14/12/2021
A quase dois anos do início da pandemia de Covid-19 no Brasil, os direitos dos quilombolas seguem sendo negligenciados pelo Estado. Fruto do racismo estrutural na sociedade brasileira, o descaso com a saúde nos quilombos agravou um cenário de vulnerabilidade vivido historicamente. Mesmo com decisões judiciais favoráveis, organizações e lideranças quilombolas precisam seguir batalhando para garantir o básico: vacinação, higiene e segurança alimentar.
De acordo com o painel Quilombo Sem Covid-19, criado pela Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e o Instituto Socioambiental (ISA) para medir o impacto da pandemia nos territórios, 301 quilombolas morreram por causa do novo coronavírus.
Foram registrados 5.660 casos confirmados e 1.492 casos monitorados — aqueles nos quais as pessoas apresentaram sintomas, mas não tiveram acesso à testagem. No entanto, os números podem ser muito maiores, já que o levantamento da Conaq foi feito de forma colaborativa e autônoma, enfrentando dificuldades como acesso à internet e repasse de informações atualizadas.
Após muita luta, os quilombolas foram incluídos como grupo prioritário no Plano Nacional de Imunização (PNI), com o reconhecimento da maior vulnerabilidade e dificuldade de acesso à infraestrutura de saúde e saneamento básico.
Em Eldorado, no Vale do Ribeira, os quilombolas foram vacinados em regime prioritário logo que a ADPF 742 foi aprovada. Equipes de agentes comunitários visitaram os quilombos. Até o momento, todos os quilombolas com mais de 18 anos já receberam a terceira dose.
No entanto, embora o Vale do Ribeira seja uma referência positiva, o ritmo da vacinação segue lento na maioria dos territórios do país, com relatos de problemas na aplicação da terceira dose.
Maria do Carmo Ribeiro de Jesus, mobilizadora e quilombola de Forras (SE), disse que a terceira dose está disponível apenas para idosos. Valdinei Gomes, mobilizador e quilombola do Baixo Itacuruçá, em Abaetetuba (PA), contou que a prioridade na terceira dose da vacina está suspensa em diversos quilombos do estado e que apenas os idosos estão recebendo a dose extra, acompanhando os calendários municipais.
Além disso, os quilombolas de Sergipe precisam se deslocar até as cidades para se vacinar, pois as unidades de saúde das comunidades não possuem estrutura para a aplicação do imunizante. Segundo a liderança, apenas idosos acamados estão sendo vacinados por agentes comunitários de saúde.
O problema, porém, consegue ser ainda pior em outras áreas. De acordo com o Vacinômetro Quilombola, levantamento feito pela Conaq em parceria com a Ecam e a Terra de Direitos, 49,75% da população quilombola só teve acesso à primeira dose da vacina e outros 2% sequer foram vacinados. Um dos casos foi no quilombo Sítio Saco do Pereira, em Acari (RN), onde uma mulher não vacinada precisou ser hospitalizada após contrair Covid-19.
Os números mostram uma discrepância com os de outros povos tradicionais incluídos no grupo prioritário. Enquanto 45,5% da população quilombola teve acesso às duas doses, o número de indígenas totalmente imunizados passa dos 80%, segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Ainda de acordo com as organizações, um em cada três quilombos apresenta problemas na vacinação.
Na comunidade de Balsa, em Acará (PA), o início da vacinação foi um drama. Lá, a secretaria municipal de saúde alegou que o quilombo não constava na listagem de comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP) e não havia documentação que comprovasse sua existência.
A medida da secretaria, entretanto, viola a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ignorando a auto identificação da comunidade, critério primordial para a definição de povos tradicionais, como as comunidades quilombolas. O quilombo, com cerca de 180 pessoas, existe há pelo menos 60 anos e segue em processo de certificação.
Em diversas comunidades de Minas Gerais, como apontado pelo monitoramento da Conaq, foram adotados critérios aleatórios para o grupo prioritário. No município de Januária, com 40 comunidades quilombolas certificadas pela FCP, a prefeitura estabeleceu o Cadastro Único (CadÚnico), sistema utilizado para recebimento de benefícios sociais, como o Bolsa Família. Entretanto, não são todos os quilombolas que acessam o benefício.
De acordo com Arilson Ventura, que faz o acompanhamento das comunidades quilombolas do Sudeste, em uma comunidade com 50 pessoas, por exemplo, o uso do CadÚnico permitiu que apenas cinco pessoas fossem vacinadas prioritariamente.
Enquanto algumas comunidades do país já estavam recebendo a segunda dose, os moradores de Caraíbas, no município de Canhoba (SE), seguiam aguardando a chegada das doses prioritárias. O atraso terminou em julho, quando as lideranças quilombolas de Sergipe e da Conaq se articularam para liberar a vacina junto à secretaria de saúde de Canhoba, após terem recorrido à Secretaria de Estado de Saúde de Sergipe.
