Shirley Krenak: ‘A natureza só consegue ficar equilibrada com a força de todos os biomas’

23/05/2022

Por Paula Ferreira — Brasília

Fonte:https://oglobo.globo.com/google/amp/um-so-planeta/noticia/2022/05/shirley-krenak-a-natureza-so-consegue-ficar-equilibrada-com-a-forca-de-todos-os-biomas.ghtml

Ativista do povo Krenak, na região do Rio Doce, diz que luta pelos direitos indígenas é fundamental para a sobrevivência dos ecossistemas brasileiros

Shirley Krenak participa de ato durante a COP — Foto: Arte sobre foto de Caio Mota/Apib

Liderança dos Krenak que vivem na região do Rio Doce, em Minas Gerais, Shirley Krenak tem a resistência no nome. Há 200 anos, seu povo luta pela defesa do seu território e pela conservação do Watu, como os indígenas se referem ao curso d’água. Formada em comunicação, a ativista afirma que a manutenção da biodiversidade no país está diretamente ligada à demarcação das terras e ao reconhecimento dos povos originários como fundamentais na proteção do meio ambiente.

 

Em entrevista ao GLOBO, ela critica as mineradoras e o poder público que, afirma, tem sido inimigo dos povos indígenas. Shirley sustenta ainda que o futuro dos ecossistemas depende da derrubada do marco temporal, em discussão no Supremo Tribunal Federal. A tese estabelece que as populações originárias só podem reivindicar terras ocupadas por eles na data da promulgação da Constituição, em 1988.

A biodiversidade brasileira é constantemente ameaçada. O que precisa ser feito para interromper a degradação?

É necessário trabalhar a potência de todos os biomas do nosso país. Hoje, há uma visibilidade bem maior da Amazônia, mas os outros biomas estão muito esquecidos. Falta trazer de volta a biodiversidade ambiental desses biomas que estão sendo destruídos pelo agronegócio que avança de forma estupradora dentro das terras indígenas e não indígenas. Eu pertenço ao bioma da Mata Atlântica, e hoje há apenas 5% da sua originalidade. O que aconteceu para chegarmos a este ponto? Isso é fruto de um processo que as grandes empresas de mineração, principalmente aqui na região, vêm conduzindo. O Pantanal sofre com as queimadas por causa da agropecuária, a caatinga é afetada por diversos empreendimentos. A natureza só consegue ficar equilibrada com a força de todos os biomas.

De que maneira a presença de indígenas nas terras contribui para a preservação?

Todas as terras do nosso país, que hoje é chamado de Brasil, são indígenas. Então, é necessário que devolvam a terra que sempre foi nossa para que a gente possa manter viva toda a biodiversidade, para que as pessoas consigam ter um pouco mais tempo de vida. Se a sociedade não nos vê como grandes sábios, livros vivos e mestres, que estamos aqui para defender o meio ambiente que é de todos, vai ficar muito complicado evitar a extinção da humanidade. Nós, povos indígenas, quando fazemos nossa luta em prol da demarcação das nossas terras, é para poder cuidar totalmente delas. Sabemos da importância que tem uma árvore plantada, um rio não poluído.

Como é possível mostrar a importância da convivência harmoniosa com a terra para os não indígenas?

O que que a gente vem fazendo é ocupar todos os espaços na comunicação, na política, nas universidades. Tudo que nós comemos, toda a nossa sobrevivência como seres humanos, vem da terra, do meio ambiente. A ciência não anda sem a tradição. Temos tecnologia, ciência, tradição, tudo de forma ancestral. Isso tudo pode andar junto, ser coletivo, em prol do bem comum.

 

Por que há tanta gente que não percebe a importância do meio ambiente?

