15/09/2020
Fonte:https://ufmg.br/comunicacao/noticias/nao-me-mandem-fazer-direito-eu-nao-sou-colonizado-provoca-nego-bispoLavrador e pensador quilombola ministrou a primeira palestra do 52º Festival de Inverno UFMG
“Falo tagarelando, escrevo mal ortografado, canto desafinando, danço descompassado, só sei pintar borrando, meus desenhos são enviesados. Esse é o meu jeito. Não me mandem fazer direito. Eu não sou colonizado. Vivas.” Com essa provocação, o lavrador e pensador quilombola Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, abriu, na noite desta segunda-feira, 14, a palestra Presenças orgânicas, invisibilidades sintéticas, a primeira do Seminário Culturas em Pensamento, uma das atrações do 52º Festival de Inverno UFMG.
Nêgo Bispo é uma das principais vozes do pensamento das comunidades tradicionais do Brasil. Morador do Quilombo do Saco-Curtume, no Piauí, ele é poeta, escritor, professor, ativista político e militante do movimento social quilombola e de direitos pelo uso da terra. É ainda um dos principais críticos do modo como os povos originários (indígenas) e os afrodiaspóricos são tratados no Brasil. “Sempre fomos tratados de forma coisificada. Os indígenas são vistos historicamente como selvagens, e os afro, como pertencentes a organizações criminosas”, afirmou.
Em sua conferência, Bispo lembrou que a Lei Áurea, de 1888, aboliu a escravidão, mas não revogou a criminalização dos povos afro e originários. “Entre a Lei Áurea e a Constituição de 1988, nossas organizações (aldeias, quilombos e comunidades afins) foram invisibilizadas e silenciadas”, disse. A Constituição de 88 poderia ter mudado essa história, mas a empreitada revelou-se incompleta. “A nova constituição recepcionou o discurso de que o Brasil seria um país plural, pluriétnico. Mas isso foi só na teoria. Na prática, não produziu as condições necessárias para que os povos indígenas e africanos da diáspora se consolidassem como expressões de um país constitucionalmente pluriétnico. Eles confluíram na Constituição como organização de direito, mas não trouxeram suas organizações históricas e cosmológicas”, argumentou.
Historicamente alijadas da vida institucional e social do país, comunidades indígenas e afrodiaspóricas acabaram firmando uma espécie de aliança cosmológica ao longo do tempo, teorizou Nego Bispo. “Os quilombos haverão de continuar confluindo com as aldeias; os quilombos e as aldeias, com as favelas, e as aldeias e favelas, com organizações afins”, sugeriu o pensador.
Crítica ao ‘mono’
Na conversa com o público mediada pela mestranda em Sociologia e diretora de Políticas de Ações Afirmativas da Pró-reitoria de Assuntos Estudantis, Daniely Roberta dos Reis Fleury, Nêgo Bispo aprofundou suas reflexões sobre o colonialismo e as estratégias para combatê-lo. Ele criticou, por exemplo, o monoteísmo dos povos colonialistas, de origem cristã e europeia, e contrapôs essa característica cultural com a visão dos africanos na diáspora. “Ser mono é muito pouco. Nosso pensamento é plural. Somos contracolonialistas. Viemos para contrariar”, afirmou.
Ele também criticou o modelo de família das sociedades eurocristãs, centrado no tripé pai-mãe-filho. “Notem que Deus é o pai de Jesus, que não tem filho. Ou seja, Deus não tem neto. É pai, filho, no máximo, o Espírito Santo. É uma cosmologia muito limitada; a vivência é mínima. Os avós estão no asilo, e as crianças estão na creche. Entre os povos africanos, a dimensão familiar é muito maior, e assim a capacidade de pensar também é muito maior”, contrapôs.
