A disponibilização gratuita da versão digital do livro integra os atos da Mobilização pelos Direitos Quilombolas e Indígenas deste mês de agosto. #MarcoTemporalNão #NenhumDireitoaMenos #NossosDireitosSãoOriginários
Por Liana Amin Lima da Silva, para Combate Racismo Ambiental
O livro Os Direitos Territoriais Quilombolas além do marco temporal, publicado em 2016 pela Editora da PUC Goiás, tendo como coordenadores os renomados juristas e professores Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega, Carlos Frederico Marés de Souza Filho e Antonio Carlos Wolkmer, se mostra como uma leitura obrigatória na área, sobretudo com a retomada do julgamento da ADI 3239 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que entrou na pauta para dia 16 de agosto, próxima quarta.
Autores: Antonio Carlos Wolkmer (UFSC), Carlos Frederico Marés de Souza Filho (PUCPR), Fernando Gallardo Vieira Prioste (Terra de Direitos) , José Luís Solazzi (UFG), Liana Amin Lima da Silva (CEPEDIS), Lilian C. B. Gomes (UFMG), Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega (UFG), Maria Rosalina dos Santos (CONAQ), Rangel Donizete Franco (UFG), Vercilene Francisco Dias (advogada Kalunga, UFG).
Abaixo, trechos do prefácio da obra coletiva.
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A Constituição de 1988, … em sua singeleza, apenas destravou uma porta que estava fechada há 500 anos: a possibilidade de as comunidades quilombolas viverem em paz e liberdade. Abrir a porta, porém, é um trabalho árduo, porque todas as forças que mantinham a trava continuam vivas e poderosas e se juntam para não permitir que a porta se abra. Abri-la é tarefa da sociedade brasileira sob a direção das comunidades quilombolas. A esperança é que este livro seja uma contribuição neste sentido, e essa contribuição é dada por mulheres quilombolas e outros estudiosos sensibilizados com a injustiça histórica da qual padecem estes povos.
Maria Rosalina dos Santos, quilombola da Comunidade de Tapuio, Piauí, representante da CONAQ, abre as reflexões, apresentando a realidade quilombola no Brasil, suas angústias, suas fragilidades, seus anseios. Afirma, com a sabedoria e a coragem de quem vive a luta cotidiana e não se acovarda diante do poder que amedronta, que:
Quanto à luta pelo território, podemos perceber que os entraves não são diferentes dos nossos parentes indígenas. (…) As ameaças não são diferentes. Assim como os indígenas, os quilombolas já têm derramado sangue na defesa de seus territórios. Quilombolas também são ameaçados vinte e quatro horas, mas, encorajados com a resistência de nossa ancestralidade, temos coragem para encararmos a luta, mesmo sabendo que ela é desafiadora, contudo, acreditando que é por meio da luta que podemos conquistar aquilo que é de direito.
Vercilene Francisco Dias, advogada quilombola kalunga, traz um comovente depoimento do que é ser kalunga para uma kalunga que conheceu e experimentou a luta pela sobrevivência de seu povo. O texto é permeado por lampejos de histórias de vida, falas emocionadas e breves momentos de recordação que procuram mostrar um pouco da realidade histórico-cultural desse povo, além, e sobretudo, da luta, do significado e da importância do território para os kalungas.
Carlos Frederico Marés de Souza Filho e Liana Amin Lima da Silva discutem o marco temporal como retrocesso dos direitos territoriais originários indígenas e quilombolas. Argumentam que a desconstrução teórica do marco temporal diz respeito diretamente aos direitos originários, que são conexos ao direito à vida, à existência e à integridade física, cultural e espiritual dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Para os autores,
o direito à terra existe desde o momento em que a comunidade se forma, ou seja, como direito congênito existe desde o surgimento ou nascimento da própria comunidade. […] A continuidade de existência da comunidade depende do lugar de sobrevivência. Por isso há uma estreita vinculação entre o direito à terra como direito originário e o direito à existência desses povos e comunidades, esta negação os mantêm na invisibilidade, quando os próprios instrumentos normativos tentam legitimamente trazê-los à visibilidade jurídica.
Antonio Carlos Wolkmer e José Luís Solazzi constroem importante fundamentação para corrigir os rumos na construção do sentido normativo referente à constitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003. Analisam, sob uma perspectiva do pluralismo jurídico, os contextos político-interpretativos que envolvem o Decreto no 4.887/2003, que regulamenta o processo administrativo de reconhecimento, identificação e delimitação das terras quilombolas (RTID) e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3239) proposta pelo Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas (DEM), junto ao Supremo Tribunal Federal que, ao longo dos anos, vem sendo debatida em seus aspectos processuais, administrativos, políticos, sociais e humanos.
