27/03/2018
A MINERAÇÃO PASSOU por cima da casa de Lúcio da Silva Pimenta, na Serra da Ferrugem. Vanessa e Reginaldo Rosa dos Santos precisaram sair do pequeno sítio onde moravam, na comunidade Cabeceira do Turco, por causa dos tremores de um mineroduto – hoje vivem em uma casa alugada. Elias de Souza e Lúcio Guerra Júnior denunciaram falta de água, poeira, barulho, insegurança, morte de riachos e do solo. Sobre os cinco moradores de Conceição do Mato Dentro, pequena cidade a cerca de duas horas de Belo Horizonte, recaíram agressões, vigilância, desemprego, perseguição e isolamento. Tudo isso causado, eles denunciam, pela gigante britânica Anglo American, a mineradora que quer construir uma barragem 7 vezes maior que a de Mariana.
A Anglo tomou o controle da operação da combalida MMX, em 2008, do Grupo X de Eike Batista. Nos últimos anos, os impactos de uma legislação frouxa – a empresa chegou a contratar ao menos um funcionário público licenciado para defender seus interesses – e de uma atuação onipresente na cidade fizeram com que cinco moradores levassem ao Ministério Público Estadual denúncias de violações causadas contra as comunidades do entorno do empreendimento. Eles pagam um alto preço pelo embate. Hoje, vivem sob os olhos do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos de Minas Gerais. Suas rotinas são vigiadas e sua movimentação é limitada por causa das intimidações. Alguns tiveram que abandonar suas casas.
Assim que começaram a enfrentar a empresa, Lúcio, Vanessa, Reginaldo, Elias e Lúcio Guerra foram ameaçados com bilhetes anônimos debaixo da porta e mensagens de celular oferecendo serviços funerários. Viram motoqueiros rondando suas casas, à noite. Um deles foi espancado na frente dos filhos. Outro não consegue emprego nem quando implora a antigos amigos. “Eu e minha família não saímos mais de casa. Sou uma pessoa isolada”, conta Elias de Souza. “No outro dia levei uma surra perto dos meus filhos”
Mesmo ameaçados, os cinco se uniram em abril de 2017 para impedir o avanço da etapa 3 do projeto da mineradora, que prevê a construção da colossal barragem de rejeitos maior do que a que rompeu em Mariana e causou o maior desastre ambiental do país. Conseguiram, com uma ação popular, cancelar a realização de uma audiência pública marcada pela Anglo para discutir a expansão de suas atividades.
A mobilização desencadeou uma onda ainda maior de intimidações, sobretudo depois que um jornal local publicou uma reportagem – sem assinatura – que trazia o nome dos cinco autores da ação popular. Umvídeo com depoimentos de moradores falando sobre o caso também circulou pelas redes sociais. Além de ameaças de morte, os cinco passaram a ser repreendidos em locais públicos com olhares, palavras e agressões físicas. Foi quando decidiram entrar no programa de proteção a pedido do Ministério Público do Estado.
“A estratégias da mineradora foi justamente colocar os moradores do município contra as lideranças”, diz a coordenadora do programa de proteção, Maria Emília da Silva. Segundo ela, a empresa construiu a imagem de que eles estariam “prejudicando o avanço da cidade”, o que enfureceu quem depende dos empregos da mineradora e em quem acredita que a Anglo trouxe apenas benefícios ao município. Como contrapartida da exploração, por exemplo, a empresa pavimentou 20 quilômetros da rodovia de acesso à cidade, ampliou a policlínica e implantou um centro de inclusão digital.
“Assim que a gente cancelou a audiência, a minha casa foi apedrejada”, conta Elias de Souza, que por três vezes já teve que sair com sua família de Conceição do Mato Dentro. Ano passado, ele não acatou a sugestão do programa de proteção, que queria mantê-lo por mais tempo fora, e voltou para a sua cidade. Sentia saudades. Por isso, foi desligado do programa, contra sua vontade. “Eu amo isso aqui. A nossa vida está toda aqui. Nosso umbigo está enterrado nesta terra”.
Ao incluir os cinco moradores no programa, o Estado reconhece as intimidações, mas nunca as colocou como empecilho para a empresa continuar a expandir seus negócios. Pelo contrário. A Anglo contou com um parecer favorável do governo para conseguir a aprovação da ampliação de uma barragem de rejeitos. Em 26 de janeiro, uma câmara técnica aprovou a licença prévia para que o conglomerado estrangeiro expanda também a mina.
Em nota, a Anglo American disse que “não realiza ou participa de atos de intimidação de ativistas e lideranças locais e busca uma relação de boa convivência e ganhos mútuos com as comunidades na qual está inserida” e “condena qualquer forma de assédio ou violência”. A Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania informou por e-mail que “continua atuando de forma efetiva para garantir a proteção dos defensores da região de Conceição do Mato Dentro”.
No alto da serra, na Comunidade do Turco, do quintal da casa de Elias dá para ver as montanhas almejadas pela Anglo American. Dos cinco defensores, ele é o principal alvo da mineradora.
