Quebradeiras de coco da região de São João do Arraial. — Foto: Divulgação
Você sabe quais são povos e comunidades tradicionais brasileiros? Talvez indígenas e quilombolas sejam os primeiros que passam pela cabeça, mas, na verdade, existem, além deles, 26 reconhecidos oficialmente e muitos outros ainda não foram incluídos na legislação, explicam especialistas do tema.
“Os povos indígenas são os primeiros do Brasil, considerados os donos da terra e fazem parte do arcabouço dos povos tradicionais. A partir da colonização, outros povos vão sendo agregados. Em 1574, tem o registro da entrada do primeiro cigano”, narra Kátia Favilla, antropóloga especialista no assunto e secretária-executiva da Rede Cerrado.
“A gente tem um processo, então, já de uns 400 anos de formação de povos e comunidades tradicionais, que não é um processo finalizado”, completa.
São pescadores artesanais, quebradeiras de coco babaçu, apanhadores de flores sempre-vivas, caatingueiros, extrativistas, para citar alguns (veja lista completa ao fim da reportagem). Todos considerados culturalmente diferenciados, capazes de se reconhecerem entre si.
Essas comunidades fazem uso dos recursos naturais, não apenas para seu sustento, mas também para reprodução cultural, social e religiosa, define Cristina Adams, uma das coordenadoras do livro “Povos tradicionais e biodiversidade no Brasil – contribuições dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais para a biodiversidade, políticas e ameaças”.
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Parceria com a natureza
Cada uma das comunidades tem uma prática de sistema tradicional de uso, que, de forma generalizada, é conhecida como Sistema Agrícola de Produção (Sat).
“Essas práticas são muito importantes no modo como esses povos se autoidentificam. Muitas dessas comunidades tradicionais se identificam pelas práticas econômicas que são estruturantes do seu modo de vida”, explica Ana Tereza da Silva, professora do Mestrado Profissional em Sustentabilidade Junto a Povos e Terras Tradicionais da Universidade de Brasília (MESPT/UNB).
Contudo nem todos os povos mantêm apenas um modo de produção. Uma comunidade pesqueira, por exemplo, pode também realizar o extrativismo sustentável, exemplifica Ana. Ou, como acrescenta Kátia, uma comunidade extrativista pode ter uma pequena roça.
Ainda assim, o Sat é fundamental para a manutenção dos povos em seus territórios.
Reportagem do Globo Rural de 2021 mostra quilombo que produz rapadura artesanal e aumenta renda com projeto Pró-Semiárido.
Para Ana, essas populações, essas populações não veem o agro como um negócio. A terra é considerada uma mãe e há uma relação de reciprocidade com a natureza.
Nesta troca, a natureza fornece “alimento, um lugar saudável para habitar, para ter água. E eles se responsabilizam em cuidar dela, a tirar dela apenas o suficiente para viver bem e a respeitar os tempos de auto-organização, de regeneração da própria natureza”, diz.
Na prática, essas populações dependem, muitas vezes, de uma agricultura e tecnologia simples e intensiva mão de obra, ainda que, dentro do território, a densidade populacional seja baixa, descreve Cristina.
Além de terem pouco impacto ambiental, suas atividades contribuem para a manutenção e para a geração de biodiversidade, tanto da natureza quanto da “agrobiodiversidade”, ou seja, de variedade de espécies dentro da atividade agrícola, fundamental para a segurança alimentar.
Chega até sua mesa
As produções dessas populações não ficam apenas para a subsistência. Elas já foram abrangidas por algumas políticas públicas, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), voltado para ajudá-las a escoar os cultivos para as escolas próximas às comunidades.
Atualmente, as feiras locais são importantes para que esses alimentos sejam comercializados.
Algumas comunidades organizadas de maneira mais coletiva, através de associações, por exemplo, conseguem expandir a venda para outros estados e para o exterior.
