05/07/2021
Quando alcançam postos de destaque, pesquisadores não brancos podem se ver submetidos a situações de constrangimento. É comum que, em vez de ressaltar o currículo acadêmico do profissional negro, foco vá para outros aspectos da vida
Em um feito reverenciado pela comunidade científica em todo o mundo, as pesquisadoras Jaqueline de Jesus e Ester Sabino, do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP), levaram apenas 48 horas para decodificar o material genético do novo coronavírus, até então desconhecido. Na época, estudiosos de outras nações vinham levando, em média, 15 dias para concluir a mesma investigação. Passo importante para o desenvolvimento de imunizantes contra a Covid-19, a descoberta da estrutura viral desse organismo que parou o mundo ocorreu, no Brasil, pelas mãos de duas mulheres, uma delas negra.
“Vivemos uma mudança significativa no cenário brasileiro no governo anterior. Os programas sociais, como o Prouni e o sistema de cotas, permitiram o acesso de uma parte da população que jamais teria tido oportunidade de ingressar numa faculdade. Estruturalmente, sabemos que a maioria da população pobre do nosso país é negra. É uma dívida histórica, que perpassou séculos. Ver jovens negros, nordestinos, ocupando espaços nas universidades me deixa muito esperançosa em relação ao futuro. Sem dúvida teremos cada vez mais representantes exercendo cargos e também obtendo resultados importantíssimos para a sociedade”, disse Jaqueline em entrevista à revista “Marie Claire” em maio de 2020.
De fato, é notável que um volume crescente de pessoas negras tem ingressado em universidades nos últimos anos. Um levantamento divulgado pela Agência Brasil, que foi feito pelo site Quero Bolsa com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), detalha que o número de alunos pretos ou pardos no ensino superior subiu quase 400% entre 2010 e 2019. O estudo detalha que essa população chega a 38,15% do total de matriculados. Mas, em alguns cursos, como em medicina, relações internacionais e engenharia química, o índice não chega a 30%.
Apesar dessa crescente presença nos espaços institucionais de produção de conhecimento, o acesso continua desigual. Cabe lembrar que essas taxas de matrículas, abaixo de 40%, seguem aquém do percentual de representatividade no conjunto da população: negros e negras correspondem a 56% dos brasileiros. A defasagem é indício de uma desigualdade no ingresso universitário que tem viés racial. Foi o que demonstrou a pesquisadora Tatiana Dias Silva, que desenvolve estudos sobre ações afirmativas e sobre a população negra na educação superior. Em uma apuração publicada, no ano passado, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ela apontou que 36% dos jovens brancos com 21 anos estão estudando ou terminaram sua graduação, índice que, entre pretos e pardos, cai pela metade (18%).
A presença negra nas universidades é ainda menor entre alunos da pós-graduação e entre docentes. Segundo pesquisa da Liga de Ciência Preta Brasileira (LCPD), só 2,7% dos pós-graduandos são pretos e apenas 12,7% são pardos. Amarelos correspondem a 2%, e indígenas, a 0,5%. Já os brancos são maioria, ocupando mais de 82% dessas cadeiras, conforme levantamento que considerou dados da Plataforma Lattes, serviço do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Inovação ameaçada. Segundo uma pesquisa da Universidade Stanford, dos Estados Unidos, pesquisas conduzidas por negros e mulheres tendem a ganhar menos destaque, mesmo sendo mais inovadoras do que aquelas produzidas por seus colegas brancos. O estudo sugere que mais diversidade em ciência poderia se converter em mais inovação.
Desvalorização
Não à toa a presença de pessoas negras em espaços institucionais de conhecimento segue sendo uma exceção, como confirmam as estatísticas sobre o tema. São diversos os obstáculos para o acesso dessa parcela da população à educação superior. E mesmo os que chegam lá precisam lidar com estruturas opressivas, que promovem o apagamento desses pesquisadores e a desvalorização de saberes tradicionais.