De acordo com o órgão estadual, é dos municípios a responsabilidade de acompanhar a imunização dos quilombolas. Ao estado, cabe fazer o levantamento das comunidades quilombolas e encaminhar as doses necessárias a cada município para que façam a redistribuição por comunidades.
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A pressão realizada pela Conaq foi fundamental para o andamento da vacinação. No Quilombo de Grossos, no município de Bom Jesus (RN), os jovens de 18 a 29 anos só foram vacinados após lideranças estaduais e locais, entre elas a educadora popular quilombola Andreia Santos, pressionarem o Ministério Público.
O mesmo aconteceu em Cristininha, quilombo da cidade de Caiapônia (GO). A Conaq precisou acionar o Ministério Público para que 300 quilombolas pudessem ser vacinados. Inicialmente, apenas 85 doses de vacina foram disponibilizadas aos quilombolas, que priorizaram idosos e pessoas que se expunham mais.
Outra questão que dificultou a vacinação dos quilombolas no país foi o desrespeito à mobilidade dessas populações. Quilombolas em trânsito, que por motivos de estudo e trabalho não moram nos quilombos, foram excluídos da prioridade de vacinação em alguns municípios.
Segundo a Conaq, 24 quilombos registraram esse problema. Sandra Braga, membro da Coordenação da Conaq e mobilizadora em Goiás, destacou que foram identificados 634 quilombolas em Brasília que não tiveram acesso à primeira dose da vacina com prioridade por estarem fora de seus quilombos.
Diante dos obstáculos, diversos quilombolas receberam as doses seguindo os calendários dos municípios, atendendo os critérios de comorbidade e idade, reforçando, mais uma vez, o apagamento das comunidades quilombolas.
A negligência de governos municipais, estaduais e, principalmente, do governo federal no combate à pandemia nos quilombos, levou as lideranças a articular e organizar ações de suporte à população.
Em julho, no Quilombo de Graúna, no município de Cachoeira do Itapemirim (ES), foi estabelecida uma parceria com as secretarias municipais de Saúde e de Direitos Humanos e Superintendência de Saúde do Espírito Santo, e a Conaq, representada por Arilson Ventura, para um evento de conscientização sobre a Covid-19 no território.
Além de promover conversas com as pessoas que tinham se recusado a se vacinar inicialmente, foi montado um ponto de testagem para quem estava com sintomas. Também foram distribuídas máscaras e álcool em gel.
Como medida de enfrentamento da pandemia, o Ministério da Saúde informou, por meio da Nota Técnica nº 335/2021, que a partir de julho de 2021 faria a distribuição de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) junto às secretarias estaduais e municipais de saúde para as comunidades quilombolas.
De acordo com a nota, cada quilombola do país deveria receber 10 máscaras do tipo N95/PFF2. No entanto, apenas um dos sete mobilizadores do Observatório soube do recebimento das máscaras, também no Quilombo de Graúna.
“Apenas em outubro, quando aconteceu um evento sobre o Outubro Rosa, que fizeram a distribuição das máscaras. Na semana desse evento, entrei em contato com a secretária municipal de saúde e ela comunicou que elas chegaram há pouco tempo”, contou Ventura.
Assista à reportagem “Contra a fome e a Covid-19, quilombolas põem comida na mesa da favela”:
Estimava-se a distribuição de 10 mil máscaras, mas apenas três mil foram entregues à comunidade. “Vou seguir cobrando a distribuição junto à Secretaria, pois o meu medo é utilizarem as máscaras para outros fins. A pandemia é um fato novo, o que não é novo é o racismo que a gente sofreu a vida toda”, afirmou Ventura.
Outra questão preocupante é a insegurança alimentar nos territórios. Com o descaso do poder público, organizações do movimento quilombola passaram a fazer campanhas para arrecadar alimentos, produtos de higiene e equipamentos de proteção individual quando a pandemia se instalou no país. Conheça algumas aqui.
Uma dessas ações foi realizada pela Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras, a Eaacone, que atua com comunidades quilombolas do Vale do Ribeira. A organização fez um levantamento de comunidades em situação de vulnerabilidade social e em parceria com o Senac São Paulo, ao longo da pandemia, as organizações têm feito doações de cestas de alimentos para 12 comunidades das cidades de Iporanga, Eldorado, Barra do Turvo, Miracatu e Cananéia.
A campanha “Tem gente com fome”, que acontece desde março deste ano, também tem feito distribuição de alimentos para quilombos de São Paulo. Em algumas delas, as comunidades Brotas e São Roque, no município de Itatiba, receberam 200 cestas de alimentos da Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale), que desde maio de 2020 também tem doado alimentos para pessoas da periferia de São Paulo.