06/12/2018
Peruaçu é santuário único
Parque nacional localizado no Norte de Minas abriga cavernas colossais e pinturas rupestres que remontam à ocupação humana ocorrida há 12 mil anos
Na região norte-mineira, um santuário abriga algumas das mais imponentes cavidades do Brasil e do mundo. Elas emolduram a paisagem em meio ao Cerrado e à Caatinga e servem de cenário para a arte rupestre pré-histórica, cujos registros de datação das pinturas e de ocupação humana remontam entre 9 mil e 1 mil anos.
Assim é o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu (Parna Peruaçu), considerado superlativo tanto em termos da concentração quanto da diversidade de seus sítios arqueológicos e de suas cavernas de grandeza colossal. Com mais de 56 mil hectares, ele se estende pelos municípios de Januária, Itacarambi e São João das Missões, na margem esquerda do Rio São Francisco, a 653 quilômetros de Belo Horizonte.
Criado em 1999, o parque fica em uma área cárstica e abriga um grande cânion, no vale do rio que lhe dá nome. A Ecológico esteve lá no início de novembro, na companhia de jornalistas e de uma das maiores conhecedoras e entusiastas das belezas arqueológicas do Peruaçu, consideradas de representatividade única.
Doutora em Arqueologia, Alenice Baeta (foto) é pesquisadora-colaboradora do Setor de Arqueologia do Museu de História Natural da UFMG desde os anos 1980, tendo participado de várias escavações e estudos em Minas e Brasil afora. Ela explica que não é comum encontrar regiões, mesmo cársticas, com tão grande concentração de sítios arqueológicos como no Vale do Rio Peruaçu.
“Aqui tudo é superlativo. São muitas cavernas e sítios arqueológicos exuberantes em sequência, características raras, mesmo em ambientes de feição cárstica. Temos outros locais no Brasil e em Minas com essas particularidades, mas nada que se compare ao Peruaçu, tanto em termos de densidade e quantidade de sítios quanto de figurações rupestres que podem ser avistadas a vários metros de altura, além da conservação de artefatos pré-históricos.”
Esses registros podem ser observados em vários níveis de grafismos superpostos, ou seja, uns sobre os outros, deixados nas paredes rochosas ao longo dos últimos milênios. Os mais antigos vestígios de ocupação humana no Peruaçu têm 12 mil anos, como comprovado nas escavações feitas na Lapa do Boquete.
Para Alenice, o Peruaçu é um lugar único, lembrando ainda da importantíssima presença de comunidades tradicionais, que habitam aquela região por tempos imemoriais. “E que têm o Peruaçu como território de referência simbólica e histórica, tais como os indígenas Xakriabá, quilombolas, veredeiros e vazanteiros, entre outras tantas comunidades tradicionais do Vale do Rio São Francisco. “A proteção desse santuário, de suas matas, animais e águas é vital para o bem viver de todos”, frisa.
Verdadeira dádiva
À riqueza arqueológica superlativa do Peruaçu também se soma o seu valor espeleológico, com a presença de mais de 180 cavernas na região. Atualmente, o Parna Peruaçu mantém oito roteiros de visitação, abertos ao público a partir de 2015. São trilhas com diferentes graus de dificuldade, boa parte delas entremeada por formações rochosas que remontam a cerca de 1 bilhão de anos, comprovando que o Vale do Rio Peruaçu, um dos principais afluentes do Velho Chico, foi banhado pelo mar.
Entre as pinturas rupestres, as encontradas na Lapa do Caboclo, merecem destaque especial. Além de impressionar pela diversidade do grafismo, elas estão bem ao alcance dos olhos de quem percorre as passarelas de madeira que levam ao local. A presença do calcário, no solo e em paredões, é a grande aliada da conservação.
“Para além dos registros pétreos, encontramos aqui inúmeros vestígios orgânicos, como madeira, palha, ossos, restos alimentares e vegetais. Como os abrigos são recuados, os grafismos rupestres, sejam eles pintados ou em relevo, permanecem melhor conservados, graças à menor exposição e à ação do sol e da chuva. Para a pesquisa, essa conjunção de fatores é uma verdadeira dádiva, pois permite a documentação desse acervo parietal e as análises de conjunto das figuras de maneira muito mais rica e completa”, pontua Alenice.
Pigmentos naturais
Outro ponto que merece ser ressaltado, salienta a arqueóloga, é o fato de a Lapa do Caboclo (foto) ser considerada o ápice da chamada tradição São Francisco em seus aspectos geométricos e decorativos. Trata-se de uma das unidades estilísticas de pinturas rupestres distribuídas pelo território brasileiro, desde Andrelândia (MG) até Sergipe.
“Além do grande número de figuras, a tradição São Francisco chama a atenção pela elaboração gráfica das pinturas neste abrigo, em especial. Tudo é mais detalhado e há um rigor estético, o que resulta em maior equilíbrio harmônico entre os geometrismos policrômicos, quer dizer, composição de várias cores e tons de vermelho, amarelo, branco e preto.”