Nêgo Bispo também é crítico de conceitos e lemas da sociedade contemporânea, mesmo aqueles com intenções libertárias. É o caso de “Vidas negras importam”, empunhado como mensagem antirracista em várias partes do mundo. “Não é uma frase quilombola, afro, é uma frase da esquerda, colonialista. Notem que essa ideia é mono. A esquerda diz “vidas negras importam”, e a direita retruca dizendo que vidas brancas importam. Por isso, digo que todas as vidas importam. Não falo só da vida humana. Falo da vida animal, vegetal, mineral…”
Ao responder a uma pergunta sobre pensamento quilombola e meio ambiente, Nêgo Bispo manifestou sua discordância com o termo ecologia. “Não uso essa palavra. Prefiro cosmologia. Povos africanos na diáspora discutem o cosmo, que é amplo, nele cabe tudo. Ecologia, desenvolvimento sustentável e outros conceitos foram criados dentro da estrutura colonialista para se transformarem em mercadoria”, argumentou.
Sincero perante uma audiência formada majoritariamente por acadêmicos, o pensador quilombola explicou por que não aceitaria títulos conferidos por uma instituição universitária nos moldes do Doutor Honoris Causa ou mesmo do Notório Saber, recém-instituído pela UFMG. Em sua visão, as universidades não estão preparadas para certificar um saber tradicional. “Certificado é como um código de barra. Serve para informar um preço, não serve para dizer se sabe ou não sabe”, argumentou.
Por outro lado, ele elogiou a temática do 52º Festival de Inverno UFMG, que busca projetar outros mundos possíveis. “É um festival certo, na hora certa, no lugar certo. Aí, nesse território que convencionaram chamar de Minas Gerais, encontram-se os mais variados modos de vida afro-pindorâmicos, com seus congados e terreiros. O Festival está proporcionando a possibilidade de transformar divergências em diversidade”, afirmou Nêgo Bispo.
Continuidade de uma missão
Na cerimônia de abertura que antecedeu a palestra de Nêgo Bispo, a reitora Sandra Regina Goulart Almeida disse que, com a realização do Festival em condições atípicas – on-line e em tempos de pandemia –, a UFMG continua cumprindo a missão que se propôs desde o início da crise sanitária. “Estamos nos movendo agora para acolher a cultura e os artistas tão duramente afetados pela pandemia. Vivemos a maior crise social em tempos de paz. Uma crise que atinge os mais vulneráveis: pobres, negros, indígenas, quilombolas e mulheres”, destacou.
De acordo com a reitora, a pandemia trouxe uma dura e valorosa lição. “Se aprendemos algo doloroso, foi que é preciso celebrar a vida acima de tudo. Celebrar a solidariedade, as pessoas e o meio ambiente. É preciso enxergar outros mundos possíveis, com outras concepções e valores éticos e culturais”, defendeu.
Ao lado da equipe de curadores do evento, o diretor de Ação Cultural, Fernando Mencarelli, destacou a necessidade de se reinventar o Festival para viabilizá-lo em tempos de crise. “Criamos um campo para partilha e convergência para perguntas e respostas, pensamentos e criações em torno dessa crise que estamos enfrentando. Vivemos uma crise humanitária, tecnológica, política, ou seja, uma crise de múltiplas dimensões”, disse. Para Mencarelli, é hora de reunir “pensamentos e potência criativa” para partilhar reflexões urgentes. “Como podemos atravessar esta fase e construir o futuro? Temos urgência de imaginar uma utopia em tempos distópicos”, defendeu.
Essa tarefa ficará a cargo de artistas, pensadores, ativistas e líderes indígenas e quilombolas convidados. As mais de 11 mil inscrições nas atrações do evento indicam que a empreitada é promissora. “Tivemos a adesão entusiasmada dos convidados e artistas que criaram trabalhos originais movidos pelas perguntas que orientam o Festival”, relatou o diretor de Ação Cultural.
As atividades do primeiro dia do 52º Festival de Inverno UFMG estão disponíveis no canal UFMG Cultura no YouTube. Ainda na noite de segunda-feira, foi realizada a roda de conversa Sonhos de outros mundos e outros tempos, com o escritor, ambientalista e conferencista brasileiro de origem tapuia Kaká Werá Jecupé e o professor Roberto Monte-Mór, da Face, e o lançamento da exposição de fotografias Siwẽttêt: resistência, do antropólogo indígena Edgar Kanaykõ Xakriabá. As fotos podem ser vistas no Medium da Diretoria de Ação Cultural. Assista também ao vídeo produzido pela TV UFMG sobre o trabalho de Edgar.
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