Isso se deve a todo o estrago que foi feito no passado e que ainda continua sendo feito no presente. E que se a gente não lutar para mudar vai continuar no futuro. Essa mudança tem que acontecer através da reeducação política na mente das pessoas. Hoje muitos políticos corruptos querem um povo não pensante, um povo dominado. A gente precisa ecoar esse grito de mudança e reconstrução mental, cultural e política. Trabalhar uma nova democracia política em que todas as classes, todas as pessoas, os povos originários, quilombolas, pretos e brancos possam ter voz e ser escutados e respeitados diante dessa ação que envolve o direito do ser humano de viver bem.

O poder público tem sido aliado ou inimigo da preservação ambiental?

Está sendo mais inimigo do que amigo. Olha o que a gente vem passando. Se tudo estivesse andando de forma positiva, teríamos muitos avanços ligados aos direitos humanos, e não estaríamos aqui conversando sobre isso. Precisamos deixar de ser uma sociedade dominada para ser uma sociedade pensante. E o momento é agora. A gente pode fazer uma reforma democrática neste exato momento. Temos agora a discussão sobre o marco temporal. É um absurdo existirem pessoas querendo determinar nosso tempo de vida sobre esta terra. Nós somos povos milenares e detentores dessa terra há muito tempo. Mas há inimigos como as grandes empresas de mineração, o Bolsonaro, os filhos dele, as milícias, garimpeiros, latifundiários, fazendeiros, coronéis. Temos aí a bancada evangélica, que também traz violência voltada à questão da espiritualidade. A gente está lutando para manter viva toda a nossa essência.

O julgamento do marco temporal foi interrompido no ano passado e deve ser retomado agora em julho. Qual a sua expectativa?

O marco temporal não vem sendo um desafio só para nós. É um desafio de enfrentamento para a sociedade branca não indígena também, porque uma vez que ele seja aprovado, nós, povos indígenas, vamos ter muitos problemas, mas vocês também vão ter. A gente precisa derrubar isso, e os povos indígenas vão se organizar para ir a Brasília marcar presença. Caso o marco seja aprovado, é mais um corpo indígena jogado na vala. A gente vai fazer o possível para resistir. Sempre tivemos esperança, é o que nos mantém vivos. O que nos move a ter confiança de que isso não irá para frente é a essa esperança e a nossa vontade de fazer ações positivas em prol do bem comum.

De que maneira esse resultado pode impactar a preservação da diversidade?

Quando a gente fala de meio ambiente, estamos falando de tudo o que a gente tem. Hoje, dentro da sua casa, está faltando ar para respirar? Água para beber? Comida para comer? Não, porque tem gente lutando na base para que isso não aconteça. Quando essa proposta do marco temporal vem, traz todo tipo de dificuldade para nós povos indígenas, mas para vocês também. Tudo o que vem de negativo para nossos povos se reflete no resto da sociedade, porque somos nós que estamos lá defendendo o que é mais sagrado no país, que é uma terra bem cuidada, não poluída, florestas em pé, rios sem poluição. Quando o governo não demarca as terras indígenas, sabemos que o meio ambiente vai sofrer com isso. A maioria das terras que ainda estão preservadas no nosso país são terras indígenas. Quando lutamos para fazer valer a nossa história, estamos pensando de forma coletiva.

Vocês têm acampado de forma recorrente em Brasília, na luta por direitos. Considera que as autoridades têm ouvido os povos indígenas?

Se estivéssemos sendo ouvido pelas autoridades, não estaríamos fazendo tantos atos. A gente não estaria sendo obrigado a sair de dentro da nossa comunidade, onde estamos em paz, e ficar lá uma semana lutando, enfrentando racismo, frio, e tudo que é complicado para nós. A minha mensagem para a sociedade é que busquem preservar todos os biomas, porque a Amazônia sozinha não consegue manter todo o equilíbrio do clima no mundo todo. A Amazônia, sozinha, não é o pulmão do mundo. O pulmão do mundo são todos os biomas recuperados, vivos e saudáveis. Não pode haver uma gota a mais de sangue indígena.

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