Isso fica claro tanto na Lapa do Caboclo, quanto na Lapa dos Desenhos, também próxima, e que abriga mais de 3 mil figuras. As tintas foram confeccionadas a partir de pigmentos minerais e naturais, tais como óxidos de ferro, manganês, calcita e carvão. E as pinturas aplicadas na rocha com os dedos, pincéis naturais e ainda um tipo de “lapiseira” na qual se fixava o pigmento na ponta de um graveto.
“As figuras em relevo, por sua vez, foram confeccionadas por meio da picotagem, ou seja, batidas precisas por meio de um instrumento de pedra pontiagudo, polimento ou ainda por fricção linear na rocha”, esclarece Alenice.
Claraboia do coração
Conhecer o Parna Peruaçu também é se deixar levar pelos atrativos naturais de uma de suas grutas mais emblemáticas: a do Janelão. O nome faz jus às dimensões de seus salões rochosos e às tradicionais fotos tiradas por visitantes, muitas delas comparando a pequenez humana diante da altivez de sua galeria principal (foto), que atinge mais de 100 metros de altura. Ou seja, quase três vezes a altura da estátua do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, que mede 38 metros, incluindo o seu pedestal.
O trajeto de ida e volta no Janelão, partindo do Centro de Visitantes, totaliza 4.800 km. O grau de dificuldade da trilha é semipesado. Isso porque alterna subidas e descidas em trechos mais íngremes, com muitos degraus, e partes planas, naturalmente iluminadas por claraboias formadas pelo desmoronamento do teto (erosão causada pela água), criando formatos caprichosos, como a do coração (foto).
Há pontos de parada estratégicos, com bancos de madeira, ideais para fazer um lanche rápido, tomar água e ler um pouco sobre a história local, descrita em totens e placas. O fim da trilha pela Gruta do Janelão guarda outra surpresa também exuberante. Lá está a maior estalactite do mundo: a Perna da Bailarina, que mede 28 metros e foi assim batizada em razão de seus sugestivos contornos.
Condutores locais
Para os mais aventureiros e com bom condicionamento físico, a novidade é a abertura da trilha do Arco do André. Inaugurada em agosto deste ano, ela também explora o cânion principal do Rio Peruaçu, região que concentra, além de Janelão, os roteiros que levam às lapas do Índio e Bonita, dos Desenhos, do Boquete, do Carlúcio e do Rezar.
O percurso do Arco do André inclui dois mirantes naturais – das Cinco Torres e do Mundo Inteiro –, totalizando 8 km, com caminhada estimada em sete horas de duração, ou seja, é um programa para o dia inteiro. Todas as visitas aos roteiros oferecidos no Parna Peruaçu são obrigatoriamente acompanhadas por condutores (guias) locais. Para acesso às trilhas o visitante depende de carro. O agendamento deve ser feito no escritório do ICMBio, responsável pela administração da unidade.
Graças à melhoria da infraestrutura e à abertura de novos roteiros, o número de visitantes do Parque Nacional Cavernas do Peruaçu (Parna Peruaçu) vem aumentando a cada ano. Em 2017, mais de 6.900 pessoas conheceram seus atrativos. De janeiro a novembro deste ano foram 7.045.
Professores e estudantes da região também visitam o parque, em sintonia com o compromisso do ICMBio de abrir suas portas para ações de educação ambiental. O objetivo é incentivar a preservação do patrimônio natural, fomentar o ecoturismo sustentável e ampliar a consciência de conservação entre a população do entorno.
Chefe-substituta do parque, Dayanne Sirqueira conta que, em junho deste ano, foi desenvolvido o projeto “Escolas nas Cavernas”. O encontro, no Centro de Visitantes, reuniu professores, secretárias, diretores, bibliotecários e, numa etapa seguinte, foi a vez de alunos de oito escolas da rede pública local conhecerem a unidade.
A ideia é capacitar os professores por meio de dinâmicas, oficinas e cursos sobre biodiversidade, arqueologia, espeleologia e arte. “Assim, contribuímos para a multiplicação de novos conceitos junto a toda a comunidade escolar”, afirma Dayanne, que integra uma equipe de mais de 28 pessoas (incluindo analistas, brigadistas e vigilantes), responsável pelo parque e pela APA Cavernas do Peruaçu.
O Parna Peruaçu conta, ainda, com o apoio de voluntários, fruto de um programa criado em 2009 pelo ICMBio. Eles têm a oportunidade de atuar nas áreas de gestão socioambiental, apoio administrativo e outras, com direito a receber um certificado de participação ao fim das atividades realizadas. Os interessados podem acessar o seguinte link: www.icmbio.gov.br/portal/sejaumvoluntario
Acordo de cooperação
A gestão do Parna Peruaçu, compartilhada pelo ICMBio com o Instituto Ekos Brasil, resulta de um acordo de cooperação assinado em 2017. Com sede em São Paulo, o Ekos apoia as atividades de uso público, manutenção, avaliação e monitoramento do plano de manejo, elaborado pelo próprio instituto e aprovado em 2005.
