João Batista, profeta reformista ou revolucionário?

17/12/2018

Por Gilvander Moreira[1]

Fonte:http://gilvander.org.br/site/joao-batista-profeta-reformista-ou-revolucionario/

Antes do Natal, durante o Advento, passagens do Evangelho de Jesus Cristo referentes à ação e ao ensinamento de João Batista são lidas e apresentadas durante as celebrações religiosas em igrejas e comunidades cristãs. Quem foi, o que ensinou e o que fez João Batista que entrou para a história cristã como profeta precursor de Jesus Cristo (Lc 3,3)?  Os evangelistas Lucas e Marcos fazem Jesus iniciar sua missão pública ao ouvir que João Batista tinha sido preso a mando do governador Herodes Antipas (Lc 3,19s; Mc1,14; At 13,25). Um fato político – a prisão de um profeta – foi o acontecimento que desencadeou o início da missão de Jesus Cristo. Para Lucas João é “o Batista” (Lc 7,20), como era conhecido na tradição das primeiras comunidades cristãs.

João Batista, profeta de ética reformista? (Lc 3,10-14). Diante da pergunta “Que devemos fazer?” levantada pela multidão, por agentes do fisco e por policiais, João Batista propõe à multidão partilha (“Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem” (Lc 3,11)), aos cobradores de impostos exorta a serem éticos (“Não cobrem nada além da taxa estabelecida” (Lc 3,12-13)), e aos policiais, não extorquir o povo (“Não maltratem ninguém; não façam acusações falsas e fiquem contentes com o salário de vocês” (Lc 3,14). Esses conselhos de João Batista não deixam de ser, em certo modo, um tanto ambíguos. Por um lado, manifestam um verdadeiro interesse pelo próximo nos variados aspectos; porém, por outro, não pretendem revolucionar as estruturas sociais do status quo opressor da época, nem sequer diante da “iminência da ira” que vem. João Batista defende a distribuição partilhada dos recursos fundamentais para a existência (Lc 3,11), a fuga da extorsão (Lc 3,12-13), a abolição da chantagem e de qualquer medida intimidatória (Lc 3,14). Porém não diz aos arrecadadores de impostos que devem cortar suas relações com o poder opressor do império – o que fez Antônio Conselheiro em Canudos (1893-1897) -, nem aos soldados – ainda que talvez se trate de ‘mercenários’ – que abandonem sua profissão. Na realidade, o último conselho que dá aos soldados: “conformai-vos com vosso salário” (Lc 3,14), nem sequer contempla a possibilidade de que se trate de um salário injusto. Aqui João Batista é apresentado por Lucas como um “reformista” e não um revolucionário.

Onde João Batista foi preso e martirizado? Precisamos recorrer à arqueologia cristã e ao historiador Flávio Josefo (37-100 d.C.). As descobertas arqueológicas da Fortaleza de Maquerontes sustentam a credibilidade do que Flávio Josefo escreveu a respeito do profeta João Batista. Um dos grandes resultados da arqueologia da Palestina foi ter iluminado a época herodiana. Flávio Josefo fala de Herodes, o Grande, como um megalomaníaco e que se deleitava no luxo. Segundo Flávio Josefo, o cinismo e a suspeita política ensanguentaram muitas vezes a família de Herodes. Esse mandou assassinar três filhos, a mulher que “amava”, cunhados e amigos de confiança e realizou o massacre das crianças quando soube do nascimento de Jesus. Herodes, rei estrangeiro (imposto sobre o povo da Palestina), de origem idumeia, quis fazer de Jerusalém a capital político-religiosa do reino. Ao lado do complexo do Templo mandou construir a Fortaleza Antônia, do lado norte, o ponto mais vulnerável da cidade, e sobre a colina ocidental, o palácio real com três torres de defesa. Construiu também em Jerusalém um teatro, um hipódromo, um anfiteatro e, fora da cidade, mandou levantar os monumentos sepulcrais em honra aos reis Davi e Salomão, e o mausoléu da família de Herodes. Fora de Jerusalém, a cidade de Samaria foi reconstruída, a costa palestinense foi provida de um porto artificial em Cesareia marítima. Herodes construiu palácios em Jericó, Asquelon e em diversas outras localidades do reino. Um pouco por toda parte foram erguidos templos que fomentavam a divinização do imperador de Roma.

Para a “segurança nacional (?)”, mas sempre na esteira da grandiosidade, foi reconstruída ou potencializada a rede de fortalezas que o rei Herodes tinha herdado dos Asmoneus no deserto de Judá, na Palestina. A Fortaleza de Kypros protegia a estrada que subia de Jericó para Jerusalém. Próximo a Belém estava a Fortaleza de Herodion, escolhida como mausoléu real. E perto da foz do Mar Morto estava a Fortaleza de Massada. Nos confins meridionais da província da Pereia, do outro lado do Rio Jordão, Herodes reconstruiu a Fortaleza de Maquerontes. Flávio Josefo conclui: “Depois de ter terminado todas essas construções grandiosas, fez exibição da sua grandeza também em muitas cidades fora do seu reino.”

Em 1963, em Jerusalém, o arqueólogo Virgílio Corbo iniciou pesquisa arqueológica da Fortaleza de Herodion. Contemporaneamente, o arqueólogo Yadin dirigia as escavações da Fortaleza de Massada. As escavações realizadas confirmam substancialmente as páginas entusiasmadas dedicadas por Flávio Josefo ao rei Herodes, o Grande. Este tinha desenvolvido uma política contrária a Flávio Josefo e ao povo judeu, política de subserviência ao imperialismo romano.