Elias foi o escolhido pelos atingidos para liderar as mobilizações contra a Anglo American e se tornou o porta voz das comunidade nas audiências públicas e nas manifestações. Por isso, também foi, dos cinco, o primeiro a sofrer as ameaças, perseguições e intimidações e o primeiro a entrar no programa de proteção aos Defensores de Direitos Humanos, em 2016. “Minha casa foi invadida, teve carro dormindo na minha porta, entraram e roubaram meu computador com as informações. Sofri todos os tipos de intimidações”, contou.
Elias lembra que, antes da Anglo American chegar a Conceição do Mato Dentro, ele mexia na terra, fazia farinha e produzia cachaça com seu sogro. “Isso aqui era o melhor lugar para viver, nós éramos muito felizes”. Assistir aos idosos perdendo o sustento e às crianças atormentadas pelo barulho fez com que o agricultor começasse a se manifestar nas reuniões públicas marcadas pela empresa. “Eu não consigo não me importar com o sofrimento do próximo”.
Já são cinco anos de luta intensa e muita perseguição. Elias teve que deixar sua casa três vezes porque estava correndo risco de vida, não conseguiu mais emprego em lugar nenhum e viu seus familiares sofrerem represálias por causa de sua militância. Ao longo do tempo, a pressão foi tanta que ele foi adoecendo.
“Eu não consigo não me importar com o sofrimento do próximo”
Ano passado, ele não acatou a sugestão do programa de proteção, que queria mantê-lo por mais tempo fora, e voltou para sua cidade. Por isso, foi desligado do programa, contra sua vontade. “Eu amo isso aqui. A nossa vida está toda aqui. Nosso umbigo está enterrado nesta terra”, justifica.
Hoje, Elias tem medo de sair de casa, se isolou com sua família, mas continua frequentando as principais reuniões e acompanha os passos da Anglo no município. Os amigos, os encontros, as conversas no final da tarde, as festas, acabaram. Por outro lado, apesar das privações, ele não acredita que poderia ter sido diferente. “Alguém teria que mostrar essa história. Alguém teria que pagar o preço. E eu escolhi pagar esse preço”, afirmou.
No caminho para sua casa está o pequeno sítio de Vanessa e Reginaldo. O galinheiro está vazio, as folhas dominam o jardim. O mineroduto passa ao lado do quintal. Enquanto a equipe de The Intercept Brasil conversava com o casal, Vanessa recebeu a notícia do rompimento do mineroduto da Anglo em Santo Antônio do Grama, na Zona da Mata. “A gente vive com medo disso aqui romper. Eles falam que não tem como, mas olha aí, rompeu. Imagina que desastre”, exclamou.
Primeiro acabaram com a nascente, depois começaram os tremores. Foi assim que a mineração chegou à roça do casal, na Cabeceira do Turco. Vanessa e Reginaldo estavam terminando de reformar a casa quando o mineroduto começou a operar, causando rachaduras no imóvel. “A empresa nunca é culpada. Eles falavam que a gente que construiu a casa com material ruim”, contou Vanessa.
Com medo do imóvel desabar, eles aceitaram o aluguel social oferecido pela Anglo American. Hoje, moram na cidade. O acordo com a empresa, segundo Reginaldo, era de que eles ficassem na casa alugada por seis meses. Depois seriam reassentados. Já se passaram três anos. “Isso aqui não é minha casa, é a casa da Anglo”, observou Vanessa. “Eu morei a vida inteira naquele lugar e tive que sair por causa da mineradora”, acrescentou Reginaldo.
A Anglo American alega que o motivo da saída deles foi a falta de água, apesar de o casal reforçar que o principal motivo foram os tremores e as rachaduras na casa, e que ofereceu duas alternativas de abastecimento para os atingidos da comunidade: acesso a uma estação de tratamento de água ou um poço artesiano.
“O que eu tenho na roça hoje? Só problema e destruição”
O terreno onde Vanessa e Reginaldo moravam é compartilhado com a mãe de Reginaldo, companheira de Vanessa na cozinha e nas conversas do fim de tarde em uma mesa que foi colocada debaixo de uma árvore no quintal. Lá era o lugar preferido de Vanessa. Esses momentos, agora, restaram apenas na sua memória. “Eu evito entrar dentro da minha casa porque eu lembro do que eu tinha, como eu vivia, como eu era, da minha partilha com os meus vizinhos, acho que é um trauma mesmo”, contou.
No quintal eles plantavam cana, milho, tinham horta, criavam animais e mantinham uma represa com tilápias. “Hoje eu não consigo dormir direito preocupado, estou morando em uma casa que não é minha. O que eu tenho na roça hoje? Só problema e destruição”, indigna-se Reginaldo.
Depois que assinaram a ação popular que atrasou os interesses da Anglo, Vanessa e Reginaldo não conseguem mais arrumar emprego. Vivem com a bolsa do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos e com a ajuda dos familiares. Eles também passaram a receber ameaças. Além das motos rodeando a casa, eles receberam um bilhete anônimo com os dizeres:“Já sabemos. Foi você. É a próxima”.
