23/02/2022
1 ano da Determinação do Supremo Tribunal Federal à União na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF nº 742
No dia 08 de fevereiro de 2022, nós quilombolas rememoramos 04 anos de conquista da constitucionalidade do Decreto 4887 de 20 de novembro de 2003, após mais de 14 anos de luta, no dia 08 de fevereiro 2018 o Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito histórico quilombola.
Coincidência ou não, neste mesmo mês no dia 23 de fevereiro de 2021, nós quilombolas paramos outra vez para acompanhar apreensivos, agora não mais presencial, pelo Plenário Virtual, a votação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 742, conhecidamente como ADPF Quilombola.
A ADPF Quilombola foi proposta em 09 de setembro de 2020, Pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), conjuntamente com os partidos políticos PSB, PSOL, PCdoB, REDE e PT, com o objetivo de fazer cessar violações a preceitos fundamental da Constituição Federal de 1988, como a garantia de reprodução social, cultural e territorial do povo quilombola, diante das violações de direitos, negligências e omissões do governo federal em implementar políticas públicas efetivas e específicas para a referida população, decorridos mais de seis meses desde o início da pandemia no país.
Sem acesso a políticas públicas estruturantes como: saneamento básico, saúde, trabalho, educação entre muitos outros direitos, que devem ser garantidos pelo Estado brasileiro, a população quilombola viu-se fortemente impactada pela pandemia de Covid-19.
Foram feitas várias tentativas, porém frustradas, do Movimento quilombola para estabelecer ponte de diálogos com o Governo Federal, na busca de construção de políticas e estratégias para o enfrentamento da Covid-19 nos territórios quilombolas.
Após diálogos com a assessoria jurídica, a CONAQ foi buscar no sistema de justiça a cessação de violação dos direitos, sobretudo no contexto de Pandemia, requerendo ao STF que o Governo Federal pudesse implementar um Plano Nacional de Enfrentamento a Covid-19 nos Quilombos, tendo em vista, o contexto de extrema vulnerabilidades das comunidades quilombolas.
Em meio às discussões sobre a vacinação da população brasileira e devido ao 1º Plano Nacional de Imunização não priorizar a imunização da população Quilombola, requeremos um aditamento à ADPF 742 em Dezembro/2020. Na ocasião foi solicitado a inclusão da população quilombola como Público prioritário a ser vacinado, bem como, a adoção de protocolos sanitários que atendessem suas necessidades.
Designado como relator naquele momento, o Ministro Marco Aurélio Mello, optou por levar a votação ao plenário virtual, tendo em vista a urgência da situação.
A votação iniciou em 12 de fevereiro e se encerrou no dia 23, com um placar de 9×3, a suprema corte reconheceu a vulnerabilidade que se encontram os quilombolas nesse contexto de Pandemia e as omissões do Estado brasileiro, determinado assim, que o Estado Brasileiro, criasse e implementasse um Plano Nacional de Combate aos Efeitos da Pandemia nos quilombos do país, com:
objetivos, metas, ações programáticas, cronograma de implementação e metodologias de avaliação, contemplando, ao menos, providências visando a ampliação das estratégias de prevenção e do acesso aos meios de testagem e aos serviços públicos de saúde, controle de entrada nos territórios por terceiros considerado isolamento social comunitário e distribuição de alimentos e material de higiene e desinfecção, bem como, um Plano Nacional de Operacionalização para vacinação da População Quilombola, com adoção de protocolos sanitários específicos voltados à efetividade da medida e ações programáticas a fim de evitar descompasso nas unidades da Federação, prevendo objetivos, metas, cronograma e providências indicando quantitativo populacional e de doses a serem destinadas.
Determinou ainda que ambos os Planos deveriam ser construídos com a participação de representantes da CONAQ. Para tanto, um Grupo de Trabalho Interdisciplinar e paritário deveria ser constituído, com a finalidade de debater, aprovar e monitorar a execução do Plano.
À União coube ainda, providenciar a inclusão, no registro dos casos de Covid-19, do quesito raça/cor/etnia, com notificação compulsória dos casos de contaminação confirmados e ampla e periódica publicidade. Se abstenha de proceder a exclusão de dados públicos relativos à população quilombola, por fim que o Estado garantisse a proteção da posse dos territórios quilombolas, com a suspensão das ações de reintegração de posse até quando durar a pandemia.
Uma vitória histórica decorrente da luta quilombola. Vitória histórica porque foi a primeira vez que o Movimento quilombola buscou o STF para garantia de direitos Constitucionais. Histórica porque o STF reconheceu a legitimidade da CONAQ para propor ação de controle concentrado, equipando a uma entidade de Classe, mesmo não sendo Pessoa Jurídica. Histórica porque foi a primeira vez que o sistema de Justiça reconheceu a ausência de política pública destinada à população quilombola como um Problema Estrutural do Estado brasileiro.
