28/08/2018
O ‘marco temporal da ocupação’ é uma argumentação insustentável e racista que ignora completamente as perseguições, violências e massacres sofridos por milhares de comunidades indígenas e quilombolas desde o período colonial, trazendo insegurança jurídica e social a estes povos. Trata-se de uma farsa perpetrada no Congresso Nacional pela bancada ruralista em 2009, capitaneada pelo ex-ministro Carlos Ayres de Brito do Supremo Tribunal Federal (STF), que plantou, durante o julgamento da Terra Indígena (TI) Raposa Terra do Sol situada em Roraima, a inconsistente tese que preconiza que os direitos territoriais dos povos indígenas só teriam validade se eles estivessem em suas terras em 5 de outubro de 1988 – data da promulgação da atual Constituição Brasileira. Significou o estabelecimento deste ano como balizamento único de ocupação para fins de demarcação de terras indígenas. Posteriormente, o próprio STF reconheceu que a decisão proferida neste processo não poderia causar efeito vinculante, ou seja, não deveria estender as suas implicações ou decisões a outros casos. Não obstante, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil apresentou a Proposta da Súmula Vinculante nº 49, onde solicitou a reativação da adoção geral de 1988 como marco temporal para validação de direitos originários às terras (NAKANE & MICHELLETI, 2017; MILANEZ, 2017). Mesmo com a manifestação da Comissão de Jurisprudência do STF indicando o imediato arquivamento dessa proposição, em 20 de julho de 2017, o golpista Michel Temer, buscando oficializar esta absurda falácia, publicou no Diário Oficial da União (DOU) o Parecer 001/2017/GAB/CGU/AGU que estende os intentos do julgamento da Terra Indígena Raposa Terra do Sol para todo o país, em troca de apoio político da bancada do agronegócio no Congresso Nacional golpista, além de prescrever a obstrução à possibilidade de ampliação de terras indígenas já demarcadas (NAKANE & MICHELLETI, 2017).
Visando o fortalecimento desta política de violação de direitos dos povos originários, também em julho de 2017, o impostor (des)governo Temer publicou uma portaria que criou um grupo de trabalho formado pela Polícia Federal, Secretaria de Segurança Pública e Fundação Nacional do Índio (FUNAI), visando formular propostas de “organização social” das comunidades indígenas e quilombolas. A ideia seria trazer ainda a questão quilombola para o âmbito do Ministério da Justiça, até então tratada na esfera do Ministério da Cultura e no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), dificultando procedimentos identitários, demarcatórios e trâmites relacionados à titulação das terras remanescentes (MILANEZ, 2017).
Esta medida se alinha também à proposição de Emenda Constitucional conhecida como PEC 215 bancada pelo mesmo grupo político reacionário ruralista que prevê a transferência do Executivo[3] Federal para o Congresso Nacional com relação à decisão final sobre a demarcação de terras indígenas, a titulação de territórios quilombolas e a criação de unidades de conservação ambiental. O texto ainda proíbe a ampliação de terras indígenas já demarcadas, prevendo a indenização aos proprietários.
O que também se pretende legitimando o ‘marco temporal’ e todas estas proposições fascistas é anistiar os crimes cometidos contra os povos tradicionais relacionadas à escravidão, torturas, confinamentos em pequenos territórios, aprisionamentos, exílios, remoções forçadas, desterros, separação de familiares, assassinatos, apropriações indevidas de territórios tradicionais, desconsiderando assim as noções de reparação histórica, de dívida histórica com os povos originários, de resguardo cultural e imemorial, de direitos congênitos, imprescritíveis, intangíveis e da posse coletiva da terra.
Além de lideranças indígenas e quilombolas e especialistas em Direitos Humanos, renomados juristas brasileiros afirmam que o argumento do ‘marco temporal’ é inconstitucional e inconvencional, ferindo, em especial os artigos 231 e 232 da Constituição, além de desrespeitar a Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) n. 169, de 1989, ratificada pelo Brasil, que consagra os direitos culturais e territoriais, bem como a autodeclaração, como instrumento primaz da identidade étnica, além do reconhecimento das diferentes formas de ocupação, manejo e uso da terra. Isto implica, obviamente, que o preceito da tradicionalidade deve transcender requisitos temporais e restritivos. Ainda vem sendo constatada a infringência do direito à consulta, prevista na convenção supracitada, uma vez que novos processos não têm tido a participação prevista por parte dos povos tradicionais, criando um clima de provisoriedade e injustiça jurídico-política.
Ainda na esfera Internacional, importante mencionar o posicionamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no tratamento de julgamentos relacionados aos direitos possessórios indígenas, que costuma considerar em suas sentenças violação aos seus direitos a demora ou postergação na adoção de medidas internas que visem o eficaz reconhecimento e a demarcação de terras, além de reiterar a prerrogativa da autodeterminação, invocando a sua plena autonomia. Fica mais que claro que os procedimentos do STF estão em total desacordo com a jurisprudência da referida Corte (SCHWANTES & STARCK, 2017).