Por causa desse episódio câmeras de vigilância foram instaladas pelo programa de proteção na porta da casa alugada pela empresa. “Eu moro na casa da Anglo e foram colocadas câmeras de vigilância para me proteger da Anglo”, observa Vanessa.
Apesar das ameaças de carros rondando sua casa à noite, Lúcio Pimenta não pode nem mesmo instalar as câmeras de vigilância. Ele mora em um galpão sem água e sem energia, isolado, em um pequeno terreno na Serra da Ferrugem. Lúcio só deixou o local onde vivia, na mesma comunidade, ano passado, numa ação de reintegração de posse, à força. “O juiz me deu 15 dias de prazo corrido para sair, mas eu não tinha para onde ir, aí eu não saí. Aí a polícia veio, dois oficiais de justiça. A polícia me tirou”, lembra.
O agricultor não aceitou o salário oferecido pelo programa de proteção aos Defensores de Direitos Humanos e sobrevive com a renda do programa federal Bolsa Família. Lúcio também usa o pequeno espaço de terra para cultivar milho, feijão, mandioca. Ele aproveita toda a água da chuva.
Além da terra onde morava, a mineradora também tirou parte do terreno que ele herdou do seu avô, local de onde guarda as memórias da infância e dos seus familiares. “Hoje a minha família está desintegrada. Acabou a família, acabou o vínculo. Não é porque os irmãos são inimigos, mas porque foram embora para longe. Você não tem mais o aconchego da família”, lamentou.
“Ficar apreensivo eu já fiquei, mas medo eu não tive não, nem tenho”
O agricultor morou por uns tempos em outras cidades e quando voltou para Conceição do Mato Dentro, seus parentes já estavam vendendo as terras. “Quando eu vi, muita destruição, acabando com as nascentes. Até então, eu não sabia que eu era um ambientalista voluntário e com o decorrer do tempo, o atropelamento com as famílias, que eu era um defensor dos direitos humanos também”, concluiu.
Lúcio contou que, desde então, começou a lutar para defender o direito das famílias, “o direito das pessoas”. “Aí foi uma guerra e está sendo até hoje”, observou. As ameaças, segundo ele, vieram desde o início da sua luta. “Seguranças da empresa rodeavam minha casa desde o começo, quando ainda não era Anglo”, lembra.
Depois que assinou a ação popular as visitas de carros e de motos rondando sua casa se intensificaram. “O que eles tentaram o tempo todo aqui foi me ameaçar. ‘Vão ameaçar ele, e ele vai correr.’ Se eles pensaram dessa maneira, eles deram com burro n’água. Ficar apreensivo eu já fiquei, mas medo eu não tive não, nem tenho”, disse.
O veterinário Lúcio Guerra chegou a temer pela sua vida e da sua família. Depois da suspensão da audiência pública ele passou a mudar seus horários para chegar em casa. Lúcio foi incluído em grupos de whatsapp onde sofreu ameaças, além de receber ligações oferecendo serviços funerários.
Assim como os outros defensores, ele diz que, antes mesmo de ser incluído no programa, ele e sua mulher já sofriam intimidações. “A gente sempre, de certa forma, foi perseguido. Já tiveram vários casos da gente daqui para Belo Horizonte ser perseguido por carro, eu daqui para a fazenda ser perseguido também por funcionário da mineradora”, contou.
Questionado se se arrepende de ter entrado nesta luta, devido às consequências, ele respondeu: “Faria tudo de novo e talvez faria até mais”.
Lúcio Guerra acompanha os impactos da mineração desde o início, com a chegada da empresa na cidade, em 2006. Sua família possui um terreno que é vizinho à mineração. Ele lembrou que, no início, a empresa chegou pressionando os moradores para comprar as terras. “Com a ampliação do empreendimento intensificou, aumentou e tem tendência de aumentar ainda mais os impactos contra as pessoas. A gente assiste a todo tipo de violação possível tanto por parte da empresa, como do Estado, que é conivente”, ressaltou.
“A gente assiste a todo tipo de violação possível tanto por parte da empresa, como do Estado, que é conivente”
Na avaliação do veterinário, o principal impacto que as comunidades sentiram com a instalação da mineradora foi a falta de água. “A gente ainda não tem nem ideia do que será no futuro, da contaminação da água, do lençol freático”, destacou. A poeira, o barulho, também prejudicaram as comunidades vizinhas ao empreendimento.
A mineração também mudou o jeito dos moradores da cidade. As pessoas, segundo ele, passaram “a desconfiar do ser humano”. “As pessoas aqui na região te recebem pela cozinha. Depois de ver os interesses por trás da mineradora, que era só uma fachada, as pessoas passaram a receber com restrição e, às vezes, a nem receber”, avaliou. No interior de Minas, é um hábito as pessoas oferecerem, pelo menos, um café um pedaço de queijo para os visitantes.
Para Lúcio Guerra a luta dos cinco defensores está servindo, principalmente, para tornar pública as irregularidades do empreendimento da Anglo American. “Agora, só é uma pena que não esteja servindo tanto para o Estado que ainda continua a apoiar o empreendimento dessa maneira”.