A Covid-19 e os povos indigenas: desafios e medidas para controle do seu avanço

21/03/2020

ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva e Associação Brasileira de Antropologia; ABA - Associação Brasileira de Antropologia

Fonte:https://www.abrasco.org.br/site/outras-noticias/notas-oficiais-abrasco/a-covid-19-e-os-povos-indigenas-desafios-e-medidas-para-controle-do-seu-avanco/45866/?fbclid=IwAR2zlLoBaJ0IU3dr8HDwIGDU7kY7qWKZA6Bb2j2bky-wB-SKCX9RRyLa2P4

A pandemia de coronavírus já atinge mais de 100 países no mundo e está em pleno curso no Brasil. Aqui, embora os primeiros casos tenham sido confirmados há poucas semanas, o crescimento da doença tem acontecido de forma exponencial, com registro de óbitos. Do que já se sabe da epidemia, os grupos populacionais mais vulneráveis são idosos e portadores de comorbidades. Considerando esse cenário, nós, que trabalhamos com os povos indígenas no Brasil, temos nos preocupado com a chegada da epidemia do novo coronavírus em territórios indígenas e suas potenciais consequências para as famílias que ali vivem. Os povos indígenas não estão apenas expostos ao novo coronavírus, mas também a adversidade do contato interétnico promove acentuada vulnerabilidade social que dificulta o enfrentamento do processo epidêmico.

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O reconhecimento pelo Estado brasileiro das necessidades específicas de saúde desses povos levou à criação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena no âmbito do Sistema Único de Saúde (SASI-SUS), responsável pela provisão de atenção primária em territórios indígenas. O SASI-SUS representará a linha de frente na prevenção da transmissão e no cuidado com os doentes, devendo ser fortalecido. Somente assim, poderá fazê-lo de modo eficiente e eficaz.

Alguns pontos devem ser ressaltados, no que diz respeito à vulnerabilidade dos povos indígenas e às implicações no enfrentamento da epidemia:

  • Trata-se de um novo vírus que aflige a maior parte da população do planeta. Todos nós, indígenas e não indígenas, somos suscetíveis à doença. Neste caso, não é o fator biológico que amplia a vulnerabilidade dos indígenas e sim a iniquidade previamente instalada em suas condições de vida e situações de saúde, que tende a afetá-los de modo mais negativo.
  • Experiências anteriores mostram que doenças infeciosas introduzidas em grupos indígenas tendem a se espalhar rapidamente e atingir grande parte dessas populações, com manifestações graves em crianças e idosos. Essas situações desestruturam a organização da vida cotidiana e a manutenção dos cuidados de saúde.
  • Diversos estudos mostram elevadas prevalências de diferentes doenças e agravos à saúde na população indígena, como desnutrição e anemia em crianças, doenças infecciosas como malária, tuberculose, hepatite B, entre outras, além da ocorrência cada vez mais frequente, em adultos, de hipertensão, diabetes, obesidade e doenças renais. Tais comorbidades tornam essas pessoas mais vulneráveis a complicações, gerando preocupação sobre o modo como a epidemia poderá se comportar na população indígena, em termos de evolução e gravidade.
  • São enormes os desafios para garantir o isolamento previsto para casos suspeitos ou confirmados em territórios indígenas, cujas habitações frequentemente têm grande número de moradores. Por esse motivo, uma das principais estratégias de prevenção ao coronavírus é controlar a entrada de pessoas com ou sem sintomas respiratórios (incluindo casos suspeitos e confirmados) em territórios indígenas. Nesse sentido, a Funai e as equipes de saúde que trabalham nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) são agentes estratégicos para atuar em conjunto com as lideranças indígenas no enfrentamento do problema.
  • Em geral, essas populações residem em locais remotos e têm dificuldade de acessar o sistema de saúde, o que vai demandar maior agilidade nas respostas, bem como recursos para garantir o deslocamento até unidades de internação, localizadas nas cidades. Além disso, muitos territórios indígenas estão mais próximos de pequenas cidades com precária estrutura de serviços de saúde, onde há pouca ou nenhuma disponibilidade de hospitais especializados e serviços de UTI, dificultando o tratamento de casos graves do coronavírus.

Em reconhecimento a esses problemas, apontamos algumas medidas e ações:

  • Precisamos evitar que pessoas infectadas, incluindo assintomáticas, entrem nas aldeias, já que tanto indígenas quanto não indígenas circulam nas aldeias e seu entorno, ampliando a possibilidade de transmissão da doença. Por isso, a Fundação Nacional do Índio (Funai) deve atuar no controle de entrada em territórios indígenas, bem como garantir o acesso às ações de saúde, alimentação, saneamento e outros aspectos necessários ao bem-estar dos povos.
  • Os povos indígenas já são prioritários na vacinação anual contra influenza. Neste ano, no entanto, com a antecipação da vacinação para reduzir a circulação conjunta do coronavírus com o vírus da gripe e outros vírus respiratórios, a vacinação contra gripe para os indígenas está planejada somente para maio, momento em que está previsto o pico epidêmico. Desse modo, solicitamos a antecipação urgente do calendário vacinal nos DSEIs, para não sobrecarregar a força de trabalho do restante da rede SUS.
  • É fundamental e urgente articulação com lideranças, organizações indígenas e conselheiros de saúde indígena para implementação das ações de controle e vigilância da COVID-19.
  • Alertamos também para a urgente necessidade de implementação de estratégias para as aldeias localizadas nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste próximas a grandes centros urbanos, onde já ocorre a transmissão comunitária do novo coronavírus. A população dessas aldeias costuma ter intenso contato com cidades próximas. Importante dizer, ainda, que não se sabe como o inverno afetará a transmissão do vírus, dado que este é mais rigoroso justamente nas regiões ao sul do país;
  • Destacamos a importância – e dificuldades – da implementação de medidas individuais de prevenção em comunidades indígenas. Tais medidas devem considerar os mecanismos de transmissão do vírus e as práticas e realidades locais que poderiam tornar indivíduos vulneráveis à infecção, como contato próximo, convívio domiciliar e compartilhamento de utensílios e objetos de uso pessoal. Entretanto, são inúmeras as dificuldades para efetivar a prevenção, devido à precariedade no acesso ao saneamento e à carência de insumos necessários;
  • Afirmamos a necessidade de grande articulação entre funcionários do SASI-SUS em todos os níveis, junto às Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, a fim de garantir acesso à informação da situação epidemiológica e das ações que estão sendo realizadas em cada local. Além disso, é preciso garantir que os planos emergenciais para casos graves contemplem a população indígena, deixando explícitos os fluxos e as referências para o atendimento em tempo oportuno.

Produzida pelo Grupo Temático Saúde Indígena (GTSI/Abrasco) e Comissão de Assuntos Indígenas (CAI/ABA) e aprovada pelas direções de ambas as entidades, esta nota é um esclarecimento, um alerta e uma colaboração com as instituições que trabalham direta ou indiretamente com e entre os povos indígenas. É preciso fortalecer os direitos indígenas, o SUS e o SASI-SUS visando lidar adequadamente com o desafio de conter esta pandemia.

Rio de Janeiro, 21 de março de 2020,

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