Antropólogo José Augusto Laranjeiras Sampaio denuncia os retrocessos da Política Indigenista no Brasil

28/06/2021

Fonte:https://www.brasil247.com/entrevistas/os-retrocessos-da-politica-indigenista-no-brasil?fbclid=IwAR2UHpOvtlGC2cp8yYcJ4w-5r8whgpu1uUX_Dc9gnQ4k7MLfM7h8OWndGNw

José Augusto Laranjeiras Sampaio, antropólogo, professor na Universidade do Estado da Bahia – Uneb e membro do Conselho Diretor da Associação Nacional de Ação Indigenista- Anaí conversou com exclusividade com a jornalista Claudia Correia sobre os retrocessos na Política Indigenista no país. O tema está na pauta do Supremo Tribunal Federal que julgará a matéria no próximo dia 30

(Foto: Arquivo Pessoal)

Claudia Correia – José Augusto Laranjeiras Sampaio, antropólogo, professor na Universidade do Estado da Bahia – Uneb e membro do Conselho Diretor da Associação Nacional de Ação Indigenista- Anaí. Guga, como é conhecido, tem engajamento no movimento indigenista desde a década de 1980 e uma produção acadêmica sobre a temática indígena reconhecida nacionalmente. Ele explica como a tese do marco temporal para a definição de critérios nos processos de demarcação de terras indígenas fere a Constituição Federal e chama atenção para os prejuízos frente aos avanços conquistados em 1988.

O Supremo Tribunal Federal agendou a nova data para o julgamento acerca dos critérios para a demarcação das terras indígenas. Qual é o entendimento jurídico e antropológico que está em jogo?

A importância do julgamento que será retomado no próximo dia trinta, julgamento do chamado dispositivo do “Marco Temporal”, é fundamental, não só para o futuro das Terras Indígenas, mas para que se garanta o correto entendimento da Constituição Federal, em seu artigo 231, que reconhece “aos índios (…) os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” Essas terras, tal qual definidas na Constituição, no parágrafo 1º desse artigo, não são as terras ocupadas pelos povos indígenas no passado, nem são as terras concretamente sob posse ou domínio efetivo dos povos indígenas no presente ou na data de promulgação da Constituição, como quer a dita tese do “marco temporal”. Ao contrário, como está bem definido no dito parágrafo, “são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.” Essas condições de “imprescindíveis” e de “necessárias” já indicam claramente que não se trata de direito a ser garantido pela mera verificação de posse ou domínio a qualquer tempo. Ou seja, a definição e a identificação de terras tradicionalmente ocupadas por índios não é identificação de base meramente temporal. Essas terras não estão definidas no passado nem no presente; estão definidas, em última análise, por sua condição de “necessárias a (…) reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”, de cada um dos grupos indígenas detentores desse direito, que são, aí sim, os grupos indígenas contemporâneos.

A propósito, o constituinte previu no artigo 67 do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Provisórias) um prazo de cinco anos, que se encerrou, portanto, em 1993, para que as terras tradicionalmente ocupadas por indígenas fossem devidamente regularizadas. Não foram. Mas esse foi o tempo definido para identificação de quais seriam essas terras “necessárias” aos índios, contemporâneos, claro, mas conforme a sua “ocupação tradicional” das mesmas.

A condição de “tradicionalmente ocupadas” dessas terras, remete, sim, ao passado, posto que diz do que seja exercido “tradicionalmente”, mas o exercício e a verificação dessa condição se dá no presente, ou seja, ela diz respeito ao modo como os índios vivem, no presente e em cada caso – no caso de cada grupo – os seus “usos, costumes e tradições”, que são o elemento diferencial para definição e caracterização das terras que lhe sejam “necessárias”, segundo esses mesmos “usos, costumes e tradições”.

A definição contida no parágrafo primeiro do artigo 231 não foi colocada aí por acaso. Ela visa justamente corrigir os muitos casos de usurpação e de esbulho territoriais sofridos pelos índios contemporaneamente presentes no Brasil. O dispositivo admite, pois, explicitamente, que as terras que os grupos indígenas atuais “tradicionalmente ocupam” não se confundem com as que estejam no presente sob seu efetivo domínio ou posse. Do contrário, não cuidaria de defini-las como sendo as “imprescindíveis” e “necessárias à sua reprodução física e cultural”; e não uma “reprodução física e cultural” qualquer, mas aquela que se possa dar “segundo seus usos, costumes e tradições.”

Outra indicação clara dessa intenção do constituinte é o disposto no parágrafo 6º do mesmo artigo, que diz serem “nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo”. Ou seja, está claramente posto que terras “tradicionalmente ocupadas” por índios, na forma da Constituição, possam não estar sob domínio efetivo dos mesmos, devendo, outrossim, lhes ser assegurado o direito a essas, inclusive, se necessário, pela admissão de nulidade de outros pretensos direitos que lhe sejam conflitantes.

Assim, ao definir como definiu o que sejam as “terras tradicionalmente ocupadas” por índios, o constituinte quis claramente reconhecer-lhes os direitos a essas, se necessário restituindo-lhes o domínio pleno de áreas que lhes tenham sido esbulhadas ou usurpadas, desde que possam ser essas áreas devidamente caracterizadas como “imprescindíveis” e “necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

Ademais, ao reconhecer os ditos direitos como “originários”, o constituinte deixou claro tratar-se de direitos que precedem a sua mera formalização na Carta Constitucional. Dito de modo bem direto, a Carta explicitamente “reconhece” esses direitos; não os outorga nem constitui!

Isto posto, resta claramente absurda a presunção, como quer a dita tese do “marco temporal”, de que os índios tenham direitos apenas sobre as terras sob seu efetivo domínio ou posse na data da promulgação da Constituição. Isso equivaleria à consagração dos esbulhos e usurpações havidos, e não a sua legítima reversão, ou seja, exatamente o oposto do tanto quanto reconhecido e assegurado pela Constituição!