“Este é um fenômeno que podemos compreender à luz do conceito do racismo estrutural, que é uma herança de um processo colonial que criou estruturas verticais, quase como castas. Nessa estrutura, espera-se que negros e negras ocupem lugares na base das relações de poder. Por isso, não estranhamos ao vermos um maior número de pessoas negras em serviços que consideramos de subalternidade, como faxineiros e porteiros, pois naturalizamos que aquele é o lugar reservado para esses indivíduos”, examina Wagner Viana, professor do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Da mesma maneira, quando alcançam postos de destaque, pesquisadores não brancos podem se ver submetidos a situações de constrangimento. Afinal, parecem ocupar um espaço que não está reservado a eles, conforme opera a lógica do racismo estrutural. Um episódio flagrante que simboliza bem essa realidade ocorreu em 26 de junho, Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura. Na ocasião, participando de uma mesa virtual sobre o tema, o advogado Joel Luiz Costa foi apresentado de maneira reducionista e estereotipada. O evento foi idealizado e organizado pelo Grupo Vozes do Silêncio com apoio do Prerrogativas, que se classifica como um espaço que reúne juristas, advogados, juízes e outros profissionais do direito.
Após Costa se queixar publicamente do tratamento a ele dispensado, os organizadores reconheceram a falha em uma nota oficial. “Em vez da menção ao seu currículo acadêmico e sua trajetória já destacada, o advogado Joel Luiz Costa foi apresentado com destaque a outros aspectos de sua vida. E ele protestou, correta e justamente, pelo que chamou de ‘reducionismo’ e mostrou indignação em suas redes sociais. Cabe aqui que se faça um complemento. O que Joel Luiz Costa faz agora pelo futuro das causas nas quais está engajado e pelo combate ao racismo é muito maior do que eventuais curiosidades de seu passado. Joel Luiz Costa é advogado criminalista pós-graduado. É cofundador e coordenador executivo do Instituto de Defesa da População Negra e do Núcleo Independente e Comunitário de Aprendizagem do Jacarezinho. É membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ e coordenador adjunto do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais”, lê-se no documento publicado pelo Prerrogativas.
O acontecimento, na avaliação da ativista, multiartista e pesquisadora científica Zaika dos Santos, é revelador de uma dinâmica social que busca, inconscientemente, apagar a presença de pessoas negras em posições de destaque. “É inaceitável e inadmissível que qualquer instituição, grupo, rede, coletivo, partido ou veículo de comunicação não respeite trajetórias negras e tente negá-las reforçando estruturas racistas. Estamos em 2021, e, de fato, é uma obrigação coletiva compreender o que é o racismo científico, estrutural, institucional e hegemônico, e não praticá-lo”, critica.
Racismo acadêmico
Parafraseando o antropólogo Alex Ratts, Zaika dos Santos aponta que o “o racismo acadêmico reside nos processos seletivos, nas orientações, nas disciplinas, nos grupos de pesquisa, na escrita, na negação dos conhecimentos negros indígenas e populares”. “O premiado geógrafo Milton Santos (1926-2001) já denunciou o nepotismo acadêmico que tem como tentativa frustrada criar núcleos que reforçam um pejorativismo histórico e científico do conhecimento. A reconhecida filósofa Sueli Carneiro também já denunciou o epistemicídio na produção de conhecimento”, complementa, referindo-se a dois conceitos que ajudam a compreender as particularidades de como o racismo opera nos espaços institucionais de produção de saberes.
“Eu vejo que a maneira de produzir nomeações sobre lugares de conhecimento é uma das várias formas com que o epistemicídio opera, sempre visando o apagamento de conhecimentos, de saberes, e de culturas de povos não brancos. Em última instância, visando a morte simbólica de povos indígenas e negros”, pontua o professor Wagner Viana.
