27/11/2023
“Aqui era um aguão. Secou por causa do desmatamento que a firma fez. Secaram tudo pelo desmatamento, para plantar pinus, esses ‘trens’ deles lá, para ser bom para eles”.
Os “trens” aos quais dona Eurica Gomes Pestana se refere são as plantações de pinus e eucalipto que cercam o Território Tradicional Geraizeiro de Vale das Cancelas, localizado no norte de Minas Gerais, a cerca de 150 quilômetros de Montes Claros. “Eles”, no caso, são as empresas que avançam sobre as comunidades tradicionais desde a década de 1970 e expandem, cada vez mais, o monocultivo das espécies que são amplamente utilizadas nas indústrias de papel e celulose e da construção civil.
O cenário relatado pelo povo geraizeiro foi constatado pelo Brasil de Fato, que retornou ao local três anos depois da última visita para a produção desta reportagem especial.
Assista ao documentário completo:
A vegetação rasteira – característica do Cerrado – composta por arbustos de pequeno porte, onde o gado era criado à solta, deu lugar a árvores que superam facilmente os 30 metros de altura. A transformação não se limitou à paisagem, mas refletiu, também, no modo de vida dos geraizeiros, que foram empurrados das chapadas (parte alta) para as grotas (parte baixa) com suas criações de animais.
Nas grotas, os povos tradicionais dos Gerais – termo usado para designar o Cerrado – produziam a maior parte dos alimentos na época de seca, tendo em vista a presença de córregos e nascentes nessas áreas. Uma lembrança distante para 2.230 famílias das 73 comunidades locais quando se olha para a realidade atual.
Ali tinha uma cachoeira onde as mulheres iam tomar banho. Era igual um chuveirão, muito forte. Hoje só ‘tá’ o mato. A enchente veio e aterrou tudo. Encheu tudo da terra da chapada.
Eurica Pestana, geraizeira, 71 anos
A lembrança de dona Eurica remonta aos tempos de juventude, quando havia água em abundância e terra para plantar. Hoje, a geraizeira de 71 anos, cuja experiência de dias melhores floresce na aparência, ainda luta para que as gerações futuras possam ver os rios cheios novamente.
:: Grande Sertão Ameaçado: o monocultivo de eucalipto no norte de Minas Gerais ::
A nascente que fica próxima à casa da família, no passado, era fonte de abastecimento para a comunidade. Agora, resta apenas um fio de água.
[A água da mina] já foi umas cinco vezes mais do que isso, porque, na verdade, era muita gente que apanhava água em casa. Eles vinham apanhar água. Hoje eles não vêm mais porque a água é muito pouca. Como é que a gente vai morar numa terra sem água?
Olivar Pestana da Costa, de 36 anos, é o segundo filho de dona Eurica
A responsabilidade pelo assoreamento das nascentes é atribuída às empresas de reflorestamento que atuam na região, especialmente à Rio Rancho Agropecuária S/A. A substituição da vegetação das encostas das chapadas comprometeu a barreira natural que segurava a enxurrada de sedimentos, como apontam os pesquisadores Gildarly Costa da Cruz, Eduardo Magalhães Ribeiro e Flávia Maria Galizoni, no artigo “Semiárido, seca e ‘Gerais’ do Norte de Minas: uma revisão da bibliografia sobre o Alto-Médio São Francisco”.
“Com os desmatamentos das encostas, esses materiais foram transportados para os cursos d’água, e muitos desses foram soterrados e contaminados com os insumos [utilizados nas plantações]”, explicam os autores.
A constatação apontada pelos pesquisadores é corroborada pelas comunidades geraizeiras, que temem, ainda, serem “castigadas” pelas empresas.
“A terra que vem entope as minas todas. Muita gente fica com medo de falar, com medo da empresa castigar. Se colocar um veneno lá em cima vem parar tudo nas minas de água, acaba com o gado e com a nossa saúde”, lamenta Olivar Pestana com o olhar fixo no fio de água que ainda brota da nascente ao lado da casa de sua família.
