para contar toda a história de seus ancestrais e que, tecnicamente, todos os 12.500 hectares do Parque Estadual Pedra Branca poderiam ser considerados território quilombola: “Aqui foi onde meus ancestrais caminharam, viveram, peregrinaram. Qualquer trilha que eles tenham feito, nós podemos marcar [como território quilombola]. Reconhecendo a imensa dificuldade de tal empreitada, a ACUQCA reivindicou uma fração da terra na área “para pelo menos manter a história [do quilombo] preservada”.
Para compartilhar a história do Quilombo do Camorim com os participantes do intercâmbio da RFS, Adilson levou o grupo para uma caminhada por alguns dos locais mais importantes para a comunidade. “Dentro dessa questão histórica nossa, existe uma riqueza ambiental muito grande—uma biodiversidade que não é encontrada em lugar nenhum”, explicou. No início da trilha, Adilson parou para discutir sobre a visível ameaça do condomínio que se elevou diante do quilombo. Construído em 2015 para abrigar a mídia internacional para as Olimpíadas de 2016 e atualmente funcionando como complexo residencial, a construção do condomínio devastou uma área com profunda significância cultural e histórica para a comunidade, incluindo, pelas estimativas de Adilson, aproximadamente 1.000 árvores nativas.
Inconsolável pela perda, Adilson ainda está lidando com as consequências. Moradores do condomínio têm reclamado dos eventos culturais sediados no Quilombo do Camorim e o abastecimento de água da comunidade encontra-se severamente limitado desde seu redirecionamento para o complexo. Adilson direcionou os membros da RFS para uma área aberta que serve como espaço comunitário para os moradores do quilombo. Ele ressaltou que nas proximidades—onde o condomínio foi construído—o campo de futebol, a churrasqueira e o espaço para reuniões que a ACUQCA havia criado foram destruídos. “Se eles não tivessem feito isso, a gente praticamente teria um centro cultural”, observou Adilson.
Apesar desses desafios, a ACUQCA tem trabalhado para tirar o melhor da situação. A ACUQCA tem sediado encontros, almoços e mutirões para limpar e manter o espaço comunitário aberto, e membros da comunidade estão no processo de planejamento de um centro comunitário. Adilson também tentou melhorar as relações do quilombo com moradores do condomínio vizinho, convidando-os para participar de eventos e explicando a significância da comunidade. Falando sobre um evento da ACUQCA em 2017 ao qual compareceram trinta pessoas do condomínio, Adilson disse: “Então nesse dia, eu consegui conversar um pouco com eles e passar realmente a questão da historia do local e a importância”.
Caminhando pela trilha, o grupo da RFS deparou-se com um muro de tijolos no meio da floresta. Os integrantes perguntaram a Adilson de como surgiu aquilo, ao que ele respondeu: “A construção do condomínio não só derrubou as árvores, e destruiu o [nosso] trabalho arqueológico, de ancestralidade. Mas quando terminaram, o que fizeram? ‘Vou fazer um muro, para os animais não invadir o condomínio’”. Apontando para o distúrbio ambiental causado pela construção, membros da RFS responderam, questionando: “Quem está invadindo o espaço de quem?” Adilson assegurou ao grupo que a comunidade tem resistido ativamente: “Tivemos a derrubada do muro de Berlin, então aqui vai ter a derrubada do muro do Quilombo”, disse ele. Para simbolicamente desconstruir o muro, Almeida espera “fazer um trabalho histórico-ambiental em toda a extensão naquele muro, com grafite—praticamente um museu, retratando [a história] com a arte do grafite. Então, vamos tentar buscar as fotos dos africanos escravizados trazidos para o Brasil”.
Continuando através da floresta, o grupo da RFS chegou a um refúgio para escravos fugidos que historicamente habitaram o quilombo: uma gruta com dois espaços abertos onde descansavam, preparavam comida e abrigavam outros escravos resgatados. Atualmente, Adilson explicou que a ACUQCA trabalha para manter a área asseada, limitando ou limpando oferendas religiosas que possam não ser biodegradáveis e que são deixadas nas trilhas ou no rio por praticantes de religiões afro-brasileiras. Esse desafio despertou uma conversa com integrantes da RFS que têm se deparado com desafios semelhantes. Por exemplo, Aline Barcellos, do Ecomuseu de Sepetiba, partilhou a luta de seu grupo para limitar os tipos de materiais que podem ser levados a espaços abertos—como cachoeiras locais—e para assegurar que os grupos deixem o local limpo ao fim de suas visitas. Aline explicou que eles tiveram de proibir o acesso público a algumas áreas devido a esses problemas. Adilson concordou, enfatizando a importância de assegurar que esses itens não biodegradáveis e materiais inflamáveis não sejam deixados em marcos naturais. De forma mais importante, ele identificou a necessidade de um diálogo inter-religioso a fim de preservar a natureza ao passo que as práticas espirituais de diferentes grupos sejam respeitadas.
Em um espaço fechado localizado numa curta subida da área aberta da gruta, Adilson pediu ao grupo uma pausa para um momento de meditação. “Fechem seus olhos e sintam a energia deste espaço”, ele instruiu. Adilson explicou que em “vários outros quilombos, eu já senti aquela energia muito pesada de sofrimento… Aqui, não vejo aquela sensação negativa, energias ruins. Aqui sempre tem uma energia boa”. Refletindo sobre os desafios que a ACUQCA tem enfrentado nos últimos anos, Adilson explicou: “É muito correria… me dá vontade de desistir… mas a ancestralidade fala mais alto”. Refletindo sobre a importância da natureza para se centrar, Adilson disse que ele visita regularmente as cachoeiras na floresta e medita. Em suas palavras: “A natureza me dá força”.
Retornando das grutas elevadas e rios sinuosos mais adentro na floresta, a parada final da caminhada foi em um local de escavação, onde a doutoranda em arqueologia Sílvia Peixoto ajudou a ACUQCA a encontrar fragmentos de cerâmica, ferramentas e pratos usados pelos africanos escravizados e por povos indígenas nos séculos XVI e XVII. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) certificou o local como um lugar de significância cultural e histórica, um desdobramento que Adilson tem confiança que irá ajudar a contar a história de sua comunidade—”uma rica história, não contada”—ao resto do mundo.
O grupo da RFS retornou da excursão no território do quilombo pronta para se banquetear na feijoada que os aguardava para o almoço. A feijoada, servida com arroz, couve e pedaços frescos de laranja, é a especialidade do Camorim, regularmente preparados pela ACUQCA para eventos públicos. Antes do almoço, contudo, faltava mais uma atividade. Com a chegada do grupo, membros da ACUQCA se reuniram para uma roda de jongo, uma dança tradicional afro-brasileira que escravos africanos usavam outrora para comunicar planos de fuga e até para zombar de donos de escravos através de letras com duplo sentido. Enquanto os membros da RFS aprendiam o significado das letras de jongo e os passos da dança, membros da ACUQCA mantinham a batida em um conjunto de tambores africanos.
Ao passo que membros da RFS e da ACUQCA partilhavam histórias durante o almoço e se preparavam para a visita da tarde à Eco Rede do Alfazendo, na Cidade de Deus, os pensamentos de despedida de Adilson permaneceram: “Lutar sempre, resistir e nunca desistir”.