Em 1978, depois de quatro campanhas de escavações arqueológicas, os arqueólogos conseguiram dar um rosto à Fortaleza de Maquerontes, considerada por Flávio Josefo como um dos quartéis generais do sistema repressivo de Herodes. Diz o historiador Flávio Josefo: “Herodes considerou Maquerontes um lugar digno da máxima atenção para construir a mais potente fortaleza”. Maquerontes foi construída no tardio período helenístico e reconstruída sobre as precedentes ruínas de forma luxuosa, na época herodiana. Dentro da Fortaleza de Maquerontes estava um palácio real com todas as comodidades de uma cidade fortificada, com termas etc. Era dividida em três blocos. Do lado de fora estava uma cidade baixa.

Segundo Flávio Josefo[2], João Batista foi encarcerado na Fortaleza de Maquerontes e depois Herodes Antipas, herdeiro da megalomania e do caráter opressor e repressor do pai, Herodes o Grande, o mandou assassinar degolando-o. Nenhum evangelho recorda o nome do lugar onde Herodes tinha mantido João Batista preso. Os arqueólogos Stanislao Loffreda e Virgílio Corbo afirmam: “Antes de mais nada, a escolha da Fortaleza de Maquerontes para encarcerar João Batista nos parece natural e verídica. Pois Maquerontes era perto de onde João Batista, possivelmente, desenvolvia sua atividade e também fornecia a máxima segurança para o confim meridional da Pereia”. Segundo o Evangelho de Marcos, João Batista era mantido sob estreita observação durante sua prisão e acorrentado (Mc 6,16). É possível que o profeta tenha sido acorrentado em um subterrâneo escuro, isolado de tudo e de todos. Mas era visitado por discípulos (Mt 11,2-3). Até a triste notícia do seu assassinato chega aos discípulos facilmente, pois eles vêm sepultar o seu corpo (Mc 6,29).

Maquerontes não era uma simples fortaleza ou um quartel general, mas era uma prisão de segurança máxima que compreendia uma cidade. Considerando a grande popularidade que João Batista tinha no meio do povo (segundo Flávio Josefo e os evangelhos sinóticos: Mt, Mc e Lc), é possível sugerir que na cidade baixa, descoberta por pesquisas arqueológicas, existia discípulos de João Batista.

Na hipótese histórica de que o banquete oferecido por Herodes, durante o qual se decidiu degolar João Batista (M 6,14-29), se deu na mesma fortaleza, a descoberta arqueológica do refeitório ao sul do cortil dá ao relato do Evangelho de Marcos uma trágica imediatez.[3] É óbvio que os evangelhos não são obras históricas, mas teologias da História. E Flávio Josefo também precisa ser lido com criticidade. Mas é importante recordar a possibilidade das tradições orais e/ou escritas conservarem um bom grau de fidelidade aos fatos históricos.

Flávio Josefo também dedicou à figura de João Batista um parágrafo nas suas Antiguidades Judaicas: “Alguns judeus pensaram que o exército de Herodes (Antipas) havia sido destruído por Deus e que o rei havia sido justamente castigado pela execução de João, chamado “o Batista”. É que Herodes havia feito assassinar este homem bom, que exortava as pessoas a levarem uma vida honrada, tratando-se com justiça uns aos outros, […]. Enquanto o povo que se aglomerava ao seu redor ia aumentando, porque as pessoas estavam entusiasmadas com suas palavras, Herodes se encheu de temor de que o êxito que João tinha com o povo poderia desembocar em uma insurreição; porque parecia que se o profeta dissesse uma só palavra, o povo estava disposto a abraçar luta por justiça. Por isso, antes de que João pudesse provocar uma insurreição, Herodes considerou prudente antecipar-se aos acontecimentos, encarcerando o profeta e eliminando-o antes que esperar que se produzisse um levante popular; mas criou uma situação difícil para ele e depois teve que arrepender-se. Como resultado destas suspeitas de Herodes, João foi preso e colocado na Fortaleza de Maquerontes (uma prisão de segurança máxima) […]. E lá foi assassinado. E por isso os judeus acreditaram que a derrota do exército de Herodes foi uma atuação de Deus, que castigou Herodes para vingar a morte daquele homem”[4].

Lucas descreve João Batista sempre como inferior a Jesus, pois Jesus deve crescer e João, diminuir. Afinal, os evangelhos foram escritos por discípulos de Jesus Cristo. Se os discípulos de João Batista fossem escrever Evangelhos de João Batista, certamente colocariam Jesus como menor do que João Batista. Jesus seria o precursor de João Batista, que teria entrado para a história como o Messias, filho de Deus. Entretanto, se João Batista tivesse sido apenas reformista, não teria sido empurrado para prisão de segurança máxima e nem teria sido condenado à pena de morte, sob degolação. Enfim, João Batista e Jesus Cristo fizeram opção pelos pobres (opção de classe), foram revolucionários e, por isso, martirizados, mas estão muito vivos em cada militante que se dedica à construção de uma sociedade justa, democrática, solidária, (macro)ecumênica e sustentável ecologicamente.

BH, 17/12/2018.


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.

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[2] Antiguidade Judaica XVIII, 5,1-12.

[3] Cf. V. Corbo, “La fortezza di Macheronte. Rapporto preliminare”. LA (= Liber Annus) XXVIII, 1978, pp. 217-231; LA 1979, pp. 315-326; LA 1980, pp. 365-376; LA 1981, 257-286.  S. Loffreda, Ceramica di Mishnaqa-Macheronte (I sec. a. C. – I sec. d. C.).

[4] Antiguidade Judaica. XVIII, 5, 2, nn. 116-119.

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