“Agora, o Supremo ao invés de ser portador da segurança dos direitos possessórios indígenas, cria um entendimento que viola totalmente a Constituição e documentos internacionais de direitos humanos em nome de, entre outras razões, a dificuldade de se estabelecer uma retrospectiva imemorial sobre as terras indígenas” (SCHWANTES & STARCK, 2017: 160).
Contudo, o advogado indígena Luiz Henrique Eloy, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), alerta que: “Muitos juízes de primeira instância têm aplicado cegamente o ‘marco temporal’ e determina reintegração de posses”[4] avaliando que aplicações nas varas de primeira instância vêm desestabilizando e impactando a organização de comunidades indígenas.
A demora ultrajante por parte do STF em julgar[5] infundada a tese do ‘marco temporal’ afronta os direitos humanos, contrariando também as informações e revelações contidas no relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV)[6]. Tal documento da CNV denuncia que no período de 1940 a 1988, o Estado foi responsável por várias omissões e ilicitudes, sendo comum a elaboração de laudos fraudulentos atestando a inexistência de povos tribais em inúmeras parcelas de terras almejadas. Houve uma clara tentativa de eliminar famílias e comunidades tradicionais durante o regime ditatorial civil-militar-empresarial, agravando ainda mais o quadro de violações de suas terras em nome do chamado “desenvolvimento e integração nacional”. Neste período, povos foram aprisionados, forçados a serviços militares e banidos de seus territórios para instalações de agroindústrias, hidrelétricas, explorações de minerais, madeira, abertura de estradas, entre outros empreendimentos e negociatas. As informações sobre delitos e transgressões contra os povos indígenas foram tão aviltantes que resultou na proposição final da criação de uma Comissão Nacional da Verdade Indígena (CNVI). O que se pretende é dar luz e tornar públicas as remoções forçadas dos povos indígenas de seus lugares, a partir da compreensão da realidade fática e não da institucionalmente construída ou fabricada, dando visibilidade à história da resistência indígena e de sua espoliação (OSOWSKI, 2017).
O que se constata é que o poder judiciário vem agenciando uma verdadeira política de esquecimento, negando o território e o sentido de pertencimento desses povos. Baseando-se nas premissas sobre a “memória das tragédias ou do infortúnio” de J. Candau (2016), R. Osowsky propõe que “a lembrança das violências, dos deslocamentos forçados e a usurpação de terras por parte dos brancos continua na esfera do memorável por parte dos povos indígenas (OSOWSKY, 2017: 337). As lembranças frequentemente estão associadas a lugares com testemunhos materiais, arqueológicos e intangíveis do passado e de uma ancestralidade, ou seja, a espaços territoriais onde fluem memórias coletivas vividas, construídas e reinterpretadas.
Segundo o jurista Carlos Frederico Marés (2013), a manutenção desta política de esquecimento por parte do Estado resultará na ausência de demarcação de terras, o que ocasionará, no médio e longo prazo, um verdadeiro etnocídio. O direito originário não se restringe somente em restaurar um passado ancestral e a sua história marcadamente violenta, mas também garantir um futuro possível e harmônico, por meio de políticas que coadunam com os preceitos dos direitos humanos internacionais e com os prevalecentes dispositivos constitucionais.
Vale a pena mencionar uma importante frase dos assessores jurídicos do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) a respeito do ‘marco temporal’, reiterando que este fere os direitos possessórios indígenas e o instituto do indigenato (direitos originários), gerando um cenário de alto risco.
“(…) Além de se configurar como uma interpretação distanciada do contexto histórico e social, é visivelmente inconstitucional. (…) Verifica-se que se tenta impor uma interpretação jurídica desvinculada dos sujeitos de direito de hoje – os povos indígenas – como se não houvesse relação entre o passado, o presente e futuro das 305 etnias que vivem no território brasileiro atualmente” (CUPINSKY et al., 2018).
A mais recente manobra ocorreu no mês agosto de 2018, quando os representantes da Confederação Nacional de Agricultura (CNA), da Frente Parlamentar de Agricultura (FPA) no Congresso Nacional e uma deputada do DEM do Mato Grosso do Sul encaminharam ao golpista Temer a revogação do Decreto nº 6040/2007 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos Indígenas, solicitando ainda a suspensão de processos demarcatórios. Especialistas analisam que esta ação da “bancada do boi e da bala” seria uma represália declarada à conquista das comunidades quilombolas sobre o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 3239, que questionava o Decreto nº 4.887/2003, que regulamenta o processo de demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.
Em entrevista[7], a procuradora da República Deborah Duprat assevera que o judiciário desconhece a real profundidade e a multiplicidade de circunstâncias históricas que envolvem os povos tradicionais, sendo que os direitos fundamentais destas comunidades apresentam caráter inalienável, propondo que o “problema” do ‘marco temporal’ antecede o julgamento da Raposa Serra do Sol, tendo sido construído internamente pelo STF desde o final da década de 1990. Duprat considera que foi a mobilização contínua e aguerrida dos povos indígenas e quilombolas que impediu, de fato, que estas medidas e políticas conservadoras avançassem ainda mais. “A PEC 215 já teria sido aprovada e as decisões do STF sobre o ‘marco temporal’ e as demarcações já estariam consolidadas.”
