19/07/2021
Tragédia da Vale completa dois anos e meio no próximo domingo (25), e contaminação do rio Paraopeba permanece ameaçando manutenção de tradições e cerimônias: conheça mais
Iemanjá não foi festejada em 2 de fevereiro. O rio Paraopeba, à região Central de Minas Gerais, não acolheu presentes para Dandalunda – divindade das águas doces para o candomblé – e o dirigente do terreiro Bakise Bantu Kasanje, Marcos Adelino, de 63 anos, não serviu peixe coletado à margem, em Juatuba, também na região Central, conforme prediz a tradição.
A sete dias do aniversário de dois anos e meio da tragédia da Vale em Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte, no próximo domingo (25), os impactos do colapso da barragem B1 da mina Córrego do Feijão permanecem afetando a feitura de cerimônias no terreiro de candomblé, em português “Santuário do Povo Kasanje”, em Mateus Leme, na região Central do Estado. A poluição do rio Paraopeba pelos rejeitos de minério oriundos do rompimento ameaçam a manutenção de tradições caras à comunidade que professa a religião de matriz africana. A celebração mais importante do calendário do Bakise Bantu Kasanje, a homenagem a Dandalunda, padroeira do terreiro inaugurado em 1984, não acontece no Paraopeba há dois anos – e não há previsão de que se repita.
O espaço dirigido por Marcos Adelino – nomeado tat’etu Arabomi – integra o Povos e Comunidades de Tradição Religiosa Ancestral de Matriz Africana (PCTRAMA), grupo de populações afetadas pelo desastre de Brumadinho. A união é orientada pela Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas), que elabora um diagnóstico sobre os impactos da tragédia socioambiental no cotidiano de povos tradicionais atingidos pelo rompimento em Mateus Leme. O documento poderá ser usado para judicialização de ações contra a Vale com o intuito de garantir a reparação integral dos danos decorrentes do rompimento. Centros e terreiros reivindicam a recuperação do rio Paraopeba.
A sessenta quilômetros de Belo Horizonte e a uma hora de carro de Brumadinho, o Bakise Bantu Kasanje tardou apenas oito dias para reconhecer o que seria o primeiro grande impacto do acidente no Córrego do Feijão no calendário de tradições do candomblé. “O abalo é, claro, espiritual e emocional. Em 2 de fevereiro, coincidentemente Dia de Iemanjá, celebro meu aniversário de Santo. Anualmente, nessa data, levamos o presente para Dandalunda, guardiã do terreiro, e o entregamos na água. Em 2019, não pudemos levá-lo. Em 2020, também não. E em 2021, não conseguimos entregar. Entristece não poder cultuar e seguir com o que é tradição”, lamenta o tat’etu Arabomi. Inaugurado na capital mineira em 1984, o terreiro foi transferido para a área de vegetação que ocupa hoje em Mateus Leme em meados de 1996 – e o primeiro barracão, onde acontecem os festejos, instalado em 2003. Há 18 anos, rituais típicos do candomblé aconteciam às margens do rio Paraopeba, a cerca de 25 minutos de carro do terreiro, no povoado de Vianópolis, entre os municípios de Betim e Juatuba.
“Além da entrega anual de presentes, o rio é indispensável para outros trabalhos do terreiro, como entrega de descarregos, oferendas e limpezas. Também colhíamos ervas às margens do Paraopeba para os assentamentos (rito de “plantar o axé” para tornar um território sagrado). Outro impacto é em relação ao peixe, que é um alimento importante em algumas festividades. Por exemplo, nas Águas de Oxalá (cerimônia em homenagem a Oxalá, o criador da humanidade para o candomblé), nós só servimos peixe. Antes, tínhamos o do rio para servir. Agora, não conseguimos. Temos que comprar peixe congelado trazido de outros lugares”, lista Marcos Adelino.
Contaminação. No mês de junho de 2021, o tat’etu foi à margem do Paraopeba com um grupo de adeptos do terreiro para a entrega de uma oferta à divindade Dandalunda. Contudo, rejeitos de minério permanecem ali depositados. “Escolhemos um ponto do rio onde a água parecia que se recuperava. Por cima, não havia indícios de contaminação. Mas, na hora que um filho de santo entrou nas águas para colocar o presente, vimos que o rio não está limpo. Ele estava vestido com uma calça branca, e saiu das águas com a roupa vermelha, cor de minério. Quer dizer, no fundo ainda há muito resíduo”.
Recuperação do rio Paraopeba é esperança para adeptos do candomblé
Instalado no bairro Atalaia, o Bakise Bantu Kasanje se encontra a menos de dez minutos do último trecho de asfalto da região em Mateus Leme. À entrada, há a primeira das residências onde são guardadas as divindades que cuidam do terreiro. A cerca de trezentos metros, um poço de água com um metro e meio de profundidade, e mais à frente o barracão onde acontecem os festejos.
O terreiro ocupa cerca de cinco mil metros quadrados e encerra-se onde começa uma área de mata. O endereço foi escolhido por Dandalunda quando o terreiro ainda localizava-se em Belo Horizonte. A opção por Mateus Leme nasceu de um desejo por maior proximidade com a natureza. “Dandalunda já havia previsto. Um dia ela nos disse: ‘essa roça é provisória (em BH), mas essa não é minha casa. Minha casa é em um lugar com mata, com água”, narra o tat’etu Arabomi. “O que nos trouxe foi justamente o espaço natural, tão necessário para o culto de nossos orixás”, segue.
A contaminação do Paraopeba por rejeitos de minérios, por outro lado, obrigou que atividades do terreiro que necessitam do rio fossem transferidas para outras localidades mais distantes – como Divinópolis, na região Centro-Oeste de Minas Gerais. “A relação com a água é muito forte para nós. É muito sério para quem é do candomblé. Não poder cumprir nossos ritos e ver o rio nessa situação nos atinge psicologicamente. Dá uma depressão, né?”.
A recuperação do rio afetado pelo desastre da Vale é a esperança mantida entre os adeptos do terreiro que detém uma população flutuante próxima de 60 pessoas. “Acho que a recuperação é possível, mas é muito lenta, né? São praticamente três anos desde o rompimento. Olhando de longe a impressão é que o rio recuperou. Mas, de perto, você vê que ainda não”, encerra Arabomi.
Contraponto. Indagada pela reportagem de O TEMPO sobre os prejuízos decorrentes do rompimento da barragem B1, no Córrego do Feijão, para populações de Mateus Leme que professam religiões de matriz africana, a mineradora Vale alegou ter assumido um compromisso de reparar “integralmente os danos”. “O Acordo Judicial de Reparação Integral contempla projetos específicos para comunidades tradicionais impactadas direta ou indiretamente pela interrupção na captação do rio Paraopeba”, informou por meio de nota à última terça-feira (13). Acordo entre Vale, Ministério Público Federal, Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), Estado de Minas Gerais e Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG) foi firmado no último 4 de fevereiro. A mineradora não citou quais são os projetos específicos mencionados.