05/08/2021
Presidente da República alegou que a proposição “contraria o interesse público” enquanto mais de 400 mil pessoas correm o risco de perder o teto. Parlamentares e movimentos sociais organizam reação no Congresso para derrubar o veto considerado um “ato criminoso”
São Paulo – O presidente Jair Bolsonaro vetou integralmente o Projeto de Lei (PL) 827/2020, que proibia despejos e remoções forçadas até 31 de dezembro. A proposta, aprovada pela Câmara e pelo Senado, pretendia garantir moradia às famílias atingidas pela crise econômica agravada pela pandemia de covid-19. Mas, em despacho publicado na edição desta quinta-feira (5) do Diário Oficial da União (DOU), o governo federal alegou “contrariedade ao interesse público” e rejeitou o PL em sua íntegra.
A proposta contemplava imóveis públicos e particulares urbanos, depois de a bancada ruralista ter conseguido apoio no Congresso Nacional para retirar os imóveis do campo. A oposição, contudo, conseguiu garantir que fosse sancionada a suspensão do cumprimento de medidas judiciais ou administrativas de remoção autorizadas desde 20 de março do ano passado, quando o estado de calamidade, em função da crise sanitária, foi decretada. No caso de ocupações, a regra aprovada passaria a valer para as ocorridas antes de 31 de março de 2021.
Dessa forma, ficariam proibidas a execução de ordens de despejo. Medidas preparatórias ou negociações também não poderiam ser realizadas. Mas, com o aval dos ministérios da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e da Economia, o governo argumentou que, “embora seja meritória a intenção do legislador”, o PL “daria um salvo conduto para os ocupantes irregulares de imóveis públicos, os quais frequentemente agem de caráter de má fé e cujas discussões judiciais tramitam há anos”.
Além disso, o projeto estabelecia tentativa de acordo entre o locador e o locatório para negociação de desconto, suspensão ou adiamento do pagamento de aluguel durante a pandemia. Diante das contrapartidas previstas na proposta, parlamentares e movimentos sociais repudiaram o veto de Bolsonaro, considerado “desumano, cruel e criminoso”.
Pelas redes sociais, a vereadora de Niterói (RJ) Benny Briolly (Psol) observou que o ato presidencial deixa “evidente o total desprezo com os mais de 8 milhões de brasileiros que perderam seus empregos: “Crueldade é a principal marca desse governo!”. Relator da proposta na Câmara, o deputado federal Camilo Capiberibe (PSB-AP) ironizou, afirmando que o veto é “coerente com a desumanidade” do governo federal. “Bolsonaro quer botar mais brasileiros pobres na rua: sem emprego, sem vacina, sem comida, sem teto”, tuitou.
Uma das autoras do PL, a deputada Natália Bonavides (PT-RN) chamou o veto de “cínico e mentiroso”. “Feito por quem negocia propina na vacina e promove a fome e o desemprego do povo”, satirizou. Movimentos sociais lembraram que a combinação desemprego, diminuição de renda e falta de políticas públicas, pode ser ser muito mais perversa do que a ocupação de imóveis públicos e tem levado ao crescimento do número de pessoas em situação de rua.
O conteúdo do texto, ainda segundo o presidente, poderia “consolidar ocupações existentes”. Apesar de descartadas pelos parlamentares, Bolsonaro atribuiu também que a suspensão dos despejos “ensejaria danos patrimoniais insuscetíveis de reparação” e “danos ambientais graves”. O despacho segue com o governo apontando “descompasso” do PL com o “direito fundamental à propriedade”. O que, afirma, “agravaria a situação dos proprietários e dos locadores”.
“Assim, a paralisação de qualquer atividade judicial, extrajudicial ou administrativa tendente a devolver a posse do proprietário que sofreu esbulho ou a garantir o pagamento de aluguel, impactaria diretamente na regularização desses imóveis e na renda dessas famílias de modo que geraria um ciclo vicioso, pois mais famílias ficariam sem fonte de renda e necessitariam ocupar terras ou atrasar pagamentos de aluguéis”.
No caso dos imóveis alugados, o PL estabelecia, porém, que a proibição a despejos poderia ser aplicada somente a contratos cujo valor mensal de aluguel fosse de até R$ 600 para imóveis residenciais e de até R$ 1,2 mil para imóveis não residenciais. O locatário, por outro lado, deveria demonstrar a mudança de sua situação econômico-financeira. Para assim comprovar a incapacidade de pagamento do aluguel e demais encargos sem prejuízo da subsistência familiar.
“Infelizmente o veto a esse projeto pelo Bolsonaro já era esperado por nós. Não tínhamos nenhuma expectativa mínima de sanção até pela postura dos próprios filhos do presidente na Câmara e no Senado, que sempre se posicionaram veementemente contra o projeto. Então a gente já imaginava que ele ia vetá-lo, infelizmente. Essa é a postura de um presidente que nesse momento inclusive ameaça a democracia, que atuou o tempo inteiro em favor da pandemia. Ele é um presidente que é responsável por milhares de mortes que aconteceram na pandemia. E agora ele será responsável também por colocar em situação de mais vulnerabilidade ainda milhares de famílias que são ameaçadas de despejo no Brasil nesse momento”, advertiu à reportagem o advogado popular Benedito Roberto Barbosa, o Dito, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e da Central de Movimentos Populares (CMP).
O último levantamento da Campanha Despejo Zero aponta que, desde o início da pandemia, em março de 2020 até o último dia 6 de junho, mais de 14.301 famílias foram alvos de ações de despejos. Os movimentos ainda contabilizam outras 84.092 famílias ameaçadas. O que indica que o ameaça de remoção forçada é hoje vivenciada por pelo menos 400 mil pessoas.
Em nota, a Campanha Despejo Zero contestou o zelo do governo Bolsonaro às “relações locatícias e pelo direito à propriedade”. De acordo com o movimento, o veto é um “ato criminoso”. “Bolsonaro deliberadamente coloca em risco a vida de milhares de famílias que vivem em ocupações, e outras que não estão com condições de pagar aluguel de suas moradias, demonstrando mais uma vez que seu projeto de governo é de extermínio da população pobre do país”, lamentaram.
Um novo levantamento deve ser divulgado neste mês de agosto, segundo Dito,”mostrando que o despejo no Brasil tem se ampliado”. O veto presidencial ainda pode ser derrubado no Congresso e os movimentos sociais já preparam uma articulação junto aos autores da proposta para defender a decisão do legislativo. “Lutar contra os despejos é lutar pela vida de milhares de pessoas! Nossa luta continua”, endossa a Campanha Despejo Zero.