Por Andreia Fanzeres*
Cuiabá, MT – Desde que o Brasil reconheceu que estava sob influência da pandemia do novo coronavírus (Covid-19), no mês de março, começou a adotar nacionalmente procedimentos compatíveis com o nível de resposta de “Emergência de Saúde Pública de Interesse Nacional”. Em que pesem as cotidianas críticas sobre a condução desta crise pelo Ministério da Saúde e o governo federal, o país passou a operar a partir da realidade da transmissão comunitária do vírus. Mas deixou de fora as terras indígenas. Esta é uma das conclusões do “Relatório técnico contendo análise dos Protocolos e Normativas do Ministério da Saúde e da Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena (SESAI/MS) para o enfrentamento da Covid-19 junto aos povos indígenas”, publicado pela OPAN.
A partir da análise de diversos documentos oficiais, entre eles os Informes Técnicos da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) desde o início da pandemia, o estudo destaca inconsistências relevantes nas orientações da Sesai voltadas ao atendimento e monitoramento de casos de contaminação. Em alguns deles, as orientações, em vez de potencialmente reduzirem os danos da pandemia, podem aumentar ainda mais a vulnerabilidade dos povos indígenas à Covid-19.
Um dos pontos centrais da pesquisa é o fato de que, até agora, o governo brasileiro não reconhece a inserção das comunidades indígenas no contexto de transmissão comunitária do novo coronavírus e isso tem consequências dramáticas para a saúde dessas populações. “Isso faz com que os DSEIs organizem a sua resposta a partir do nível de alerta e de contenção, aguardando que casos de Covid-19 sejam confirmados em aldeias para só então acionar o nível de resposta de perigo iminente ou de emergência em saúde pública. Mediante o caráter altamente transmissível do novo coronavírus e a dinâmica da vida comunitária dos povos indígenas, essa decisão faz com que não sejam adotadas medidas eficazes para evitar o contágio em massa das comunidades indígenas”, aponta a antropóloga e sanitarista Luciane Ouriques Ferreira, autora do estudo.
O não reconhecimento da transmissão comunitária do vírus nas aldeias enseja a visão equivocada de que as terras indígenas são espaços isolados, como se não houvesse movimentação constante de pessoas dos territórios paras as cidades, ou mesmo a situação de risco de contágio por atividades ilegais que eventualmente estejam ocorrendo nessas áreas. Além disso, essa lógica ignora uma maior vulnerabilidade dos povos indígenas diante de novas doenças e o histórico de contaminações e epidemias, impedindo que sejam adotados os protocolos mais adequados aos povos indígenas pelos profissionais de saúde.
Segundo Mario Nicácio, vice-coordenador da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a luta pela necessidade do reconhecimento da vulnerabilidade dos povos indígenas durante a pandemia se expressa na grande pressão pela aprovação de medidas urgentíssimas defendidas no Projeto de Lei 1142, de autoria dos deputados federais Joenia Wapichana, Professora Rosa Neide, Célio Moura, José Ricardo e Airton Falleiro. “Estão sempre tentando excluir os povos indígenas do grupo dos vulneráveis, tentando inibir o apoio da sociedade à mobilização indígena, e vimos isso bem claramente no planejamento da vacina contra Influenza. Os indígenas não eram grupos prioritários para a Sesai”, diz. “Também estamos discutindo com o Ministério Público Federal ações que obriguem as autoridades de saúde a incluírem nos prontuários a etnia do paciente, bem como outras informações que ajudem a diminuir a subnotificação”, enumera.
De acordo com dados do Comitê Nacional Pela Vida e Memória Indígena, liderado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e atualizados dia 25 de maio, 63 povos indígenas já foram atingidos pela pandemia, com estimativa de 1140 pessoas infectadas e registro de 131 óbitos. Essas informações demonstram que, enquanto a taxa de letalidade da população brasileira está em 6,5% segundo o Ministério da Saúde, entre os indígenas ela já é de 11,4%. A Sesai, por outro lado, contabiliza bem menos casos. Segundo os números oficiais totalizados em 23 de maio, havia 760 casos confirmados, 353 infectados e 35 mortes. Entre as razões dessa diferença está a falta de notificação e acolhimento de indígenas que vivem nas cidades.
Em sua fala durante a votação do PL1422, no dia 21 de maio, a deputada federal Joenia Wapichana esclareceu que este é um dos problemas que o projeto de lei pretende resolver. “Não estamos querendo atenção especial. Quando tem um indígena na cidade, dizem que esse atendimento não é com eles, e sim com a Sesai. Mas a Sesai não tem programa para atendimento na cidade, só oferece o básico e não os de média e alta complexidade”, explica.
Outra falha dos procedimentos definidos pela Sesai tem a ver com o modo de detecção de contaminações e primeiros cuidados. Conforme apontado pelo estudo da OPAN, tanto para indígenas quanto para os profissionais de saúde, são estabelecidos como situação de quarentena apenas os casos com manifestação de sintomas. Entretanto, já se sabe que muitas pessoas com a Covid-19 são assintomáticas e, mesmo assim, podem transmitir a doença, sendo necessário quarentena por igual período para as duas situações.
Recomendações
Além de lacunas de orientações e protocolos, o relatório traz recomendações visando a qualificação do atendimento de saúde indígena no contexto de pandemia, começando pelo reconhecimento urgente de que as comunidades indígenas se encontram em contexto de transmissão comunitária do novo coronavírus, orientando os Distritos Sanitários Especiais de Saúde Indígena (DSEIs) a agir com celeridade no enfrentamento da pandemia de Covid-19 junto aos povos indígenas.
É necessário também realizar as articulações com a rede do Sistema Único de Saúde (SUS) para atenção aos indígenas que residem nas cidades, contemplando a declaração de identidade indígena e etnia, a implementação de medidas de quarentena e isolamento domiciliar para todos os indígenas em viagem e que vêm de centros urbanos. Além disso, garantir que todos os profissionais de saúde cumpram quarentena antes de entrarem em aldeia, considerando a limitação de realização de testes rápidos, que apresentam maior sensibilidade para identificar a Covid-19 apenas após sete dias do desenvolvimento dos sintomas.
Também segundo o estudo, recomenda-se que um modelo comunitário de vigilância em saúde seja implantado a fim de encaminhar com celeridade todos os casos de síndrome gripal e síndrome respiratória aguda grave suspeitos de Covid-19. Ainda, que se incentive a busca ativa dos casos suspeitos pelos Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e Agentes Indígenas de Saneamento (Aisan) nas visitas domiciliares, e seja criada uma rede para elaboração participativa de medidas de prevenção e controle nas aldeias. Por fim, a pesquisa sugere o envolvimento de outros programas de saúde indígena no enfrentamento da pandemia, melhorias na qualidade do texto dos Informes Técnicos da Sesai, adoção de medidas imediatas para que as Casas de Saúde Indígena (Casais) não se tornem locais de contaminação, garantia de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) adequados e em quantidade suficiente para todos os profissionais da saúde indígena que atuam nas aldeias e articulação com as secretarias estaduais de saúde e organizações da sociedade civil para o funcionamento de uma frente ampla de combate à Covid-19.
“Este é um estudo que ajuda a enxergar um contexto mais ampliado da saúde indígena no país. São olhares que fornecem subsídios para que a sociedade consiga traçar ações em conjunto com a saúde pública para minimizar o impacto dessa doença”, considera Ivar Busatto, coordenador geral da OPAN.
*Jornalista e coordenadora do Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.
Acesse o estudo na íntegra aqui.
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