Os impactos do eucalipto na disponibilidade hídrica relatados pelos geraizeiros encontram amparo científico. Um estudo realizado em 2013 pelo engenheiro agrícola Vico Mendes Pereira Lima, doutor em ciência do solo, constatou que a substituição da vegetação do Cerrado por eucalipto pode reduzir a recarga de água nos lençóis freáticos em aproximadamente 345 milhões de metros cúbicos por ano.
:: Grande Sertão Ameaçado: o monocultivo de eucalipto no norte de Minas Gerais ::
O dado foi produzido com a espécie eucalyptus grandis, com cinco anos de idade, em uma região do semiárido do Vale do Jequitinhonha que tem características semelhantes às do Vale das Cancelas. O engenheiro utilizou dados que mostram que a cobertura vegetal de eucalipto apresenta uma taxa de evaporação e transpiração de seis litros de água por metro quadrado. Enquanto isso, o cerrado apresenta uma taxa de 1,5 a 2,6 litros por metro quadrado.
O engenheiro também levou em consideração a diminuição média anual da recarga de 218 milímetros e multiplicando-a pela área reflorestada com eucalipto de 158 mil hectares, na região do Vale do Jequitinhonha. Com esses dados, ocorre uma diminuição da recarga de cerca de 345 milhões de metros cúbicos por ano. Dos 1.060 milímetros de média de chuvas anuais, as áreas de cerrado aproveitam 49,6% para o abastecimento de suas reservas, enquanto as áreas de eucalipto aproveitam 29,1%.
Os dados do estudo de Pereira Lima, quando transportados para a realidade do território geraizeiro, com aproximadamente 230 mil hectares, indicam que a diminuição da recarga dos aquíferos atinge um volume na ordem de 500 milhões de metros cúbicos por ano. A estimativa foi calculada pelo antropólogo João Batista Almeida Costa, professor da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) e pesquisador da Comissão da Verdade do Grande Sertão, que desenterrou conflitos fundiários do período da ditadura.
“Para se ter uma ideia do que representa esse valor, em termos de metros cúbicos de água, seria o mesmo que, se armazenado, caberia em um reservatório, em forma de caixa d’água, com 100 metros de diâmetro e 64 metros de altura, equivalente a um prédio de 22 mil andares”, explica o professor numa estimativa aproximada.
Fonte: valores aproximados calculados pelo antropólogo João Batista Almeida Costa
Apesar de não haver números consolidados sobre o consumo de água pela plantação de eucalipto devido à quantidade expressiva de variáveis como tipo de solo e a espécie da planta, como ressalta o geógrafo Cássio Alexandre da Silva, é possível afirmar que a substituição da vegetação nativa pela monocultura provoca um “grande choque sistêmico” na natureza.
No caso dos Gerais, o professor do departamento de Geociências da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimonte) explica que os solos têm dificuldade com uma única espécie – ainda mais quando se trata de uma planta exótica, como o eucalipto, que é originário da Austrália.
:: Eucalipto domina dois terços das florestas plantadas no Brasil ::
Soma-se a isso o fato de as raízes da árvore serem pivotantes, ou seja, elas não se espalham lateralmente, mas penetram profundamente o solo em busca de água. Assim, elas alcançam,, por exemplo, os lençóis freáticos e influenciam nas características da “caixa d’água” na parte superior da chapada e afetando as áreas de veredas.
“Toda e qualquer planta exótica em qualquer um novo ambiente causa impacto na relação com as outras espécies. Temos que lembrar, também, que o norte de Minas já tem de maneira natural duas perspectivas climáticas: a seca e as águas. Se tem quatro a cinco meses de chuva e sete a oito meses de seca, o impacto já é gigantesco com essa espécie exótica”, pontua Silva.
As plantações de pinus e eucalipto estão por toda a parte no território de Vale das Cancelas. É possível andar por quilômetros na estrada que corta as plantações, e a paisagem das chapadas do Gerais permanecer intacta num verde imenso e homogêneo.
:: Grande Sertão Ameaçado: os geraizeiros diante do megaprojeto de mineração chinês ::
Aos desavisados, o balanço das árvores pode dar à plantação as características de algo belo, não fossem os impactos causados à região: erosão do solo, redução da biodiversidade, contaminação por agrotóxicos nos arredores, uso excessivo de recursos hídricos e perda de qualidade do solo.