Optando pelo resgate da dignidade política, concluem que há um conjunto de entendimentos e práticas que, somado ao pluralismo jurídico democrático e participativo, é instrumento político dessa pluricultura portadora de uma nova episteme que, ao enfrentar a colonialidade, o sequestro da vontade popular pelo Estado legislativo, a dogmática do discurso e da interpretação constitucional e a superexploração do trabalho, pode efetivar um espaço público ético, caracterizado por horizontalidades, participação e solidariedade.
Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega afirma a inconstitucionalidade do estabelecimento de um marco temporal para definir os sujeitos de direito contemplados pelo art. 68 do ADCT. Defende também a revisão hermenêutica, discutindo a perspectiva jurídico-temporal e histórica contida no voto proferido pela Ministra Rosa Weber, na ADI 3239/DF, em face do Decreto no 4.887, de 20 de novembro de 2003, que dispõe sobre procedimentos administrativos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, objeto do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988. Reflete, ainda, sobre as possibilidades de um marco histórico e sua fundamentação, considerando-o:
um erro jurídico, consequência de escolha política, social, econômica. Mais que isso, um erro histórico, que reproduz e reforça uma dívida histórica, pois enclausura as experiências de vida dos que resistiram à escravidão negra em novas categorias e fecha essas mesmas categorias antes que elas possam acolher as diversas expressões da realidade. E isso é feito num processo de mera abstração pela simples razão de que essas categorias (quilombolas, terras ocupadas) ainda não estão validadas na linguagem e nas fontes jurídicas tradicionais. Categorias que são aniquiladas pela invenção de um marco temporal.
Fernando Prioste, no texto “Quilombolas, luta por terra e questões raciais no Supremo Tribunal Federal”, faz fundamentada reflexão sobre a interpretação do disposto na Constituição Federal de 1998, no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), ao reconhecer às comunidades quilombolas direitos territoriais nos seguintes termos: “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Invoca o autor uma interpretação com bases fincadas na realidade e nos princípios fundantes da Carta. Assim, o direito quilombola à terra está previsto taxativamente no art. 68 do ADCT, mas sua aplicação e interpretação devem ser feitas levando em conta a conexão estrutural desse dispositivo com toda a Constituição, bem como com a realidade a que veio regular.
Rangel Donizete Franco e Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega relatam a odisseia para a titulação dos territórios Kalunga, trazendo a conhecimento as dificuldades na concreção desses direitos e a insuficiência do ordenamento jurídico brasileiro para realizar os valores constitucionais. Abordam os equívocos no tratamento dado ao que foi discutido no Decreto Federal n° 4887, de novembro de 2003, no âmbito da ADI 3239 e propõem o estudo a partir da teoria da proteção dos bens culturais, trazendo o conceito de patrimônio cultural, com o qual trabalha o Direito brasileiro.
Lilian C. B. Gomes fala sobre o outro lado da História que não foi contado: a capacidade de refundação do sentido da política no Brasil a partir da experiência das comunidades de quilombos. A autora conclama a defesa do direito dos povos e comunidades tradicionais a ser assumida por toda a população brasileira não apenas como uma questão de justiça a esses grupos, mas como oportunidade de aprender com eles o modo horizontalizado e moralmente avançado de estabelecer as relações da política como autonomia, participação ativa e autocriação, de conhecer suas formas produtivas com o manejo adequado dos recursos naturais. Propõe também compreender que a refundação da política no Brasil não se dará por meio do estudo dos clássicos da política do Norte Global, mas é nos territórios tradicionais e na recriação de outras formas de conceber a política e as relações econômicas que essa refundação ocorrerá.
A urgência de trazer à tona o direito desse grupo é que ele se vê ameaçado por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN 3.239/04). Essa ação considera inconstitucional o principal marco legal dos quilombolas, o Decreto 4.887/03 que valoriza, dentre outros aspectos, sua autoatribuição como grupo. Essa Adin 3.239/04 foi impetrada pelo Partido da Frente Liberal (atual DEM) e a leitura de sua justificativa deixa antever um modo de compreensão dos direitos em uma chave universalista que não valoriza a riqueza construída pela pluralidade nos modos de ser, sendo pautada em uma concepção hegemônica e privatista de propriedade.
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Os Direitos Territoriais Quilombolas além do marco temporal pode ser baixado AQUI.