20/11/2024
Responsáveis pela chacina foram condenados, mas terras ainda não foram destinadas para a reforma agrária
Reprodução MST – Foto:
No dia 20 de novembro de 2004, dois anos após a ocupação da fazenda Nova Alegria, no município de Felisburgo, Vale do Jequitinhonha mineiro, Adriano Chafik Luedy, seu primo Calixto Luedy e 15 jagunços invadiram o acampamento Terra Prometida. Assassinaram cinco trabalhadores rurais sem terra, feriram diversos outros e colocaram fogo em todas as estruturas do acampamento. 20 anos após o crime, que passou a ser conhecido como Massacre de Felisburgo, a terra banhada com o sangue desses trabalhadores ainda não foi transferida formalmente às famílias que resistem no território.
Mesmo com toda a violência, o acampamento Terra Prometida se reergueu. Com muita luta dos trabalhadores, organizados no Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), foi possível a condenação dos envolvidos, que hoje cumprem penas que ultrapassam 100 anos de prisão. Porém, ainda é uma lacuna a desapropriação da terra e sua destinação às famílias que nela vivem e produzem. Grande parte da fazenda foi comprovada como terra pública, o restante ainda permanece no nome de Chafik, mandante e assassino condenado.
“Esse conflito é muito emblemático e a condenação do fazendeiro Adriano Chafik é de suma importância. Porém, na medida em que os governos são omissos, e não solucionam definitivamente o conflito, transferindo essas terras formalmente para a reforma agrária, eles são coniventes com a violência e deixam margem para que outros massacres possam acontecer”, ressalta Silvio Netto, dirigente nacional do MST pelo estado de Minas Gerais.
Para o MST, a condenação do mandante e executor da chacina é uma grande vitória, mas não é suficiente para que seja feita justiça.
“A justiça só se concretiza de fato com a resolução do conflito e o mesmo só terá solução com a desapropriação da terra e com o reconhecimento das famílias como assentadas”, destaca Sílvio Netto.
A ocupação
A ocupação daquela terra improdutiva aconteceu em meados de maio de 2002. Ao todo, 230 famílias, que à época ocuparam a fazenda Nova Alegria, denunciavam o não cumprimento da função social da terra e a existência ali de terras devolutas, ou seja, terras públicas, griladas pelo fazendeiro Adriano Chafik. O grileiro então entrou com uma ação de reintegração de posse e fez diversas ameaças aos trabalhadores que ali passaram a viver e produzir.
Afonso Henrique de Miranda Teixeira, procurador de justiça do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e coordenador do Centro de Apoio Operacional de Conflitos Agrários, que acompanhou o caso desde então, relembra que uma equipe de Belo Horizonte foi designada para avaliar a situação do conflito, e que teve início uma ação discriminatória, a partir da denúncia do MST.
“Essa ação tem um efeito legal imediato de suspensão de outras ações correlatas. Então, com a ação discriminatória, houve a suspensão da ação possessória “, explica o procurador.
Fica então comprovado que, do total de 1,7 mil hectares da fazenda, 515 eram de fato terras devolutas. Com isso, a alegação de Adriano de que as terras eram de sua propriedade e a reintegração de posse caíram por terra, o que enfureceu o grileiro.
“A ação discriminatória foi o pavio para os atos criminosos que viriam a acontecer”, declara Afonso.
O massacre
Na manhã do dia 20 de novembro, o grupo, que estava fortemente armado, comandado pelo fazendeiro e recrutado por seu primo, o ex-policial Calixto Luedy, invade o acampamento e atrai os moradores estourando foguetes, um sinal comum para reuniões no MST.
A emboscada atraiu as famílias. Homens, mulheres, idosos e crianças, contra os quais parte dos pistoleiros abriram fogo indiscriminadamente. O primeiro tiro foi dado por Chafik. O restante dos jagunços trataram de destruir e incendiar tudo o que a comunidade havia construído: lavouras, criações, casas e a escola.
O resultado foi a morte de cinco trabalhadores naquela noite, além de 12 feridos e um sonho incendiado.
“Entraram no acampamento Terra Prometida e mataram cinco trabalhadores rurais sem terra, ferindo diversas pessoas, inclusive crianças. Queimaram as casas, os barracos e a escola e promoveram o que foi, até hoje, a face mais violenta do latifúndio na história da luta pela terra em Minas Gerais”, avalia Silvio Netto.
O crime foi premeditado e teve a conivência de autoridades e fazendeiros locais. Para o procurador do Ministério Público de Minas Gerais, o massacre não pode ser esquecido.