Hoje, após um ano da determinação do STF, houve alguns avanços, não por boa vontade do Governo Federal, mas sim em decorrência da luta quilombola. Cada avanço que se teve foi disputado termo a termo no Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), ou levando ao atual Ministro Relator Edson Fachin do STF.
Uma das principais questões que se perpetuam nas discussões no GTI e que perpassa todas a ações determinada pelo poder judiciário é o quantitativo populacional de quilombola no país, a ausência de dados sobre a população quilombola, como podemos implementar a política pública, garantir seu monitoramento e alcançar metas sem saber quantas pessoas sujeitas da política.
Chegamos a conclusão que tudo o que se tem sobre a população quilombola é subestimado, ou seja, as ações que estão sendo implementadas a muito suor e disputas são parciais, não atingindo o quantitativo populacional quilombola.
A ação principal a ADPF 742 foi dividida em 4 Petes, para facilitar o acompanhamento das ações pelo poder judiciário:
No que se refere a vacinação, foram várias disputas para garantia do direito à vacinação mesmo após a determinação do STF. Os quilombolas foram incluídos na 9ª e 10ª pauta de vacinação, porém em decorrência de limitações trazidas no Plano de Operacionalização da Vacina, a vacinação da população quilombola ficou restrita aos quilombolas que se encontravam no território, pois o Plano Nacional de Operacionalização (PNO) elencou que estavam inclusos somente quilombolas que “habitam” no território. Após várias discussões no GTI e da negativa da Câmara Técnica Assessora de Imunizações de Doenças Transmissíveis, que chegou até emitir uma nota, afirmando que somente quilombolas que vive nos seus território deveriam ser vacinados, exigindo para tanto não somente a Declaração étnica-quilombola, também a comprovação de endereços por parte dos quilombolas, para serem vacinados, situação que nos deixou perplexo, evidenciando o total desconhecimento das realidades da população quilombola.
Outra vez o Ministro interveio e determinou a vacinação de todos os quilombolas, não importando onde estivesse. Foram várias as disputas e discussões no GTI e recursos no STF. Para sustentar nossos argumentos a importância da vacinação de todos quilombolas e monitorar as ações do governo, a CONAQ juntamente com parceiros e organizações da sociedade civil criaram o “Vacinômetro Quilombola”, monitorando centenas de comunidades quilombolas e dialogando direto com as lideranças que fizeram o levantamento junto à comunidade.
No que se refere a distribuição de materiais de higienização e acesso ao sistema de saúde pelos quilombolas, bem como o cadastro dos quilombolas no sistema de monitoramentos de saúde pouco se implementou, alguma ou outra comunidade se tem notícias sobre a distribuição de material que são destinados especificamente para a população quilombola, que ao chegar nos municípios são dado destinação diversa, exigindo para tanto uma vigilância por parte das lideranças quilombolas que tem feito cobranças infrutíferas.
No que tange à proteção territorial, pouco tem se avançado além da suspensão das ações possessórias contra quilombolas. Alguns quilombolas ainda sofreram despejos na pandemia, as ações do governo federal se limitam a um painel de denúncia no site da Fundação Cultural Palmares denominado “proteção Territorial Quilombola”.
Com relação a continuidade dos Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID), o governo se limita a dizer que os trabalhos continuam. No entanto, em determinação recente do STF para que o governo constitua um plano para continuidade da elaboração do RTID para titulação dos territórios quilombolas, bem como destinação orçamentária a essa política foi agravada pela União.
Com relação a Segurança alimentar e acesso a água o governo se limita a tratar de distribuição de cestas básicas e merenda escolar, nada se fala em fomento para produção de alimentos nos quilombos, embora a CONAQ enfatiza que segurança alimentar não é só destruição de cesta básicas.
No que se refere a acesso a água o governo se limita a referenciar ações que foram feitas antes da Pandemia a exemplo do Programa Cisterna, política implementada pelo governo anterior.
Após discorrer sobre tudo isso cabe aqui destacar que as negativas do governo em implementar todas essas medidas, mesmo parciais, tendo em vista a ausência de dados sobre a população quilombola é QUE NÃO TEM ORÇAMENTO para essa política, cabe lembrar que o orçamento quilombola que já não era suficiente sofreu cortes neste ano.
Por fim, importa destacar que todo o avanço conquistado, tem sido com muita luta. Luta coletiva: a CONAQ junto aos quilombolas. Pois todo quilombola é um conaquiano e essa luta é coletiva, essa luta e as mínimas conquistas e avanços não seriam possíveis sem os milhões de quilombolas que resistem para existirem.