Você se referiu à Constituição Federal como uma referência histórica para a definição dos direitos indígenas, o que foi efetivamente conquistado?

Quanto aos avanços e às conquistas dos povos indígenas no Brasil nestes 33 anos, desde a Constituição de 1988, vou identificar dois avanços, duas conquistas que me parecem as mais importantes. Em primeiro lugar, o próprio reconhecimento da condição de indígenas como de participantes da permanente condição de diversidade cultural do país. Até a Constituição de 1988, o Brasil não se pensava como um país pluricultural, não se pensava como um país pluriétnico e a condição de indígenas era tida, percebida, tanto pelas políticas públicas quanto na própria legislação, como uma condição transitória. Os indígenas eram reconhecidos como indígenas apenas no sentido de que deixariam de sê-lo. O próprio Estatuto do Índio, que é uma lei de 1973 – portanto de quinze anos antes da Constituição – previa que os índios seriam “emancipados”, o que equivalia dizer, conforme a legislação da época que concebia os índios como “tutelados” pelo estado, que os índios seriam destituídos da sua condição de indígenas e confundidos, dissolvidos na massa da população. A Constituição de 1988 extingue essa postulação de transitoriedade da condição de indígena, reconhecendo os indígenas como parcela constituinte e permanente da sociedade brasileira, com direito a “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”, conforme posto no artigo 231 da Constituição.

Isso, combinado com o disposto no artigo 232, que dispõe que “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses”, extinguiu o dispositivo da tutela a que os indígenas eram até então submetidos, por serem considerados apenas “relativamente capazes”, nos termos do Código Civil de 1914, então ainda vigente. A tutela do Estado, mais que um dispositivo para cuidar de sua “proteção” e dos seus interesses e direitos, era exercida muito mais para tolher a sua liberdade. Então, ao se desautorizar desse tipo de tutela, o Estado passa a reconhecer os índios como cidadãos de pleno direito, mas como cidadãos plenos numa perspectiva de diversidade cultural, dentro de um país que também se reconhece como culturalmente diverso. A partir daí se torna finalmente possível a construção, quase quinhentos anos após a invasão, de uma cidadania indígena; uma cidadania indígena plena mas específica, diferenciada. Essa é uma grande conquista que vai repercutir na construção de políticas públicas também específicas e diferenciadas nas áreas de Educação, Saúde, proteção aos direitos da mulher e outras, que garantem cidadania plena enquanto cidadania indígena específica.

A segunda grande conquista é o próprio modo como está definido o direito dos índios às “terras que tradicionalmente ocupam”. O reconhecimento desse direito não se inaugura na Constituição de 1988, mas com ela se passou a ter critérios claros, seguros e tecnicamente bem definidos para a identificação e demarcação das Terras Indígenas. Se as Terras Indígenas sempre foram, de algum modo, reconhecidas pelo Estado brasileiro, em especial, no período republicano, a partir já da Constituição de 1934, nunca dantes houve definição tão clara e tão pragmática no sentido de possibilitar a demarcação correta e segura desses territórios. A Constituição de 1988, sobretudo no parágrafo primeiro do artigo 231, define com clareza o que sejam as “terras tradicionalmente ocupadas” pelos índios, de modo a melhor assegurar a sua garantia e a sua devida regularização fundiária, como vinha sendo feito desde a década de 1990 até o início da década passada; um processo que precisa ser retomado para que a Constituição seja de fato respeitada.

Após tantos anos de luta e resistência, com o fortalecimento do movimento indígena, como você avalia a ofensiva contra os direitos indígenas e a flexibilização no controle do desmatamento na Amazônia?

Nos últimos anos, em especial no atual Governo Federal, diria que são retrocessos de duas ordens. Por um lado, um retrocesso no plano jurídico-legal que, felizmente, ainda não se consumou; mas há ameaças grandes nesse sentido, como a instituição da tal “tese do Marco Temporal” ou o Projeto de Lei 490, que foi aprovado semana passada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados; e, por outro lado, os retrocessos que já acontecem muito claramente com o completo sucateamento dos aparelhos institucionais de proteção dos direitos indígenas e de suas Terras, o que já permite claramente que elas estejam sendo invadidas e dilapidadas muito flagrantemente, como no caso dos garimpos nas Terras dos Yanomami e dos Munduruku, na Amazônia, ou como no caso, aqui na Bahia, das invasões de imobiliárias, de empreendimentos turísticos nas Terras Indígenas ao longo do litoral, como na dos Tupinambá em Ilhéus ou nas dos Pataxó em Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália. Não bastasse a paralização dos processos de demarcação, mesmo as Terras já demarcadas e garantidas estão sendo invadidas por estarem absolutamente desprotegidas; e desprotegidas de modo deliberado, como bem o demonstram não só ações mas também discursos de representantes do próprio estado, que estimulam e promovem essas invasões e dilapidações do ambiente e dos recursos naturais dessas Terras, conforme indicam os comprovados índices de desmatamento, os ataques armados a indígenas promovidos pelos garimpos ilegais etc. É como se, diante de uma possível maior dificuldade em se reverter os direitos conquistados pelos indígenas no plano jurídico-legal, simplesmente se investe no descumprimento da Lei, se remove os aparatos institucionais de proteção pelo Estado para que a iniciativa privada, principalmente a iniciativa privada criminosa possa invadir essas Terras, que é o que está acontecendo agora mesmo, e este é, no momento, o maior retrocesso.

Inscreva-se no canal de cortes da TV 247 e assista:

 

 

Print Friendly, PDF & Email