Somam-se a esse conjunto as consequências sociais para a população local, como concentração de terra, insegurança alimentar e diminuição de renda. “A gente ficou encurralado aí, sem saída”, resume dona Eurica, que vive na região abarcada pelos municípios de Grão Mogol e Padre Carvalho.
O encurralamento dos geraizeiros começou há cerca de 50 anos, como parte de uma política de modernização agrícola promovida pela Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) durante a ditadura militar, que ignorou completamente a existência dos povos tradicionais da região.
1984:
A situação dos geraizeiros não mudou muito de lá pra cá, as comunidades seguem ignoradas pelo estado, como se não existissem no território ancestral que ocupam há pelo menos 200 anos.
“As firmas invadiram, meteram o trator. Aí eu peguei esse papel aqui, essa escriturinha, e fui lá. Eles disseram que iam plantar e depois iam entregar a terra, e a gente, besta, tinha até medo de conversar, voltei com a escritura para trás. A firma agora já está tomando a terra. Arrancou meus postes. Agora está tomando a minha terra”, relata Alvino Nunes de Araújo, em posse da escritura do terreno onde vive há quase sete décadas.
O avanço das empresas no território de Vale das Cancelas se deu por meio de contratos de arrendamento de terras públicas, com duração de 23 a 25 anos, a partir de 1975. Desde então, as famílias vivem sob uma grave insegurança jurídica.
Os geraizeiros relatam que os episódios de intimidação são recorrentes no território. Em um dos casos, um vídeo registrado pelos moradores mostra o momento em que funcionários que seriam da empresa Rio Rancho derrubam cercas construídas pela comunidade.
A gente fica abatido. Ninguém esperava que isso fosse acontecer um dia, não. Depois que a gente viu que estava destruindo mesmo, derrubando a mata, derrubando tudo do modo que eles queriam. Ninguém dá conta de resolver esse problema, porque eles têm muito dinheiro, ninguém tem essa dinheirada para mexer com eles.
Josefa Araújo, geraizeira, 70 anos.
O desalento de dona Josefa Araújo é justificado diante de uma disputa que envolve forças desproporcionais. Do outro lado estão grandes empresas, como a Rio Rancho Agropecuária S/A, do ex-governador mineiro Newton Cardoso e de seu filho, o deputado federal Newton Cardoso Júnior (MDB). O patrimônio da família dá um indício do poderio da firma: além de empresas, 145 fazendas, uma praia na Bahia, uma ilha em Angra dos Reis, dois aviões, um helicóptero e um apartamento em Nova Iorque.
As corporações contam com o aval do governo para a manutenção das atividades no território dos geraizeiros, que, em 2018, foram reconhecidos como comunidade tradicional no âmbito da lei estadual 21.147.
O reconhecimento permitiu avançar no processo de regularização fundiária e titulação do território, além de enfatizar o direito à consulta prévia sobre empreendimentos que possam afetar seus bens e direitos, conforme previsto pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil.
Mas, na prática, nada mudou. O governo, por meio da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), segue com as concessões de licenciamentos ambientais às empresas instaladas no território, segundo as comunidades, sem qualquer participação dos moradores.
A defensora pública Ana Cláudia Alexandre Storch, que atua no caso por meio da Defensoria Especializada em Direitos Humanos, Coletivos e Socioambientais (DPDH), afirma que as consecutivas licenças ambientais autorizadas pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) representam uma omissão do estado diante da situação de vulnerabilidade dos geraizeiros.
“Há uma disputa possessória alimentada pelo próprio Estado. Esse é o ponto central desse caso, porque a empresa junta ao processo que obteve licenciamento ambiental. Essa é a contradição: os geraizeiros estão na fase final do processo de elaboração de seu laudo antropológico na Seapa [Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento]. Mas, na Semad, estão autorizando as empresas a entrarem dentro desse território.”
Storch explica que a inscrição no Cadastro Ambiental Rural (CAR), obrigatório para todos os imóveis rurais do país, é importante para o processo de regularização, ainda que não seja uma etapa obrigatória. Os territórios de uso coletivo devem ser inscritos no CAR pelo estado. Quando é título de propriedade individual, o próprio proprietário pode solicitar.