Como exemplo do fenômeno, o estudioso cita que as tecnologias de cultivo foram sequestradas de populações originárias ou foram importadas de África e, posteriormente, transformadas em ciência branca. “Estamos habituados a ter notícias de uma agricultura de sub-existência, que seria praticada pelos povos do sertão nordestino. É uma nomenclatura que, de partida, situa essa prática como de um sub-existir”, sinaliza, acrescentando que, com o tempo, essas técnicas foram apropriadas, foram sistematizadas e ganharam outras nomeações.
“Passamos a falar em agricultura antrópica, em permacultura… Na prática, ao mudar o nome, reconfiguramos esse lugar de conhecimento, que passa a ser visto como destituído de sua origem. Ou seja, em vez de um saber indígena ou quilombola, essas técnicas passam a ser lidas como uma tecnologia acadêmica e branca em um processo em que o conhecimento ‘orgânico’ se torna ‘sintético’”, critica, fazendo menção a conceitos utilizados pelo pensador quilombola piauiense Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo.
Correção. Na tentativa de, em alguma medida, frear esse histórico apagamento e conferir, na universidade, legitimidade aos saberes tradicionais, a UFMG regulamentou o reconhecimento do Notório Saber. Por meio dessa iniciativa, pessoas com alta qualificação, cuja contribuição seja relevante para sociedade, poderão se candidatar ao título, conforme estabelece a Resolução Complementar 01/2020, do Conselho Universitário, que se reuniu em 28 de maio do ano passado.
“O Notório Saber atribuirá titulação acadêmica em nível de doutorado a detentores de saberes acadêmicos, científicos, artísticos e culturais, já presentes na universidade, e de tradições indígenas, afro-brasileiras, quilombolas e outras oriundas das culturas populares”, explica a instituição.
Na avaliação de Wagner Viana, a iniciativa é importante. “Mesmo assim, percebo que há uma certa resistência, pois há colegas que ainda estão presos aos protocolos, o que pode implicar em uma postura racista quando precisamos nos deslocar e tratar de outros tipos de conhecimento”, argumenta ele, que defende que a universidade deve se reconhecer como um dos espaços de produção de conhecimento, e não como único lugar para tal.
Em outra frente, o estudioso lembra que a UFMG inicia nesta segunda-feira, dia 5, mais uma etapa do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais, que foi criado em caráter experimental em 2014 e instituído formalmente em 2015.
“Este programa encontra-se em diálogo e se inspira na proposta do Encontro de Saberes do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCTI) de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa da Universidade de Brasília (UnB). Ao conceder hospitalidade aos saberes das culturas afrodescendentes, indígenas e populares, o projeto procura abrir a universidade a experiências de ensino e pesquisa pluriepistêmicas”, informa o site do Encontro de Saberes.
Neste ano, as rodas de conversa serão realizadas virtualmente, por meio da plataforma Zoom. O conteúdo será transmitido no canal do programa no YouTube.
Percurso é repleto de obstáculos
Wagner Viana indica que a pouca presença de pessoas negras no ambiente universitário e na ciência é explicada por uma série de fatores.
“As bolsas de pesquisa, em geral, exigem dedicação exclusiva. E são priorizados pesquisadores que não têm outra fonte de renda. Mas quem, no Brasil, pode se dar ao luxo de chegar à pós-graduação sem necessitar de um emprego?”, questiona. Ele lembra também que as populações não brancas, antes de chegarem ao ensino superior, têm menos acesso a um sistema de educação de qualidade. Ele próprio viveu essa experiência.
“Na infância e adolescência, eu tinha que trabalhar e estudar. Completávamos nossa renda coletando material reciclável. Foi assim que fui construindo uma pequena biblioteca. Mas veja, esse percurso é completamente diferente do de meus colegas”, pontua. Quando ingressou para o doutorado, o financiamento da pesquisa foi negado a Wagner. “A justificativa é que eu já possuía renda, como professor. Dessa maneira, não pude me dedicar exclusivamente ao projeto”, expõe.
