22/05/2020
A região da Serra do Rola Moça, que separa as águas dos vales do rio das Velhas e do rio Paraopeba, possui uma importante categoria de Comunidade Tradicional: os agricultores familiares – fruto da riqueza histórica, do árduo trabalho e da complexidade cultural excepcional de seus habitantes. Antes da chegada dos invasores europeus no final do século XVII no vale do Paraopeba, já existia há milênios uma população nativa que vivia da caça, da pesca, do extrativismo vegetal e mais recentemente, também, de práticas agrícolas (BAETA&PILÓ, 2015).
Os pequenos povoados que se formaram há mais 300 anos nos territórios que compõe esta região são remanescentes das expedições de Fernão Dias Paes e de Borba Gato e suas inúmeras ramificações, sendo que as mesmas sustentavam-se a partir do tripé: procura de riquezas minerais, anexação de terras e preagem de índios visando a sua escravização. Piedade do Paraopeba serviu de pouso para essas bandeiras mercenárias, que depois desceram o rio Paraopeba, atingindo o Vale do São Francisco. São José do Paraopeba, Brumado do Paraopeba e Aranha, que hoje pertencem ao município de Brumadinho, tornaram-se pequenos arraiais e pontos de abastecimento de caminhantes. O transporte e guarnição de víveres para Vila Rica (Ouro Preto) e Vila do Carmo (Mariana) eram realizados inicialmente por tropas de mula que seguiam por estreitas estradas escoradas por empilhamentos de pedras, cortando as serras, dentre elas, as serras da Calçada e do Rola Moça (TÚLIO, 2015; BAETA& PILÓ, 2019). Por sua vez, as terras que constituíram a fazenda Santa Rosa Cachoeira e Vargem do Pantana foram originariamente territórios de produção agrícola e de criação de gado e, atualmente, correspondem a porções dos domínios dos municípios de Sarzedo e de Ibirité, situados no sopé da Serra do Rola Moça, onde há inúmeros mananciais de água (SENA, 1909), dentre eles, Capão da Serra, Taboões, Bálsamo e Rola Moça, alguns, que se tornaram fontes de captação de abastecimento público.
O vale do rio Paraopeba possuía, assim, núcleos mineradores periféricos à Ouro Preto, Mariana e Sabará, sendo um caminho alternativo de acesso às minas de ouro, onde ocorriam atividades associadas de tropeirismo, comércio ambulante e de caixeiros viajantes, estimulados devido à produção contínua e suprimento de gêneros alimentícios, tais como, milho, arroz, feijão, mandioca, toucinho, leite, queijo, aguardente, farinhas, hortaliças e frutas em suas glebas, o que viabilizava a atividade mineradora e administrativa na capitania, e posteriormente, na fase imperial. Foi por meio de uma política de abdução e concessão de terras pela metrópole, na forma de sesmarias e/ou de datas minerais, que as atividades econômicas coloniais iniciais foram ali implementadas. Algumas propriedades rurais instalaram benfeitorias agregadas de produção, tais como, engenhos de pilão, casas de vivenda, paiol, chiqueiros, juntas de boi, rodas de mandioca, prensas, engenhos, teares, rodas de fiar, regos e pilões de água, monjolos, fornos de torrar farinha, estrebarias, criatório de gado, muros, currais de pedra e caminhos anexos (TÚLIO, 2015; SENA, 1909).
Pouca luz se deu à geopolítica estratégica da região da Serra do Rola Moça e aos produtores braçais dos gêneros alimentícios ao longo da história mineira, baseada no sistema escravista, ou melhor, no trabalho compulsório da mão-de-obra indígena e africana, e posteriormente, na agricultura familiar tradicional camponesa. Isso favoreceu a reorganização administrativa de Minas Gerais nas serranias vizinhas denominadas “Serro das Congonhas” (BARBOSA, 1985: 27), conhecida atualmente como Serra do Curral, onde se implantou no final do século XIX a nova capital de Minas Gerais, Belo Horizonte. O nome da serra, segundo Barreto (1996) se deve à existência de cercado ou curral existente na localidade, que fazia parte deste grande sistema de abastecimento e de circulação regional.
A Serra do Rola Moça e alhures continuam, apesar da degradação e da espoliação histórica e contínua de suas riquezas naturais e minerais, com a mesma função de provedora de alimentos, como também de fornecedora de água para os principais centros populacionais, agora via porção norte, se tornando parte do “cinturão verde” e da “caixa d´água” da região metropolitana de Belo Horizonte, que sede constituiu e se expandiu a partir do início do século passado.
Os agricultores familiares e lavradores dessa região são os protagonistas da produção de alimentos, como exposto, munidos de direitos específicos em função de serem Comunidades Históricas e Tradicionais – grupos sociais culturalmente diferenciados, com formas próprias de organização socioeconômica e de produção, bem como de transmissão de conhecimentos, possuindo dimensão territorial específica, com fortes laços de pertencimento e identificação com o lugar que vivem ou transitam (DIEGUES, 2004; COSTA FILHO et al., 2015). Logo, reproduzem historicamente o seu modo de vida, de forma isolada ou diferenciada, com base na sua campesinidade, no seu modo de vida familiar e na sua organização social, estabelecendo relações espaciais e intrínsecas com a natureza e com o seu manejo (DIEGUES & ARRUDA, 2001; ALMEIDA, 2004). Neste contexto, água é concebida como recurso comum de uma coletividade circunscrita, sujeita a códigos específicos de apropriação e uso. Em contraposição, vem sendo tratada como mercadoria, o que vem exigindo novas reflexões e bandeiras de luta a respeito da proteção, regulação, partilha e normas de acesso aos recursos hídricos – bem comum e direito de todos.
Mas com o aumento dos conflitos fundiários e territoriais, ampliação do agronegócio e da mineração e suas barragens, da monocultura do eucalipto (‘deserto verde’), da construção de hidrelétricas, empreendimentos imobiliários e industriais, aberturas de estradas, expansão urbana e escassez hídrica, esses Agricultores Familiares, apesar das grandes dificuldades que sofrem em sua longa história de resistência, vêm se organizando na luta pelos seus direitos e novas conquistas por meio de associações comunitárias, cooperativas e federações.
As absurdas instalações e a expansão de mineradoras na região da Serra do Rola Moça vêm mais uma vez ameaçar o abastecimento de água e a produção de alimentos na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), sendo que os órgãos ambientais nas esferas municipal, estadual e federal apresentam-se coniventes com essa política de morte e de extermínio da Mãe-Terra e dos seres vivos que a habita. Para piorar este quadro estarrecedor de Injustiça Socioambiental, o atual prefeito municipal de Ibirité, com a anuência da maioria dos vereadores da Câmara Municipal, vetou[2] um projeto de lei[3], elaborado de forma participativa junto à Câmara Municipal, inicialmente com a aprovação unânime de todos os vereadores, que propunha elevar a “Patrimônio Hídrico e da Biodiversidade” esta localidade, que se situa rente ao manancial do Taboões, que abastece Ibirité, parte de Belo Horizonte e parte da RMBH.
É inconcebível, portanto, a reinstalação de uma mineradora, no caso a mineradora Santa Paulina, onde, inclusive, já existe grandes crateras profundas em plena zona de amortecimento do Parque Estadual Serra do Rola Moça (PESRM), terceira maior unidade de conservação em área urbana do país. Este local degradado já deveria ter sido, aliás, objeto de um plano de recuperação ambiental anos atrás, como almejado pelos moradores e ambientalistas, visando a harmonização com a biodiversidade local.
Para piorar este quadro, já há um histórico de claros sinais de crise hídrica na RMBH e em vários bairros de Ibirité, como pode ser constatado em inúmeros noticiários e denúncias de moradores – fora as tantas localidades que ainda necessitam de obras de infraestrutura e de saneamento básico em um município já tão depauperado.
Não cabe mineração em localidade destinada a abastecimento de água e de conservação ambiental remanescente, utilizada também para a produção agrícola, pois os aquíferos subterrâneos precisam ser preservados, ainda mais em solos com grande histórico de degradação ambiental. Sobraram poucas localidades com fontes de água, pois muitas delas já foram assoreadas e/ou contaminadas no passado. Cabe lembrar que a barragem de rejeito da mina Córrego do Feijão que se rompeu em 25 de janeiro de 2019, epicentro da grande catástrofe e crime socioambiental do país que assolou o vale do rio Paraopeba, situa-se na vertente oposta da Serra do Rola Moça, no município vizinho Brumadinho. Sem água as centenas de famílias de Agricultores Familiares da região – Povo Tradicional, friso – não poderão trabalhar e produzir alimentos saudáveis na terra, e consequentemente haverá comprometimento e exiguidade alimentar na região. Ainda importante lembrar que se por ventura outros rompimentos de barragens consideradas instáveis que se encontram na RMBH ocorrerem, o manancial Taboões torna-se importante reserva hídrica e alternativa de provimento de água e de sobrevivência para a população atingida e demais moradores. Com a morte do rio Paraopeba, o que ocasionou o fechamento da captação de água que a COPASA tinha inaugurado em 2015 e que representava 50% da captação de água de Belo Horizonte e Região Metropolitana, tornou-se mais necessário ainda preservar integralmente o Manancial Taboões e os outros existentes na Serra do Rola Moça.
Segundo Bruno Freitas, agricultor familiar na Serra do Rola Moça, a mineração em Ibirité só agravará os graves problemas socioambientais na região, já instalados nos municípios vizinhos Sarzedo e Brumadinho.
“Moro nas margens onde estão querendo implantar esta maldita mineração (Santa Paulina). Estamos juntos nessa luta para livrar Ibirité da mineração. Este não é um drama só de Ibirité e de Sarzedo, é um drama de todos nós. O grande desafio é barrar as mineradoras. Ibirité não suporta uma mineração. Tantos problemas que já temos aqui sem mineração. Ibirité quer também doenças respiratórias, transporte de minério, terminal de carga de minério e mais poluição do ar e sonora, como ocorre em Sarzedo e em Brumadinho? Muito triste, pois a vida não vale nada. Minha família, que tem raízes antigas na região, tem plantação ao pé de uma barragem de mineração, em Sarzedo. Cadê Sarzedo rico? Estamos no pior cenário ambiental possível em Minas Gerais. Mineração não trouxe riqueza. Só lucro para os seus donos, mas não para o povo”.[4]
Os Agricultores Familiares se encontram em situação de precariedade ambiental na Serra do Rola Moça. Por isso, reitera-se que as normas patrimoniais e ambientais internacionais[5] e nacionais[6] sejam devidamente respeitadas e cumpridas pelo Poder Público. Os direitos dos agricultores estão associados à manutenção do meio ambiente ecologicamente sustentável, previsto no artigo 225 da Constituição Federal de 1988, na medida em que é fundamental para o exercício de sua atividade a preservação da biodiversidade, da água, do solo e do ar.
Em síntese, os Agricultores Familiares têm direito à terra e ao reconhecimento dos territórios tradicionalmente ocupados; livre acesso ao uso dos bens da natureza, como a água e os demais componentes da biodiversidade; preservação das tradições culturais, incluindo o reconhecimento e a proteção do conhecimento tradicional e das formas de ser e fazer; o direito de participar das decisões da administração sobre marcos legais e políticas públicas agrícolas, agrárias e ambientais; o direito à liberdade de associação; o direito de reconhecimento do valor ecológico e sustentável da produção de alimentos, sementes e produtos extrativistas; o direito à não contaminação por transgênicos e agrotóxicos, entre muitas outras conquistas (PACKER, 2012).
Inaceitável e na contramão dos direitos pautados, acima, é a situação do Brasil com relação ao uso de agrotóxicos. Os pesticidas usados na agricultura do agronegócio para conter pragas nas plantações, muitos deles proibidos na Europa e nos Estados Unidos, por estarem causando câncer e doenças genéticas, vêm sendo aqui utilizados indiscriminadamente, de forma permissiva, crescente e criminosa, sendo ainda patrocinados pela bancada ruralista no Congresso Nacional e pelo atual governo federal por meio de um nefasto projeto necropolítico.
Nesta esteira, é fundamental garantir a promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional de toda a população incentivando as atividades da agricultura familiar, da agroecologia, recuperação de nascentes e a produção de alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, de forma compatível com outras necessidades essenciais, segundo o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, barrando assim o crescimento das políticas agrícolas degradantes voltadas para o monocultivo e para o agronegócio, que transformam os alimentos em commodities e desterritorializam o campesinato, agricultores familiares e outros povos tradicionais.
Esta é uma grande expectativa da sociedade organizada no âmbito dos direitos humanos e ambiental, pois os índices de violência social, pobreza e de fome da população brasileira vêm aumentando, o que é extremamente preocupante e alarmante.
Por isto, imprescindível compreender as relações socioambientais das Comunidades Tradicionais voltadas à agricultura familiar que podem garantir a soberania e a segurança alimentar, seus eixos de luta e suas conectividades históricas no atual contexto de forte ameaça de escassez hídrica e de epidemias, além de suas lutas contra a mudança climática e os mercados agroquímicos, em defesa da biodiversidade. É preciso respeitar e valorizar o imenso repertório cultural dessas Comunidades Tradicionais associadas às praticas agrícolas, alimentares em diversos ambientes – terreiro, horta, roça, quintal e demais territórios culturais, muitos deles, já confrontantes com zonas urbanas, como ocorre em Ibirité.