No caso do Território Tradicional Geraizeiro de Vale das Cancelas, o estado deveria ter feito o cadastro, mas não fez. O CAR funciona como um instrumento de consulta, que deveria apontar para a presença do território tradicional, mesmo que em sobreposição a outras posses e matrículas. Por isso, a “falta de um instrumento de consulta obrigatório que localize a existência de um povo ou comunidade tradicional no mapa, faz com que os procedimentos estejam sendo aprovados sem considerar a existência das comunidades e sem direito de consulta”, afirma Storch.
Assim, a Semad, ao liberar o licenciamento para as empresas, atua como se não houvesse uma comunidade tradicional no local.
Tudo foi feito pelo estado desconsiderando que aquelas terras estão sendo inclusive objeto de um procedimento dentro do próprio estado para regularizar. Eu não tenho como dizer que não há uma responsabilidade estatal por tudo que está acontecendo.
Ana Cláudia Alexandre Storch, defensora pública de MG
De acordo com um parecer técnico da Semad, publicado em 9 de fevereiro de 2022, o Bloco Cancela foi adquirido pela Rio Rancho em 2000. Somente 15 anos depois, deu-se início ao processo de regularização dos empreendimentos, finalizado em 2020, paralelamente ao processo de homologação do Território Tradicional Geraizeiro de Vale das Cancelas na Seapa.
O documento também aponta que a Rio Rancho possui 24,5 mil hectares, somente no Bloco Cancela, espalhados por sete fazendas, entre os municípios de Grão Mogol e Padre Carvalho: Batalha/São Francisco, Campinho, Cancela, Carinhanha, Curral de Varas, Lambedor e Ribeirãozinho. O contrato de arrendamento de uma das fazendas, a Lambedor, foi adquirido em 2005, da Floresta Rio Doce. A transferência do contrato da área de 1,6 mil hectares foi realizada dois anos antes do contrato ser extinto.
Durante os processos de licenciamento e repasse de contratos, as comunidades geraizeiras alegam que não foram consultadas, como prevê a Convenção 169 da OIT, e nem mesmo audiências públicas foram realizadas, como consta no próprio parecer técnico da Semad. Ainda assim, em 2021, a empresa entrou com um pedido de regularização da ampliação da atividade, o que foi concedido no ano seguinte.
Processo de homologação e laudos antropológicos
Atualmente, o processo de homologação do Território Tradicional de Vale das Cancelas está em fase de elaboração de laudos antropológicos que atestem a presença histórica de geraizeiros no local.
Serão três, no total, um para cada núcleo: Tingui, Lamarão e Josenópolis. O primeiro, sob responsabilidade do antropólogo João Batista Almeida Costa, já está pronto. O laudo do núcleo Lamarão está em desenvolvimento, enquanto o núcleo Josenópolis aguarda contratação de equipe pelo governo para dar início à elaboração do documento.
O relatório de Almeida Costa contraria o estado e atesta a presença da comunidade tradicional geraizeira na região há pelo menos 200 anos. “É possível afirmar que a população geraizeira está lá desde o período do garimpo em Grão Mogol, no século 18. A comunidade começa com escravos fugindo e formando quilombo”, afirma Costa.
Alvino Araújo, cuja ancestralidade que mantém com o território é parte fundamental de sua identidade, sabe melhor do que ninguém que a história de sua família se entrelaça com a história do Vale das Cancelas. “Nessa roseira, nasceu meu pai André Nunes de Araújo e minha mãe Almerinda Cardoso. Os outros avós a gente não lembra porque morreram, e a gente nem nascido não tinha”, conta o geraizeiro.
Ao falar sobre seus antepassados, Alvino afirma que os cemitérios construídos pelos geraizeiros são testemunhas silenciosas da longa jornada das comunidades na região. O laudo antropológico de João Batista Almeida Costa, atesta a existência de cemitérios na comunidade Tingui, que inclusive foram destruídos para dar lugar às plantações de eucalipto.