“Existe um desejo de se criar uma universidade que seja pública e impessoal, o que é legítimo. Mas essa postura, quando se fecha em si, pode operar em uma lógica que acaba perpetuando exclusões. Na contramão dessa dinâmica, acredito ser preciso que as estruturas e protocolos das instituições se abram ao trânsito de vidas diversas”, avalia.
Racismo científico
“O racismo científico eurocêntrico já foi denunciado por diversos cientistas, como Cheikh Anta Diop, Juliano Moreira, Bel Hooks, Zelia Ludwig, Barbara Carine, Carlos Machado… Enfim, uma lista muito extensa na descolonização do conhecimento”, pontua a cientista Zaika dos Santos, lembrando que “a população africana e afrodescendente produz muita intelectualidade, conceitua muito conhecimento e divulga cientificamente muita informação coerente sobre afrocentralidade”.
Para ela, o combate ao racismo científico passa, sobretudo, por “evidenciar a descolonização e a afrocentralidade científica estrategicamente”. “Até porque quem publica pesquisa científica racista no Brasil está indo contra os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU), que pautam o desenvolvimento do Brasil até 2030”, comenta, lembrando que qualquer instituição científica que publica conteúdo racista perde, quando denunciada, o prestígio acadêmico.
Apesar dos esforços, contudo, estudos que reforçam o racismo ainda são uma realidade. Em 2005, os autores de uma pesquisa publicada no periódico “Journal of Health and Social Behavior”, ligado à Associação Americana de Sociologia, tentam demonstrar, com base em apurações clínicas, que os afro-americanos sentiriam mais raiva do que os brancos e teriam menos recursos para lidar com as emoções de maneira “socialmente aceitável”.
No livro “Autodefesa: Uma Filosofia da Violência”, Elsa Dorlin denuncia que esse tipo de conteúdo tende, por exemplo, a justificar abordagens violentas contra negros sob a justificativa de que eles poderiam representar uma ameaça, uma vez que teriam dificuldade em lidar com a raiva. “Publicações como essas se inscrevem no âmbito de uma produção mais ampla de saberes racistas continuamente renovados”, escreve a filósofa.
Transição para a diversidade
Alinhada aos apontamentos de uma pesquisa da Universidade Stanford, dos Estados Unidos, que demonstrou que mais diversidade nas ciências tende a repercutir em mais inovação, Zaika dos Santos defende que a presença de povos negros e indígenas nas universidades pode mudar o parâmetro do conhecimento.
“Todo ano muitos livros sobre afrocentralidades e a história indígena são publicados no mundo, isto é mudar o parâmetro do conhecimento. Assim como a produção de conteúdo no ciberespaço tem sido uma forte alternativa de propagação do conteúdo afrocêntrico. Ou seja, dentro ou fora das universidades as gerações da população africana e afrodescendentes e indígenas, Milennials, geração Z e geração Alpha, estão sendo diretamente atravessadas e produzidas pela afrocentralidade e pelo conhecimento indígena dentro do conhecimento bem como nas vivências com as gerações anteriores”, assinala.
Zaika, assim como a pesquisadora Jaqueline de Jesus, celebra ações que visam garantir mais diversidade nos ambientes institucionais de produção do conhecimento. Ela cita a política de cotas, as diretrizes da educação étnico-racial e a lei 11.645, que pauta a obrigatoriedade dos conteúdos de história africana, afro-brasileira e indígena nas escolas e universidades. “A população preta está nas universidades produzindo conhecimento e essa presença vai crescer cada vez mais. Isso de fato resulta em mais lideranças negras em espaços de tomada de decisões”, assegura.
“Equiparar a defasagem educacional geracional para que as próximas gerações sejam nutridas de informações afrocentricas e indígenas na educação infantil, no ensino fundamental, no ensino médio e no ensino superior, é a missão do agora. Justamente porque o futuro da sociedade é a equiparação histórica, cosmovisões e diversidade”, conclui a estudiosa.