Sigamos atentos e na luta. ‘Marco Temporal’ Não, porque é absurdo, inconstitucional e violação aos direitos dos povos originários!
Referências Bibliográficas
Acessos entre 19 e 22 de Agosto de 2018.
CUPINSKI, A. et al. Terra tradicionalmente ocupada, direito originário e a inconstitucionalidade do Marco Temporal. CIMI, Maio de 2018. https://cimi.org.br/2018/05/terra-tradicionalmente-ocupada-direito-originario-e-a-inconstitucionalidade-do-marco-temporal/
NAKANE, M. & MICHELLETI, A. Indígenas contra o marco temporal: ‘Nossa História não começa em 1988’. Brasil Debate, 14/08/2017. https://jornalggn.com.br/noticia/indigenas-contra-o-marco-temporal-%E2%80%98nossa-historia-nao-comeca-em-1988%E2%80%99-por-mariel-nakane-e-alvaro-micheletti
MILANEZ, F. “Marco Temporal”, um argumento racista para legitimar massacres. Carta Capital, Sociedade, 15/08/2017. https://www.cartacapital.com.br/sociedade/marco-temporal-um-argumento-racista-para-legitimar-massacres
SCWANTES, S. & STARCK, G. Marco temporal e as violações aos direitos dos povos indígenas. In: Anuário Brasileiro de Direito Internacional, vol. 2, n. 23, jul. de 2017.
SOUZA FILHO, C. F. M. Os Povos indígenas e o Direito Brasileiro. In: SOUZA FILHO, C. F. M & BERGOLD, R. C. (Orgs). Os Direitos dos Povos Indígenas no Brasil: desafios no século XXI. Curitiba: Letra da Lei, 2013. p. 13-34.
Belo Horizonte, MG, 28/8/2018.
Obs.: Os vídeos, abaixo, ilustram o texto, acima.
1 – Retomada Indígena Kamakã Grayra/Esmeraldas/MG: O direito à terra. 1ª Parte. 06/6/2018.
2 – Direito à terra: retomada Indígena Kamakã Grayra, Esmeraldas/MG. 2a parte. 16/6/2018.
3 – Retomada Indígena na FUCAM/Esmeraldas/MG: Luta legítima pelo direito à terra/3ª Parte. 06/6/2018.
4 – Quilombo Marobá dos Teixeira, Almenara/MG: clamor por justiça. Sr. Orlindo Teixeira e Kena. 15/04/2017
5 – Daiane, Comunidade Quilombola Baú/MG – Ameaças e violência por lutar pelo território/24/5/2018.
6 – Comunidade Quilombola Braço Forte, em Retomada/Salto da Divisa, MG/A luta pela terra/09/6/2016.
[1] Doutora em Arqueologia pelo MAE/USP; Pós-Doutorado no Departamento de Antropologia e Arqueologia na FAFICH/UFMG; Mestra em Educação pela FAE/UFMG; Historiadora e integrante do CEDEFES (Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva – www.cedefes.org.br ).
[2] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br –
www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
[3] Segundo o Estatuto do Índio, em vigor desde 1973, o reconhecimento de terras para uso exclusivo dos índios é homologado por decreto do presidente da República. Ao Executivo, também cabe proteger esses povos. O processo de demarcação depende de estudos técnicos realizados pela FUNAI e de aprovação do Ministério da Justiça. A pasta também determina a desapropriação de fazendas na área demarcada e os proprietários são ressarcidos pelas benfeitorias realizadas no local. Já o pagamento pela terra não está previsto em lei. A PEC 215 segue em tramitação no Congresso Nacional.
[4] Depoimento compilado na matéria “Porque o debate do marco temporal é tão importante para os indígenas”, na Carta Capital de B. Ramos e J. A. Lima, publicado em 16/8/2017. https://www.cartacapital.com.br/sociedade/por-que-debate-do-marco-temporal-e-tao-importante-para-os-indigenas
[5] No dia 16 de agosto de 2018 foi previsto pelo STF a análise do ‘marco temporal’, o que não ocorreu, postergando a decisão, mantendo sob ameaças os direitos básicos dos povos indígenas e quilombolas. Nessa seção julgaram, todavia, duas ações civis abertas pelo estado do Mato Grosso com questionamento sobre demarcações de terras indígenas.
[6] BRASIL. Comissão Nacional da Verdade (CNV). Violações de direitos dos povos indígenas. 2016. http://memoriasdaditadura.org.br/cnv-e-indigenas/index.html
[7] Concedida a M. Pellegrini publicado em 18/11/2015 na Carta Capital. (https://www.cartacapital.com.br/sociedade/temos-tracos-de-colonialismo-dos-quais-nao-nos-libertamos-1405.html)