24/03/2021
Ciganas, quilombolas, indígenas, carroceiras, entre tantas outras. Muitas dessas pessoas cruzam nossos caminhos diariamente, no campo ou na cidade. Somadas, são grande parte da população brasileira e ocupam um vasto território de norte a sul do país. Suas culturas e costumes estão
presentes em cada uma e cada um de nós.
Estamos falando dos povos originários e das comunidades tradicionais, que ao longo dos anos vêm sendo marginalizadas e apartadas de seus direitos enquanto cidadãs e cidadãos e que, além da riqueza de sua ancestralidade, fazem parte da construção do que hoje chamamos de Brasil.
Cada qual com uma cultura e idiomas próprios, como é o caso dos povos indígenas, essas populações lutam pela valorização e preservação de sua história. Em comum, travam uma batalha pelo reconhecimento de suas terras, ou melhor, de seus territórios, tomados por quem tem poder e usa a lei a favor dos seus interesses econômicos.
Além de um bem material e essencial à subsistência, sendo o local onde moram e podem, por exemplo, cultivar, o território é também palco de acontecimentos que narram a história desses grupos, é onde interagem, enterram antepassados, e preservam viva e pulsante suas memórias.
Este ano, o Conjunto CFESS-CRESS definiu como tema do Dia das e dos Assistentes Sociais, a luta dos povos originários e comunidades tradicionais. O CRESS-MG, alinhado a essa bandeira de luta, traz, na voz de mulheres, breves depoimentos de algumas dessas populações.
Há mais de 300 etnias e mais de 50 línguas indígenas no Brasil. Somos nações com distintos costumes e línguas. Em comum, temos uma forte ligação com a espiritualidade, o respeito pela natureza, pelas pessoas mais velhas e pelas nossas representações do divino, que são nossos ancestrais
que nos acompanham e nos abençoam.
A luta pela demarcação e pela proteção dos territórios é, hoje, nossa principal causa em comum. Posseiros, mineradoras, garimpeiros e o agronegócio avançam sobre nossas terras, provocando migração em massa, empobrecimento, além do genocídio e apagamento da nossa identidade, história e
cultura.
É um projeto que se inicia ainda na escola, quando ensinam que os povos indígenas fizeram parte de um passado longínquo, sem pensar na população indígena contemporânea. Precisamos ter acesso a formas de nós mesmas contarmos nossa trajetória, pois a gente existe, resiste e continuamos construindo história e cultura.
Tenho 40 anos, cinco filhos e uma neta. Nasci no Quilombo do Gurutuba, um dos maiores quilombos do estado, situado no Norte de Minas. Com quase 50 mil hectares e reunindo mais de 30 comunidades quilombolas, esta também é uma das regiões mais carentes de Minas Gerais.
A pobreza do nosso povo é uma herança que se perpetua dos anos em que nossas antepassadas e antepassados foram escravizados. O racismo é consequência desse passado, mas é preciso dizer que foram essas pessoas que carregaram nas costas, literalmente, a riqueza que transformou o Brasil em uma grande potência.
Preservar nossa cultura é preservar nossa história e há muitas formas de identificá-la na sociedade brasileira, como no caso da gastronomia: o angu, o beiju, o frango com quiabo e a feijoada são comidas típicas dos quilombos e que surgiram nas senzalas. Sem falar nas festividades, como o batuque, o reisado, a folia de reis ou o congado.
Estima-se que existam mais de oito mil comunidades quilombolas no país. No processo de opressão e resistência, as mulheres foram e são essenciais: no passado, como apoio aos guerreiros e muitas vezes as que guerreavam, e hoje, ainda como esteio da família, quem cuida da roça e da preservação de nossas tradições.
Aos nove anos de idade, iniciei no candomblé e fiz dele minha escola. Não completei o ensino fundamental, mas no terreiro aprendi para além das tradições religiosas, a resistir e a militar pelos direitos e pela autonomia dos povos tradicionais. Para mim, o candomblé é mais que um espaço de fé.
É tradição e socialização: onde você aprende a ver no outro a sua própria identidade. É uma herança viva de tudo que me foi deixado por pertencimento do que sou. Por isso, o candomblé preserva a vida e a memória, mesmo estando nos lugares mais apagados das políticas públicas.
Temos organização própria, baseada no acolhimento. Num país que mata quem não se encaixa nos padrões socialmente impostos, resistimos ao modelo cristão da família: aqui, todas e todos são família e o matriarcado é preservado como simbologia da vida continuada. O candomblé é o alimento do conceito moral para uma sociedade justa, diversa e igualitária.
Por conta do racismo religioso, os terreiros têm sido vítimas de práticas violentas e assassinas que além de contribuir com o genocídio da população negra, são uma forma criminosa de apagamento cultural. Mas aos poucos, vamos ganhando respeito e reconhecimento. Eu mesma recebi o título de mestre de Saberes
Tradicionais pela UFMG!
Sou filha e neta de Calon, que também é a etnia do meu marido. Hoje são poucas as ciganas e ciganos que vivem o nomadismo, a maioria de nós luta pelo direito de ter um lugar para se fixar e viver de forma digna. No acampamento que moro em Ibirité, por exemplo, nem banheiro temos.
Mas no fim do ano passado, nossos esforços surtiram efeito e conseguimos a cessão de um terreno de sete mil metros quadrados por vinte anos que poderá ser usado para moradia, assim como para a realização de atividades culturais e de geração de renda, voltadas aos públicos interno e externo
As três etnias hoje presentes no país, Calon, Rom e Sinti, vivem de forma muito diferente entre si: algumas bem mais vulnerabilizadas que outras. Ainda assim, posso dizer que em comum, temos a tradição de trabalhar como comerciantes ou com artesanato e a luta por segurança e educação que também nos une.
Educação, pois muitas e muitos de nós ainda não foram analfabetizados, o que fecha portas e gera discriminação e preconceito. Já a segurança, pois nossas tendas ficam em espaços abertos, sujeitas à violência, assaltos etc. Além disso, somos vítimas do abuso de policiais que apreendem nossas mercadorias quando trabalhamos.
Lutamos por políticas públicas para nossos povos e por reconhecimento. Honramos nossas mães e nossos pais e sabemos que para preservar nossa cultura, dialetos e tradições é preciso manter viva nossa memória e, portanto, todas e todos que integram nossa comunidade
“Sou Darli Rezende, mais conhecida como Lora da Carroça. Vivo de aluguel numa casa humilde, em Contagem, e trabalho há quinze anos como carroceira. É através da carroça que eu ganho meu sustento e crio minhas netas. Ao contrário do que se pensa, por aqui tratamos bem os animais, pois são como parte da família.”
Nos últimos meses, essa comunidade tradicional que remonta a origem da cidade de Belo Horizonte, antigo Curral del Rei, foi alvo da Lei Municipal 11.285, que proíbe as carroças e põe em risco o trabalho de dez mil pessoas, como é o caso de Darli. No cerne do debate, está a questão do suposto maltrato animal.
Mas, para muitas defensoras e defensores dos direitos humanos, a decisão se pauta em uma política racista e higienista tão comum a populações marginalizadas como as que compõem as dezenas de comunidades tradicionais do país. E se de um lado, há quem oprime, de outro, há quem apoia e resiste.
Darli, por exemplo, é a única mulher carroceira da Associação dos Carroceiros de Contagem. Vive uma rotina pesada e sabe que nos próximos anos, pode perder seu ofício e sua renda, mas ainda assim, encontra forças para lutar por melhores condições de vida para todas e todos de sua comunidade.