23/10/2017
Projeto Arquitetura na Periferia, de ex-aluna da UFMG, ajuda mulheres a serem protagonistas na construção e reforma de suas casas, com conhecimento técnico e redução do desperdício
“Minha nova casa vai ser tudo o que eu sonhei. Bem aberta, com uma boa entrada de ar e um lugar para plantar a minha hortinha.” As palavras da cozinheira Santa Ferreira da Silva, mais conhecida como Santinha, de 58 anos, resumem o sonho de uma guerreira que nunca teve medo de pôr a mão na massa – e que agora tem ajuda profissional para isso. Em uma rua de terra batida na chamada Ocupação Dandara, no Bairro Céu Azul, na Região da Pampulha, ela agora aprende a medir a largura das paredes de tijolos para reformar a casa em que viverá com o marido e os dois filhos. “Onde moro hoje temos muitas escadas. Meu marido é acamado e sou eu que cuido dele. Quero reformar a casa para dar condições melhores a todos”, conta. As lições também incluem a proporção de cimento e areia que devem ser colocados no reboco, e a forma certa de usar o prumo e o esquadro. Santinha é uma das beneficiárias do projeto Arquitetura na Periferia, iniciativa que promove a melhoria das moradias de mulheres em Belo Horizonte. Por meio desse processo, elas são orientadas sobre as práticas e técnicas de projeto e planejamento e recebem microfinanciamentos para conduzir as obras com autonomia e sem desperdício.
Foto: Paulo Filgueiras/ EM/DA Press. Olho na trena, no prumo e no esquadro: com assessoria, mulheres como Santa Ferreira e Raílda Carvalho assumem a frente das construções
A ideia partiu da arquiteta Carina Guedes, que começou a desenvolver o projeto em 2013, durante o mestrado na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Entrei para o mestrado com a inquietação de viver em um país onde a população que apresenta a maior demanda por melhorias habitacionais dificilmente tem acesso a assessoria técnica. Isso acaba gerando diversos problemas, tais como desperdício de tempo, dinheiro e materiais além de problemas construtivos”, explica Carina. A partir de então, ela desenvolveu, com o auxílio de uma professora, metodologia voltada para a melhoria da moradia de mulheres da periferia pautada pelo compartilhamento de informação.
O intuito é ensinar as mulheres a medir, desenhar, projetar, planejar suas casas e a executar alguns serviços da construção. “Em vez de oferecer um produto, ofertamos o projeto da casa, o processo de aprendizado e de planejamento, promovendo, além da melhoria do espaço físico, uma melhoria da autoestima e da autoconfiança das mulheres”, afirma a arquiteta.
Assim como Santinha, que procura transformar a teoria em prática, a dona de casa Raílda Batista Carvalho, de 25 anos, já comemora os primeiros esboços de seu imóvel. “Desenhar que, eu achei que nunca ia conseguir, agora já consigo”, conta ela, cheia de orgulho. Com apenas duas semanas de aulas, ela já imaginava montar um quarto “arrumadinho”, como ela mesma define, para os filhos de 7 e 1 ano. A equipe de assessoria – também composta por mulheres – avalia os trabalhos e pontua sugestões, sempre dando prioridade aos desejos das beneficiarias. “Eu já estou imaginando que, quando os meninos crescerem, vou poder dizer: ‘Tá vendo este quarto aqui? Foi a mamãe que fez’”, planeja.
Minas Gerais é a segunda unidade da federação em carência de moradias no país, segundo dados da Fundação João Pinheiro e da Secretaria Nacional de Habitação, perdendo apenas para São Paulo. Em 2013, o estado precisava de 493 mil unidades, número que aumentou 7,3% em 2014, quando a necessidade saltou para 529 mil imóveis. Só na Região Metropolitana de Belo Horizonte, o estudo aponta serem necessárias 157.019 habitações. BH figurava então como a sétima capital do Brasil com maior déficit, com demanda de 78 mil lares, número que hoje é estimado pela prefeitura em cerca de 56 mil.
“O problema do déficit habitacional é crônico. As prefeituras não conseguem promover políticas públicas que atendam à demanda por moradia, enquanto inúmeros imóveis e terrenos continuam abandonados pela cidade, acumulando dívidas, lixo e aumentando a insegurança ao seu redor”, afirma a arquiteta Carina Guedes. Ela afirma que o poder público precisa dialogar com a população, sobretudo com os movimentos sociais, para buscar soluções conjuntas para o problema, que é gravíssimo. “Não apenas da falta de moradia, mas também da falta de qualidade das moradias de grande parcela da população”, afirma.