Especialista associada, a engenheira agrônoma Maria Cecília Wey de Brito explica que a escolha do Ekos se deu por chamamento público, do qual participaram outras ONGs e Oscips. Um dos focos do acordo é o levantamento de recursos junto à iniciativa privada, por meio do Fundo Peruaçu.
A proposta é atrair empresas interessadas em associar sua marca ao parque, com a garantia de opinar tanto na definição das atividades quanto na alocação de recursos para os projetos. Segundo Maria Cecília, uma das maiores conquistas até agora é a ampliação do grau de confiança no relacionamento com as comunidades vizinhas.
“Muitos ainda não nos conhecem, mas a maioria dos grupos com os quais temos lidado entende que estamos aqui para ajudar e não para competir. Queremos contribuir para que todos os segmentos – sejam pousadas, restaurantes e/ou associações – cresçam juntos, construindo novas alianças. Isso é o mais valioso.”
O presidente do Instituto Ekos Brasil é o geólogo e empresário suíço Ernesto Moeri (foto). Antigo conhecedor do Peruaçu, ele desembarcou pela primeira vez em Januária aos 20 e poucos anos ainda como estudante. Hoje, aos 72 anos, esbanja vitalidade e simpatia.
Ao falar sobre sentimentos, emoções e mudanças na paisagem testemunhados ao longo dos anos, Moeri relembra detalhes de sua chegada a Januária. “A cidade era uma pérola no meio do sertão, com matas fechadas, pessoas boas e uma vida tranquila. O São Francisco, com muita água, era o grande eixo de ligação com Minas e o restante do país.”
A paixão pelas belezas locais segue pulsando nas veias de Moeri, aficionado também por fotografia e aviação. “Hoje, ainda me encanto e me surpreendo com a força do verde e a rica geologia do parque. Januária cresceu muito e sinto que seu patrimônio histórico-cultural merece ser melhor apreciado e preservado. Sobretudo no que se refere à conservação e ao restauro de construções em sua área central”, avalia.
Aliar a conservação do patrimônio histórico-cultural com a proteção e a divulgação das belezas paisagísticas do Peruaçu é, na visão de Moeri, uma receita certeira para o crescimento responsável e sustentável de toda a região, com benefícios para a atual e as próximas gerações.
A ECOLÓGICO RECOMENDA…
Quem visita o Centro de Januária tem pelo menos dois pontos de parada considerados tradicionais. O Mercado Municipal é referência para quem está em busca de queijos, temperos, ervas medicinais e artesanato. Em seus corredores, se misturam cheiros, sabores e cores, com direito a pechincha e boas histórias contadas pelos comerciantes.
Outra dica é conhecer a loja-museu da Aguardente Claudionor. Produzida artesanalmente desde 1925, a marca leva o nome de seu fundador, Claudionor Carneiro. Atualmente, a condução da empresa está nas mãos da terceira geração da família, tendo como sócias-proprietárias as netas dele, Úrsula e Lícia.
Juntas, elas estão coordenando a reforma da loja, que guarda raridades como a mesa de trabalho usada pelo avô, um antigo cofre e belas fotos dos tempos em que a Claudionor chegava a Petrolina, Juazeiro e outras praças pelas águas do Velho Chico.
Eleita uma das 50 melhores do país pelo II Ranking da Cúpula da Cachaça (2016), a Claudionor descansa em tonéis de amburana que acompanham sua centenária produção. Em três alambiques, dois em Cônego Marinho e outro em Brejo do Amparo, são produzidos cerca de 80 mil litros/mês. A matéria-prima, cana nativa da região, é fornecida de forma cooperada por pequenos produtores.
SERVIÇO:
* Partindo de Belo Horizonte, o aeroporto mais próximo do Parna Peruaçu é o de Montes Claros, a cerca de 200 km. De ônibus, as opções de chegada são por Januária e Itacarambi.
* O que levar nas trilhas e passeios: água e lanche (não há local de venda). Repelente, chapéu/boné e protetor solar também são bem-vindos.
Informações/Parna Peruaçu:
https://goo.gl/zyDYFXhttps://goo.gl/zyDYFX
(38) 3623-1038/1039
cavernas.peruacu@icmbio.gov.br
Reinaldo (Rena, condutor): (38) 99265-3563
Saiba mais:
Instituto Ekos Brasil
Aguardente Claudionor
http://cachacaclaudionor.com.br/galeria/
* A repórter viajou a convite do Instituto Ekos Brasil.
Fotos: Rui Faquini, Edward Elias e Fernando Tatagiba (ICMBio) / Alenice Baaeta / Arquivo Pessoal