02/08/2024
Embora cabível na jurisdição constitucional em algumas hipóteses, a conciliação é francamente inadmissível em outras: a proteção de direitos fundamentais de minorias sociais e políticas não pode ser objeto de negociação ou transação
O artigo destaca a inadmissibilidade de conciliação em temas constitucionais como direitos indígenas e terras. A proteção desses direitos é vital, não sujeita a negociações. O STF enfrenta desafios com audiências de conciliação, devendo respeitar a vontade dos povos indígenas. O consentimento é essencial em processos que impactam minorias sociais. A defesa desses direitos é fundamental para a corte constitucional, afirmando sua importância na proteção dos mais vulneráveis.
O imbróglio sobre terras indígenas no STF
Está programada para a próxima segunda-feira, dia 5 de agosto, a primeira “audiência de conciliação” no Supremo Tribunal Federal (STF) para tratar de temas por definição inegociáveis: o regime constitucional de proteção das terras indígenas — o que inclui o chamado “marco temporal” — e a mineração nessas áreas. Os povos indígenas e seus aliados se mobilizaram, protestaram, recorreram, mas até aqui em vão: a audiência, designada por decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes, está mantida, com todos os riscos dela decorrentes, para os indígenas e para todos nós — já que a garantia dos territórios dos povos originários é essencial para a proteção do meio ambiente e das florestas, questão essencial para a Humanidade, especialmente no contexto de emergência climática, que ameaça o nosso futuro no planeta.
O pano de fundo é conhecido: em setembro de 2022, o STF encerrou longo julgamento refutando a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas, segundo a qual os povos originários só teriam direito às áreas que estivessem ocupando em outubro de 1988, quando a Constituição foi promulgada. O STF reconheceu que essa tese, que impede a garantia de direitos de indígenas injustamente expulsos de suas terras antes da constituinte, é completamente incompatível com a Constituição, mas adotou posição conciliatória, estabelecendo que, quando não comprovada a posse indígena em 1988 nos territórios ancestrais, caberia o pagamento de indenização prévia ao proprietário afetado pela demarcação, incluindo o valor da própria área demarcada.
O Congresso Nacional, porém, reagiu afrontosamente contra a decisão do Supremo, aprovando, no mesmo dia da finalização do julgamento, uma lei dispondo em sentido diametralmente contrário: a Lei 14.701/2023, que não apenas reintroduziu a exigência do marco temporal, como também estabeleceu várias outras graves restrições e exigências burocráticas nas demarcações, inviabilizando-as na prática, e gerando grave insegurança jurídica em relação às áreas já demarcadas, com estímulo a contestações judiciais e a invasões. Os pontos mais graves da lei foram vetados pelo presidente da República, mas o Congresso, a reboque da poderosa bancada ruralista, derrubou a maior parte dos vetos.
A lei foi questionada no Supremo pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e por diversos partidos do campo progressista. Do outro lado, partidos de direita também ajuizaram ações na Suprema Corte postulando a declaração da validade da norma. Diante da recentíssima decisão do STF, esperava-se que a Lei 14.701 fosse imediatamente suspensa e invalidada pelo Supremo, o que, porém, não ocorreu. O ministro Gilmar Mendes, relator dos processos, resolveu, ao contrário, instaurar uma conciliação sobre a matéria, mantendo a norma em vigor. E decidiu incluir na negociação outro tema extremamente delicado, que tem também gravíssimos impactos sociais e sobre o meio ambiente: a mineração em terras indígenas — atualmente proibida —, matéria discutida em outra ação que tramita na Corte, em que se debate a suposta omissão do Congresso na edição de lei complementar para disciplina da matéria.
Já tratei do assunto em outra coluna, mas a gravidade do momento justifica o retorno ao tema, para examinar mais detidamente um dos seus aspectos centrais: o limite para os acordos no processo constitucional, que estão se convertendo em novo modismo no STF. Em seguida, analisarei dois desses limites, que parecem bastante óbvios, mas que estão sendo até aqui ignorados neste caso: (a) não é possível negociar sobre o que, por definição constitucional, é inegociável; e (b) não se pode fazer conciliação sobre direitos contra a vontade do seu titular, pois qualquer acordo pressupõe a concordância das partes afetadas.
Não cabe conciliação constitucional sobre direitos fundamentais dos povos indígenas
Em geral, acordos que evitam ou põem fim a litígios são medidas positivas, porque tendem a gerar pacificação social, ao mesmo tempo em que reduzem a sobrecarga do Poder Judiciário, sempre assoberbado pelo número excessivo de processos, que compromete a celeridade e a qualidade da prestação jurisdicional. Por isso, o direito brasileiro estimula a adoção de mecanismos de solução consensual de litígios, como a mediação e a conciliação, tal como se vê no Código de Processo Civil (artigos 3º, §§ 2º e 3º) e na Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça.