A arquiteta Carina Guedes, idealizadora da proposta, conta que escolheu trabalhar exclusivamente com mulheres porque, apesar de serem elas as responsáveis pela manutenção do espaço, na hora de decidir como será construído imóvel geralmente são excluídas. “O conhecimento acerca da construção ainda é dominado pelos homens e o machismo estruturante da nossa sociedade dificulta ainda mais o acesso delas”, diz.
Além do mais, segundo arquiteta, estudos apontam que experiências mundiais de microcrédito oferecidos a mulheres tiveram resultado positivo. “Quando a mulher recebe um benefício, ela tende a promover um bem para mais pessoas do que o homem”, afirma. Até o momento, 17 mulheres foram atendidas pelo projeto de arquitetura, beneficiando cerca de 70 pessoas. As participantes são moradoras da periferia, geralmente mães de três ou mais filhos, trabalhadoras autônomas ou donas de casa.
“Lugar de mulher é onde ela quiser e fazendo o que quiser”, afirma Luciana da Cruz, de 32, que gosta de ser chamada de Lu Dandara. Ela participou da primeira turma e hoje tem muito orgulho ao receber convidados na sua casa na Rua dos Quilombos. Em um lote 8 metros por 16, construiu um imóvel com uma aconchegante sala de estar e dois pequenos quartos, onde cria com o marido os filhos de 12, 9 e 5 anos. Ela conta que, durante a reforma, muitas vezes foi subestimada por homens: “Como a mulher não está inserida na obra, todo mundo pensa que ela não sabe o que está falando. Eu ouvi do pedreiro questionamento do tipo: ‘O que você tem de idade eu tenho de profissão’. Eu respondi: ‘Aprendi em 6 meses tudo que você não aprendeu na profissão’”, lembra. O homem, ainda indignado, pediu para falar com o marido dela. “Ele tem que falar é comigo; a casa é minha e eu decido por onde quero entrar e por onde quero sair”, afirma.
Lu conheceu o projeto por meio de uma tia que teve o primeiro contato com a arquiteta Carina Guedes. De imediato, dedicou todos os seus esforços para participar da primeira turma de construção. Antes de colocar a mão na massa, o primeiro desafio foi conciliar os orçamentos com a verba disponível – R$ 9 mil emprestados por Carina e R$ 3 mil que as participantes economizaram juntas. “Fomos cortando algumas coisas, mesmo que essenciais, para conseguirmos levantar o dinheiro”, conta. Sem burocracia, o trio pagava o empréstimo na medida em que conseguia o dinheiro, já que a maioria delas trabalha no mercado informal e não tem renda fixa.
Em 2016 o projeto contou com o primeiro apoio, que veio da ONG BrazilFoundation. A ajuda possibilitou que a iniciativa fosse desenvolvida com 14 mulheres. “Apesar de o trabalho ainda ser basicamente voluntário, conseguimos cobrir algumas despesas, já que a maior parte do apoio recebido foi destinada aos empréstimos, para que as mulheres pudessem realizar suas obras”, afirma a idealizadora. Neste ano, Carina e Luciana explicam que o projeto está com uma campanha de financiamento colaborativo, que vai até 28 de novembro. A intenção é arrecadar tanto para o custeio da proposta, com atendimento a mais mulheres, quanto para o desenvolvimento de um produto social, que se torne financeiramente sustentável.
Luciana não apenas foi beneficiada como, agora, passa os seus conhecimentos para novas colegas de projeto. “O que eu mais gostei foi de aprender a fazer o reboco. Uma parede feia fica tão linda!”, faz questão de destacar. Ela também se reformou. Assumiu o cabelo cacheado e hoje se sente mais bonita. “Eu chamo isso de autoestima. Hoje, consigo olhar para a pessoa de maneira nivelada. Fiz também pequenas reformas em mim. Porque, se você me visse no início do projeto, eu era outra pessoa”, considera.
Para perseguir o sonho de ver a morada pronta e bem-acabada, ela se transformou na multitalentosa obreira Paloma Cipriano, de 23 anos. A jovem não só encara pás e picaretas para reformar ela mesma seu imóvel, como exibe as façanhas em um canal do YouTube, no qual ajuda outras mulheres a fazer reformas. No “estúdio-laboratório”de aproximados 200 metros quadrados que abriga a casa de Paloma, ainda com muitas paredes de tijolos aparentes ou recém-rebocadas, há bastante trabalho a ser feito. Até o fechamento desta edição, ela tinha mais de 206 mil inscritos.