“20 de novembro de 2004 é um dia que não pode ser esquecido pelo Brasil, o dia da Chacina de Felisburgo. Esse é o crime mais grave, no âmbito rural, do estado de Minas Gerais, e aconteceu após muitas sinalizações dos criminosos, que foram levadas ao conhecimento da polícia local pelos agricultores do MST”, ressalta Afonso Teixeira.
Perderam a vida naquele dia: Joaquim José dos Santos (49), Miguel José dos Santos (56), Juvenal Jorge da Silva (65), Francisco Nascimento (72) e Iraguiar Ferreira da Silva (23), que deixou a esposa grávida. Ela também perdeu o pai no massacre.
O processo
A partir do crime, tem início um longo e complexo processo, ao qual Teixeira acompanhou de perto. Ele relembra a oitiva de mais de 80 testemunhas e a compreensão da necessidade de transferência do julgamento para Belo Horizonte.
“O Ministério Público ingressou com o pedido de desaforamento, para que os julgamentos fossem realizados fora de Jequitinhonha, porque ali não havia a menor possibilidade de haver um julgamento que fosse imparcial” , afirma o procurador.
Assim, o julgamento de cinco envolvidos aconteceu em Belo Horizonte. Adriano Chafik Luedy foi condenado, nove anos após o massacre, a 115 anos de prisão, mas o assassino ainda ficaria foragido até 2017, quando foi preso em Salvador-BA. Quanto a seu primo, foi o último a ser condenado, em 2019, a 195 anos de prisão, após anos foragido da polícia, tendo sido capturado em Sergipe.
Para Teixeira, o conflito apresenta uma série de contornos de especificidade que fazem com que seja um dos mais emblemáticos do país.
“Não há outra solução para Fazenda Nova Alegria, se não que ela seja efetivamente destinada para esses trabalhadores rurais. Mas além deste princípio, está colocado aqui o valor fundamental da justiça, de maneira que não há outra saída justa para essa situação, se não, que essas famílias permaneçam no local. Esse embate só pode terminar com a destinação da terra para as famílias”, aponta o procurador
A violência no campo
Para o MST, tamanha violência se dá a partir de um contexto histórico de conflitos no campo, que são corresponsabilidade dos latifundiários e do Estado, na medida em que o último falha em promover a justiça social no meio rural e a reforma agrária, direito garantido pela Constituição Federal, mas negado ao longo da história.
Silvio Netto afirma que este quadro obriga os trabalhadores rurais a se organizarem em protestos contra a vulnerabilidade para os pobres do campo, que têm que enfrentar cotidianamente a violência.
“O massacre é uma circunstância de violência direta, mas é consequência de uma violência histórica promovida pela burguesia agrária, pelo latifúndio, que sempre usou da violência para atacar os trabalhadores que ousaram se organizar e contestar o predomínio do latifúndio e da exploração do povo do campo”, denuncia o dirigente do MST em Minas Gerais.
A teimosia dessa gente sem terra
Apesar de todo o sofrimento, o acampamento Terra Prometida segue em luta. As 62 famílias que ainda residem no território dividem sua produção em lavouras individuais e coletivas e consolidaram sua agroindústria, atuando fundamentalmente na cadeia produtiva do mel e da mandioca.
“Essas 62 famílias têm o orgulho de ter se reerguido com muita coragem e organização, e de ter hoje um território repleto de fartura de alimentos. Esse talvez seja um dos maiores legados da luta pela terra que o MST tenha, não só no estado de Minas Gerais, mas no Brasil”, reafirma Silvio Netto.
Para o movimento fica claro, com esse exemplo de resistência, que a persistência na luta pela terra, mesmo diante da face mais violenta do Estado brasileiro e do latifúndio, é o caminho para a reforma agrária popular.
“O Terra Prometida é, para nós, a demonstração de que quem não desiste, quem teima, não abandona a terra e tem coragem de seguir a luta é vitorioso. Nós, enquanto organização, aprendemos muito com as consequências do Massacre de Felisburgo. A coragem e a organização são capazes de superar a violência. Seguiremos em luta na promoção e na vitória da reforma agrária popular”, complementa o dirigente do MST.
Justiça para Felisburgo
Completados 20 anos de um dos maiores massacres da história do MST e da luta pela terra no Brasil, aquela terra pública, abandonada e banhada de sangue, ainda não foi destinada para a reforma agrária. É o que denuncia o MST.
“Nós provamos que os trabalhadores em luta pela terra não desistem e não vão desistir. Essa luta é sagrada, pelo amor que temos pela terra e pelo compromisso com a reforma agrária popular. Aos nossos mortos, caídos em Felisburgo, temos hoje um dia de lembrança, mas um dia de protesto e mais um dia de luta. Tombaram cinco sem terras, mas nós seguimos adiante”, conclui Silvio.
Edição: Ana Carolina Vasconcelos