A invisibilidade das comunidades tradicionais de Agricultores Familiares e o não reconhecimento da sua legitimidade por muitos ainda promovem um distanciamento abismal entre as pessoas, impedindo a construção de um mundo justo, sustentável ecologicamente e inclusivo socialmente; que respeite as diferenças, as demandas específicas, as distintas histórias e as visões particulares de mundo.
A diversidade e a complexidade das Comunidades de Agricultores Familiares e de camponeses na Serra do Rola Moça são enormes tanto quanto a sua secular resistência cultural, frente a todas as adversidades e ameaças ambientais e territoriais que têm sofrido.
Enfim, Agricultores Familiares na Serra do Rola Moça, sim; mineração, jamais!
Referências:
ALMEIDA, A. W. B. Terras Tradicionalmente ocupadas: processos de territorialização e movimentos sociais. R. B. Estudos Urbanos e Regionais, 6 ( 1) : 9-32, Maio, São Paulo, 2004.
BAETA, A. & PILÓ, H. Os Povos Ceramistas pré-coloniais na região do Ouro, Vale do Paraopeba. In: Carta Arqueológica de Congonhas (Orgs. BAETA, A. & PILÓ, H.) pp. 24-53, Belo Horizonte: Ed. Orange, 2015.
BAETA, A. & PILÓ, H. Territórios, Campos Sagrados e Resistência Cultural nas Festas de Reinado em Ibirité-RMBH, Outubro de 2019. Disponível em: https://www.cedefes.org.br/wp-content/uploads/2019/10/Artigo-Congado-Ibirit%C3%A9.pdf
BARRETO, Abílio. Memória Histórica e Descritiva. Coleção Mineiriana, Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte, 1996.
COSTA FILHO, A. et. al. Mapeamento dos povos e comunidades tradicionais de Minas Gerais: visibilização e inclusão sociopolítica. In: Interfaces- Revista de Extensão, 3 (1) : 69-88, jul/dez, Belo Horizonte, 2015.
DIEGUES, A. C. As populações tradicionais: conceitos e ambiguidades. In: O Mito Moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 2004.
PACKER, Larissa A. Biodiversidade como bem comum: Direitos dos Agricultores, Agricultoras, Povos e Comunidades Tradicionais. Curitiba: Terra de Direitos, 2012.
SENA, Nelson Coelho de. Annuário histórico e Chrorográfico de Minas Gerais. Ano III. Vol.2., Belo Horizonte, 1909.
TÚLIO, Paula R. A. Vale do Paraopeba: o (des)caminho do Ouro – Minas Gerais Século XVIII. In: SERRA DA MOEDA: Patrimônio e Memória (Orgs. BAETA, A. & PILÓ, H.) pp. 66-89, Belo Horizonte : Orange Editorial, 2015.
[1] Doutora em Arqueologia pelo MAE/USP; Pós-Doutorado em Antropologia e Arqueologia-FAFICH/UFMG; Mestre em Educação pela FAE/UFMG; Historiadora e Membro da ONG CEDEFES (Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva) e do Movimento Serra Sempre Viva.
[2] Confira Análise Jurídica imparcial que demonstra a inconsistência jurídica do veto do prefeito de Ibirité, MG. http://www.cptmg.org.br/portal/veto-do-prefeito-de-ibirite-mg-nao-tem-fundamento-a-camara-de-vereadores-precisa-derrubar-o-veto-diz-analise-juridica/
[3] PL 058/2019. Para maiores informações cf. a live do Movimento Serra SempreViva por meio do link: https://www.facebook.com/serrasemprevivamg/videos/2662583524018681/
[5] Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho-OIT de 1989, ratificada no Brasil em 2004; Convenção sobre a Diversidade Biológica ou da Biodiversidade – CDB/ONU de 1992; CARTA DA TERRA/ONU em 2000; Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e Agricultura (TIRFAA), ratificado no Brasil em 2002; Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial adotada em Paris/UNESCO de 2006; Declaração sobre Direitos de Camponeses e Camponesas-Via Campesina/ONU, 2018.
[6] Lei da Agricultura Familiar (Lei 11326/2006); Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais-PNPCT de 2007;