Alguns dos cemitérios seculares dos geraizeiros foram destruídos pelas empresas para dar lugar aos eucaliptos
A despeito da presença ancestral dos geraizeiros na região, o estado vendeu o discurso de “vazio populacional” na região para poder ocupá-la com empresas de reflorestamento. A pesquisadora Dayana Martins Silveira, em sua tese de doutorado “Comunidades Tradicionais do Norte de Minas: estratégias de luta e acesso a direitos territoriais”, afirma que essa narrativa “serviu apenas para legitimar os processos de dominação, exploração e expropriação das populações nativas. Ao contrário das ideias do discurso modernizador, sabe-se que essas terras já foram ocupadas por povos e comunidades tradicionais desde o século XVII”.
Um documento de 1998 da Fundação Rural Mineira (Ruralminas), inclusive, mostra que o órgão considerava que “Norte, Noroeste e Vale do Jequitinhonha têm como base áreas de terras devolutas, de propriedade do Estado de Minas Gerais, inteiramente desocupadas e inaproveitadas”.
Nesse contexto, o antropólogo explica que o laudo antropológico é a parte mais importante do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), que deve ser aprovado pela própria comunidade. O documento, posteriormente, é publicado pelo governo de Minas Gerais, quando as partes envolvidas no processo podem se contrapor ao documento. A Seapa, então, realiza uma espécie de julgamento das contraposições apresentadas.
Após a publicação do relatório, deve ser feito um levantamento da cadeia dominial dos imóveis envolvidos no processo de reconhecimento das comunidades, antes da Portaria de Reconhecimento. Nesse momento, é feito um estudo das propriedades privadas no local e seus respectivos valores e a indenização de cada proprietário. Com a portaria, vem o título, então, de propriedade coletiva.
O andamento do processo de regularização fundiária também esbarra na disputa pela posse da área em processos judiciais individuais. Segundo audiência final do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) dedicada às violações dos direitos humanos, ambientais e territoriais dos povos e comunidades tradicionais do Cerrado e seus modos de vida, que ocorreu em julho do ano passado, há uma avalanche de processos individuais na justiça contra as famílias geraizeiras, “para descaracterizar conflitos e direitos coletivos”.
Somente a Rio Rancho acumula 86 processos judiciais contra moradores das comunidades. Em 2023, a empresa entrou com uma ação de reintegração e manutenção de posse contra seis moradores da região de Curral de Varas, também conhecida como Meladinho e Forquilha. De acordo com a empresa, Juversino Nunes de Araújo, Nelson Marques Pimentel, Olivar Pestana da Costa, José Reginaldo Pestana da Costa, Dedio Rosário Ferreira e Sidnei Nunes de Araújo teriam invadido uma área supostamente pertencente à empresa “de forma violenta e arbitrária” e erguido cercas. A área em questão corresponde a 2.980 hectares e foi adquirida da empresa Florestas Rio Doce.
Em 30 de agosto deste ano, no entanto, o juiz Nilton José Gomes Júnior, da Primeira Vara Cível, Criminal e de Execuções Penais da Comarca de Salinas, declarou a incompetência da primeira instância para tratar do caso ao considerá-lo um conflito coletivo pela posse da terra rural.
“Verifica-se que se trata de conflito coletivo, uma vez que a área litigiosa encontra-se inserida no âmbito da discussão acerca do território tradicional geraizeiro do Vale das Cancelas, conflito este que abrange a Comunidade Geraizeira do Núcleo Tingui”, escreveu o juiz em sua decisão.
Por isso, o juiz encaminhou o processo para a Vara de Conflitos Agrários de Belo Horizonte, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. A defensora pública do estado mineiro, Ana Cláudia Alexandre Storch, que atua no caso por meio da Defensoria Especializada em Direitos Humanos, Coletivos e Socioambientais (DPDH), afirma que a DPE-MG faz a defesa do território coletivo na demanda possessória, que tem potencialmente, neste momento, a possibilidade de fixar a posse que os geraizeiros exercem sobre aquele território.
O Brasil de Fato enviou questionamentos à Rio Rancho sobre as denúncias relatadas pelos geraizeiros, mas não obteve retorno da empresa. A Seapa e a Semad também foram questionadas sobre os processos de regularização e concessão de licenciamentos na região do Vale das Cancelas, mas não houve resposta.
