13/03/2021
A Rolling Stone Brasil conversou com a ativista Alice Pataxó e a socióloga Avelin Buniacá para entender as problemáticas da série e as possibilidades de reparação nos novos episódios
No dia 5 de fevereiro, a Netflix lançou a série Cidade Invisível, uma produção brasileira com a proposta de retratar crenças indígenas nos tempos atuais por meio de um suspense policial ambientado no Rio de Janeiro. Criada pelo indicado ao Oscar Carlos Saldanha (Rio), o seriado conta com Marco Pigossi, Alessandra Negrini e Fábio Lago no elenco.
Na trama, o policial ambiental Eric deseja investigar a misteriosa morte da esposa dele, Gabriela (Julia Konrad). Conforme tenta conectar pistas soltas, Eric se envolve com o BotoCor-de-Rosa, Iara, Cuca, Saci-Pererê, Curupira e Tutu Marambá, os quais mostram que as lendas são reais e sobrevivem em meio à modernidade cética.
Não demorou muito para a série ganhar popularidade e entrar para o Top 10 da plataforma de streaming no Brasil. De acordo com o Notícias da TV, a série alcançou o mesmo nível de sucesso em mais de 40 países.
Contudo, da mesma forma que Cidade Invisível ganhou elogios por investir em uma narrativa sobre a cultura indígena, a série atraiu críticas pela ausência de atores e profissionais indígenas na produção – além da distorção e folclorização das crenças.
Apesar das críticas, a plataforma de streaming confirmou a produção da segunda temporada da série e, segundo o Notícias da TV, o diretor afirmou em nota oficial que leu “bastante sobre o que as pessoas desejam para a continuação” e está “levando tudo em consideração para trazer ao público uma sequência bacana.”
Diante desta declaração, surge uma questão inevitável: É possível corrigir os erros da primeira temporada? Para descobrir a resposta desta pergunta, a Rolling Stone Brasil conversou com Alice Pataxó, ativista, comunicadora e colaboradora do projeto jornalístico Colabora, e Avelin Buniacá, socióloga, professora, especialista em gestão de políticas públicas em gênero e raça e coordenadora do Comitê Mineiro de Apoio às Causas Indígenas.
Primeiro, é preciso entender quais são as principais problemáticas da série. Ao longo de sete episódios, o espectador conhece a história de origem das chamadas entidades, que ganharam habilidades especiais após viverem eventos fatais e traumáticos. Contudo, a produção comete deslizes ao retratar algumas figuras tradicionais, como a Iara, o Curupira e o Boto Cor-de-Rosa.
Antes de entender a distorção dessas histórias, vale lembrar que as crenças abordadas não pertencem a um único povo indígena, afinal, existe uma grande variedade étnica no Brasil, como apontou Alice. Além disso, é importante ressaltar que algumas crenças também estão presentes na cultura ribeirinha – a qual é retratada pela Vila Toré em Cidade Invisível.
Para a ativista, a história do Curupira foi um dos arcos que chamou atenção dela na série. “O Curupira, eu vejo de um jeito muito diferente. Para nós [pataxós] é uma entidade muito de paz,” disse Alice sobre o anti-herói, que, no seriado, deixa a floresta para se isolar em uma ocupação e se entorpecer com bebidas alcoólicas.
A apresentação de Iara também veio acompanhada de equívocos. Avelin explicou que a série passa a impressão de que a sereia Camila é a mãe d’água Iara, contudo, esta entidade capaz de gerar vida é tradicionalmente da água doce. No seriado, ela é vista nas águas do mar.
“Acho que há uma distorção grande em relação à sereia [Camila] e à mãe d’água Iara. Eles colocam como se fosse a mesma coisa e não é. A gente sabe que a mãe d’água tem uma diferença de relação com a água doce e com a água salgada.”
Boto Cor-de-Rosa, por sua vez, é retratado como um homem branco que seduz mulheres indígenas e ribeirinhas – uma das adaptações mais fiéis da série, segundo Alice. Porém, Avelin acredita que a produção poderia ter ido além da lenda para trazer uma discussão importantíssima de gênero.
O grande sucesso de Cidade Invisíveltambém traz consequências negativas. Avelin lembra que a série, como uma obra de ficção, possui licença poética para adaptar histórias e criar arcos dramáticos, porém, em um cenário em que os povos indígenas são invisibilizados, a distorção das lendas não é clara e corre o risco de ser levada como verdade, especialmente em outros países.
“Eu acho perigoso quando as pessoas fecham os ouvidos para outras narrativas, então, olha, se você assistiu Cidade Invisível e toma isso com 100% de verdade, como uma verdade dos nossos povos, é complicado […] Acho complicado e perigoso, porque reforça um apagamento histórico e nos coloca nesse lugar sincrético.”
A socióloga continuou: “Eu acredito que se nós, indígenas, pudéssemos contar a história da mãe d’água, pudéssemos contar a história do Saci enquanto uma entidade indígena, um encantado indígena, pudéssemos contar essa história do Boto denunciando a violência de gênero da forma que aprendemos, a gente não precisaria estar desconstruindo isso hoje.”
Da mesma forma, Alice compara a visão estereotipada do índio no Brasil com a visão estigmatizada do Brasil que ainda se propaga ao redor do mundo.
“Se você não se sente confortável com isso, por que você se sente confortável em reduzir a capacidade do indígena e simplesmente apagar a existência dele?,” questiona a ativista. “Eu vejo isso de uma maneira muito problemática, porque não é só o Brasil que pensa dessa maneira. A gente está ensinando outros países a pensarem do mesmo jeito.”
Alice espera que as críticas ajudem a evitar novos erros na produção, mas também deixa claro que a falta de representatividade não é um problema exclusivo da Netflix e não é preciso sustentar uma “guerra eterna” contra a plataforma de streaming ou os atores do seriado, pois esta é uma questão simples de ser resolvida.
“[Espero] que entendam que é muito importante levar para produção, levar pra dentro dessa história, o protagonismo indígena,” disse Alice. “Se a gente está falando de história indígenas de tal povo, que a gente não faça uma pesquisa de Wikipédia […] Não é por falta de conhecimento ou por distanciamento dessas pessoas, porque elas existem, elas estão aí e elas também querem essa oportunidade. Seria muito interessante a Netflix e toda produção pensar nisso.”
Por fim, Avelin confessou que não acredita que a plataforma de streaming consertará as falhas apresentadas, pois trazer atores indígenas implicaria em uma grande mudança de narrativa. E, caso a plataforma incorpore artistas indígenas no elenco, mas mantenha a trama apresentada, o problema seria ainda maior.
“Se eles contratarem pessoas indígenas para poderem suprir esse buraco, pelo menos no sentido de uma reparação, mas se continuarem contando a mesma história vai ser pior, porque você vai ter pessoas indígenas legitimando uma distorção.”