Kátia, antropóloga especialista no assunto, mora em Lisboa e conta que o açaí é um grande exemplo disso. Boa parte vem de comunidades tradicionais e se tornou comum na capital portuguesa.
No Brasil, o umbu, a castanha do Brasil e o pequi são exemplos de comidas que vêm desses povos e chegam até as cidades.
Reconhecimento
O primeiro passo para um grupo ser considerado tradicional é a autoidentificação, que ele se declare como tal.
Depois vem a etapa dos processos judiciais, quando são feitos laudos que comprovem a historicidade da comunidade, há quanto tempo ela ocupa determinada área, suas produções sociais, políticas e econômicas, por exemplo.
“O que faz uma comunidade se autoidentificar como tradicional, normalmente, são as ameaças”, diz Ana.
Esses povos, que sempre estiveram em suas terras, quando sentem que podem perdê-las, seja para o grande agronegócio ou para grileiros, buscam esse reconhecimento para tentar manter o seu direito de permanecer no local.
Existem situações, inclusive, em que as vidas das lideranças são ameaçadas ou tiradas por quem visa tomar essas áreas.
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Em relação aos indígenas e quilombolas, esse direito à terra está resguardado pela Constituição de 1988, resultado da mobilização dos movimentos sociais.
Com isso, essas pessoas contam com órgãos federais, como a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Fundação Cultural Palmares. Ambas têm função institucional e constitucional de reconhecer e demarcar as terras, explica Ana.
Os demais povos têm que recorrer a outros dispositivos jurídicos, como ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Eles também podem recorrer ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e solicitar que a área se torne uma reserva de desenvolvimento sustentável, diz a professora do MESPT.
Há ainda o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CONPCT) – composto majoritariamente por representantes desses povos -, que além de fazer parte deste processo de reconhecimento, também auxilia no diálogo entre comunidades e o Estado brasileiro.
Apesar disso, Kátia diz que, atualmente, esses órgãos estão enfraquecidos e o que realmente tem defendido esses povos são os movimentos sociais, caso da Rede de Comunidades Tradicionais, formada por mais de 30 segmentos, que atua em diálogo com o governo buscando uma legislação mais representativa.
A demarcação de terras indígenas é alvo de discussão no Supremo Tribunal Federal (STF), visando decidir se é preciso seguir o chamado “marco temporal”. Por esse critério, indígenas só podem reivindicar a demarcação de terras que já eram ocupadas por eles antes da data de promulgação da Constituição de 1988.
Saiba mais sobre a demarcação de terras indígenas com o vídeo:
Joenia Wapichana comenta sobre a demarcação das terras indígenas
Busca por direitos
A terra, de acordo com as especialistas, é a maior questão para essas comunidades.
“Muitas vezes eles estão em território de interesse para grandes fazendeiros, para mineração ou para madeireiras, de modo que eles são o elo mais fraco da corrente”, explica Cristina.
De acordo com a pesquisadora, há ainda o agravante de que existem comunidades cujo território acabou sendo sobreposto por unidades de conservação, o que também pode gerar muitos conflitos e impedimentos no uso tradicional dos recursos naturais.
Isso porque, nessas situações, a população deveria ser retirada da área e indenizada, mas a escritora disse que nunca soube de um caso em que isso aconteceu.
Porém essa não é a única luta dessas pessoas, há a busca por políticas públicas. Esses povos enfrentam, por exemplo, a dificuldade para acessar créditos agrícolas e para melhoria de moradias, diz Kátia.
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Há também obstáculos para a comercialização dos produtos, com estradas em condições ruins para o escoamento ou mesmo sobrando apenas os rios para fazer isso, relata a antropóloga.
Para além do setor agrícola, há falta de acesso a educação e a saúde de qualidade.
“A modernidade chegou a elas (comunidades), mas isso não faz com que elas percam a sua ancestralidade, mas é claro que elas foram se adaptando ao mundo. Elas querem acesso, por exemplo, a educação e a universidades”, diz Kátia.
Veja a lista de povos e comunidades tradicionais: