Ainda não há uma previsão clara sobre quando os krenakes voltarão a usar o rio que corta suas terras como faziam antes da tragédia. E ainda há muitas dúvidas sobre as medidas mais apropriadas e de longo prazo para indenizar e compensar os indígenas. Por enquanto, a ação emergencial de maior impacto – e que suscita controvérsia – tem sido a distribuição de dinheiro aos índios.
Os krenakes vivem em sete aldeias em terras demarcadas no território do município mineiro de Resplendor, divisa com o Espírito Santo. São 126 famílias (ou 135, dependendo da contagem) e 436 pessoas. A situação é tratada como caso à parte em meio aos milhares de afetados pelo desastre.
Com medo de beber água do Doce, os índios consomem água mineral que vem sendo fornecida pela mineradora Vale, uma das proprietárias da Samarco. Garrafas pet são distribuídas em abundância por caminhões nas aldeias diariamente. Por ironia, há uma marca local de água mineral chamada Krenak explorada por um empresa. A Vale também envia caminhões-pipa às famílias indígenas. Além disso, faz manutenção das estradas de terra na área dos krenakes e fornece ração, sal e silagem para o gado mantido por alguns deles. São medidas que fazem parte do acordo firmado pela empresa e lideranças indígenas logo depois do rompimento da barragem da Fundão, em Mariana (MG), 400 km rio acima de Resplendor.
O coração desse acordo é o pagamento mensal de nove salários mínimos (R$ 8.433), por mês, feito para cada família krenak. A Vale informou que, desde a assinatura do acordo até junho deste ano, transferiu R$ 21 milhões para as famílias e que gastou mais cerca de R$ 8 milhões com aporte de insumos e estruturas nas terras deles. As medidas, diz a Vale, ainda têm caráter provisório.
Os krenakes são os únicos entre os atingidos que recebem ajuda diretamente da Vale. Todos os demais, em Minas e Espírito Santo, são atendidos pela Fundação Renova, mantida pela Vale e pela BHP Billiton, a outra proprietária da Samarco. A Renova tem executivos e técnicos próprios e foi criada por força de um termo entre empresas e o governo. Os índios dizem que confiam mais nas tratativas com a Vale; integrantes da Renova nem têm acesso às terras indígenas.
Antes do desastre, os krenakes não só pescavam, nadavam e bebiam água do Doce. Nas margens, caçavam capivara e paca e colhiam plantas medicinais. O rio, que chamam de Uatu, era ponto de encontro das famílias e de brincadeiras com os filhos. O Doce tinha para os índios um caráter simbólico, associado a rituais antigos e místicos. Tudo isso, dizem, acabou.
“A gente não tem mais água boa. Ninguém vai mais no rio. Eu, que sou índia pura, sinto muita falta.
Minha mãe me criou com essa água do rio”, disse Laurita Krenak, uma velha índia que fala sobre o caso em tom de lamento.
Para Rondon Krenak, filho de Laurita e cacique da aldeia, a lembrança dos peixes morrendo no rio avermelhado de minério faz com que os índios continuem com receio. “Nem urubu comia os peixes. Os cachorros que comeram aqueles peixes, morreram. No começo, o cheiro era tão forte que não conseguíamos nem chegar na beira do rio. Parecia uma pessoa morta”, descreve o cacique, de 47 anos.
A reportagem do Valor visitou as duas aldeias: krenak e takruk. “O rio era um parente nosso”, diz Junaíndia Krenak, de 34 anos, da aldeia takruk, usando uma figura de linguagem corriqueira entre os indígenas para descrever o rio Doce.
“O orgulho que eles tinham de dizer ‘eu moro no rio Doce’ sumiu. Era um rio poluído? Sim. Mas não era podre e contaminado como está hoje”, diz Silvan Barbosa Moreira, chefe da coordenação técnica da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Resplendor.
O rio já não tem mais o aspecto sujo de lama e rejeito visto nas primeiras semanas e meses após o rompimento da barragem. As águas parecem limpas, mas os indígenas dizem ainda ter medo da contaminação.
O desastre em si provocou uma série de mudanças na vida dos krenakes. Mas as medidas que vieram depois também provocam muitas mudanças.
“O nosso povo está ficando um pouco obeso. As pessoas não têm para onde ir. Nós íamos sempre para a beira do rio; agora, é mais dentro de casa”, disse o cacique da aldeia takruk, Adauto Krenak, ao lado de sua mulher Arlete. “Nossa alimentação mudou, o que a gente mais comia era peixe, mas também tinha muita carne de capivara.” Hoje os índios comem, sobretudo, carne bovina dos açougues de Resplendor e cidades da região.
Os krenakes têm uma longa história de contato e bastante interação com não indígenas da região.
Moram em casas de tijolos, dirigem, vão à escola e alguns têm gado. Com mais dinheiro na mão, essa interação ficou ainda mais forte e os índios ganharam status de grandes consumidores no município de 17,6 mil habitantes.
“Depois de Deus, são eles que estão salvando a gente”, diz Rosany Duarte, dona do Bar Ideal, que fica na principal rua da cidade. Ela conta que o comércio sentiu quando a cooperativa local fechou as portas recentemente e fez produtores rurais ficarem sem a renda de antes.
“Os índios agora é que estão dando conta, e eles consomem bem.” Na Lasersom, perto do bar, os krenakes também se tornaram compradores frequentes. “Eles pagam com dinheiro, cheque ou cartão.
Passaram a vir mais aqui e compram eletrodomésticos, celulares, várias coisas”, contou a vendedora Jhenef Marçal Rosa.
As casas das famílias estão reformadas, mais amplas, algumas ganharam piso cerâmico e janelões de vidro temperado. Os índios compraram carros e caminhonetes. Há muitas motos pelas estradas das aldeias. As mulheres que lavavam roupa no Doce e agora têm medo de suas águas, usam o tanque de casa, mas algumas já providenciaram máquinas de lavar. Os índios que já criavam gado aumentaram seu plantel.
Os krenakes se habituaram ao novo padrão de vida, mas há um outro lado da história. “As famílias estão completamente embriagadas com essas migalhas que têm sido dadas a elas”, diz Alda Maria Oliveira, coordenadora da regional leste, que abarca terras em Minas, Bahia e Espírito Santo, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à Igreja Católica.
“Esses acordos criaram uma situação de certo conformismo e eles estão deixando de pensar sob um ponto de vista mais coletivo, como antes”, afirma. Alda assumiu o posto no ano passado e conta que ainda não esteve nas terras dos índios krenakes.
Segundo ela, quando a entidade tentou organizar uma mobilização quando o desastre completou um ano, uma das lideranças krenakes afirmou que não havia interesse. A razão, segundo informação que chegou ao Cimi, era o medo de os índios perderem o que estão ganhando. “O desafio é o impacto que tudo isso terá no futuro dos krenakes”, diz Alda.
“Para que a reparação a esses danos multidimensionais sofridos pelos krenakes seja adequada, é preciso consultá-los previamente”, disse Edmundo Antonio Dias Netto Junior, procurador da República. Os índios poderão dizer que querem continuar recebendo a ajuda financeira, além de outras medidas, como a construção de um açude para que retomem o contato com água ou um bom campo de futebol.
No fim de junho, os índios definiram detalhes sobre como eles serão consultados. “Essa é a chave com a qual os krenakes poderão, eles mesmos, dizer quais reparações devem ser implementadas, superando o momento atual, que, todavia, ainda se faz necessário, do acordo que prevê as medidas emergenciais que estão em curso”, diz o procurador.