O processo de reconhecimento do território coletivo e a sua regularização enquanto tal enfrenta um dado estrutural e histórico, intrínseco à formação do estado brasileiro e das legislações sobre propriedade privada: a prática de grilagem de terras.
Segundo a geógrafa Sandra Helena Gonçalves Costa, a ocupação por empresas de reflorestamento no Vale das Cancelas se confunde com essa forma de se apropriar da terra, que é fundamental para compreender como se formou a estrutura fundiária brasileira. A própria Rio Rancho Agropecuária S/A já foi investigada pelo Ministério Público Federal por grilagem de terras devolutas da União.
Na formação do país, a legislação fundiária brasileira não abarcou a ocupação dos povos originários. A Constituição de 1824 inaugurou dentro do território brasileiro a propriedade privada da terra, e, em 1850, foi autorizado a comprar e vender terras no Brasil. “Quem tinha dinheiro podia comprar terras, mas houve uma população nos Gerais que não pôde adquirir terras, em nenhum contexto. Foi cerceado esse direito”, afirma.
Na mesma linha, a geógrafa afirma que historicamente aqueles com condições de adquirir terras foram e são os mesmos que elaboram as legislações. Basta observar a bancada ruralista no Congresso Nacional. “Tem lá senadores e deputados federais que são a extensão dos oligarcas desde o século 19, e se ramificam pelo Estado, como juízes, desembargadores, prefeitos”, ressalta a geógrafa.
Newton Cardoso Júnior, diretor da Rio Rancho, por exemplo, que faz parte da bancada ruralista e da Frente Parlamentar Agropecuária, é autor do Projeto de Lei 6.411, de 2016, que foi arquivado, mas previa a dispensa de licenciamento ambiental para áreas consolidadas em reflorestamento, como a plantação de eucalipto. Em 2017, inclusive, ele votou a favor da Medida Provisória 759, conhecida como “MP da Grilagem”, que dava brechas para a legalização de áreas públicas invadidas.
O ex-governador de Minas Gerais e ex-deputado federal Newton Cardoso [à esquerda] e o deputado federal Newton Cardoso Júnior (MDB-MG) [à direita] – Divulgação MDB e Vinicius Loures / Câmara dos Deputados.
Por esses motivos, a defensora pública do estado mineiro Ana Cláudia Alexandre Storch afirma que o fato de um imóvel estar registrado em cartório não implica na legitimidade da propriedade, uma vez que existem registros sem lastro suficiente tal. Muitas vezes, afirma a defensora, trata-se de documentos “esquentados” pelo Judiciário.
É por isso que Storch bate na tecla da necessidade de levantar a cadeia dominial dos territórios para chegar no documento original em que o estado teria passado a propriedade para um particular. Somente a partir disso, é possível afirmar se há ou não uma propriedade privada. “Na maior parte dessas terras onde os geraizeiros estão não existiu essa transferência dos bens do estado para o particular”, diz Storch.
Enquanto os processos de suspensão de licenciamentos ambientais e de reconhecimento do território coletivo não avançam, os geraizeiros vivem cotidianamente com o medo de serem expulsos do local onde seus antepassados deixaram como herança, tradição e memória.
“A gente sente tristeza, tristeza, raiva e tristeza e tem hora que nem dorme de noite imaginando esse povo fazendo esse piseiro com as terras da gente. A gente tem medo. Se um dia precisar sair, para onde vai? Querer ninguém quer sair mesmo. Nasceu e criou aqui, a gente quer morrer aqui”, conclui Alvino Nunes de Araújo, de 68 anos, que resume o sentimento coletivo do povo geraizeiro do Vale das Cancelas.
*Esta reportagem foi realizada com o apoio da ONG ARTIGO 19 e do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos.
Texto: Caroline Oliveira
Produção e reportagem: Caroline Oliveira e Carolina Caldeira
Imagem e vídeo: Vitor Shimomura
Edição: Geisa Marques
Identidade visual: Fernando Bertolo e Mayara Fujitani
Ilustrações: Fernando Bertolo
Programação: Fernando Bertolo, Rafael Cavaletti e Stephanie Heffer
Coordenação de jornalismo: Rodrigo Chagas
Coordenação de rádio e vídeo: Monyse Ravena