Essa tendência concretiza no Brasil a ideia de “Justiça Multiportas”. A expressão faz referência a uma conferência seminal proferida em 1976 pelo professor estadunidense Frank Sander, que defendeu que os tribunais deveriam instituir canais para estimular a opção, pelas partes, por mecanismos alternativos para resolução de disputas, tais como a mediação, a conciliação e a arbitragem. Isso porque, cada um desses métodos tende a ser mais adequado para determinado caso, dependendo de características do conflito, como a natureza dos direitos envolvidos, o tipo de relação existente entre as partes, a dimensão econômica do litígio e o tempo e o custo envolvidos para sua resolução. No modelo da justiça multiportas, existiria no tribunal uma espécie de “saguão”, a partir do qual as partes seriam encaminhadas para a porta mais adequada ao equacionamento do seu litígio, diante das respectivas especificidades.
Discute-se o cabimento de medidas dessa natureza no âmbito do controle de constitucionalidade de leis e atos normativos. Há quem sustente que, diante da supremacia e da imperatividade da Constituição, não haveria qualquer espaço para mecanismos de autocomposição de litígios. Pelo argumento, quando se alega a inconstitucionalidade de uma norma ou ato estatal, caberia ao STF apenas decidir, protegendo a Constituição diante de possíveis violações perpetradas pelos poderes constituídos, sem qualquer espaço para acordos e transações.
Penso que a questão não é tão simples, e que pode existir algum espaço para acordos mesmo no âmbito da jurisdição constitucional. Em conflitos entre entes federativos sobre questões econômicas e financeiras, por exemplo, não me parece impróprio que o Tribunal atue buscando a construção de solução que, sem se afastar da moldura constitucional pertinente, promova a harmonização possível entre os atores envolvidos.
Foi o que fez o STF no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 25, em que se discutiu a omissão do Congresso Nacional em elaborar lei complementar, prevista na Constituição, que regulamentasse o pagamento de uma compensação devida aos estados pela perda de arrecadação decorrente de desoneração tributária de exportações de produtos primários e semielaborados. Inicialmente, a decisão do STF fixara prazo para o Congresso elaborar a lei, estabelecendo que, se a inércia persistisse, os critérios para compensação deveriam ser definidos pelo Tribunal de Contas da União. Findo o prazo concedido ao Congresso, o STF decidiu abrir espaço para viabilização de acordo entre as partes interessados — estados e União —, que mediou com sucesso. O acordo foi firmado, e uma lei complementar foi apresentada e aprovada no Congresso Nacional, com base no que fora ajustado no âmbito do processo constitucional.
Também pode haver algum tipo de conciliação nas chamadas ações estruturais que tramitam no STF. Trata-se de processos relativos a temas extremamente complexos, ligados à reforma de políticas públicas e de estruturas estatais, em decorrência da sua incompatibilidade com direitos fundamentais. Nessas ações, o STF não se limita a invalidar normas jurídicas contrárias à Constituição. A Corte busca equacionar situações gravíssimas, recorrendo, via de regra, a soluções dialógicas, em que demanda dos entes públicos envolvidos a elaboração de planos de ação para enfrentamento do problema constitucional analisado. Após a elaboração, debate e homologação do plano, ele passa a ser monitorado pelo próprio STF, para não se converter em promessa vazia.
Artigo: Lawfare e liberdade de imprensa
São casos como o das arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs) 347, 635 e 709 — em que atuo como advogado, em caráter pro bono — que tratam, respectivamente, da situação calamitosa dos presídios brasileiros, da letalidade excessiva da atuação policial no Estado do Rio de Janeiro, e das gravíssimas falhas do governo federal no combate à pandemia em relação aos povos indígenas. Em processos constitucionais dessa natureza, não existe espaço para transação sobre o conteúdo do próprio direito fundamental, mas é legítimo que haja negociações e eventuais conciliações sobre aspectos como a ordem de execução das medidas, o cronograma de implementação etc.
De todo modo, as ações sobre terras indígenas submetidas à conciliação não configuram processos estruturais. Os pedidos nelas formulados são singelos, de controle de constitucionalidade de norma e de reconhecimento de suposta inconstitucionalidade por omissão — no caso da mineração. Eles não envolvem reestruturação de políticas públicas. E seria inédito no direito comparado e internacional instaurar um litígio estrutural não para promover e garantir direitos fundamentais, mas para esvaziá-los.
Embora cabível na jurisdição constitucional em algumas hipóteses, a conciliação é francamente inadmissível em outras. Afinal, nem tudo é negociável no direito. Acima de tudo, a proteção de direitos fundamentais de minorias sociais e políticas não pode ser objeto de negociação ou transação. É da essência da democracia constitucional — ou democracia liberal, como preferem alguns — que os direitos de minorias não dependam da vontade das maiorias.
Aliás, a principal justificativa político-filosófica para a própria existência de tribunais constitucionais poderosos, composto por pessoas não eleitas pelo povo, como o STF, é precisamente esta: por não depender do voto, a Corte tem condições de atuar de forma contramajoritária, contrariando a vontade dos órgãos políticos representativos quando isso seja necessário para a garantia de direitos básicos de segmentos sociais impopulares ou em situação em vulnerabilidade. Para retirar tais direitos do alcance das maiorias e de grupos poderosos, a Constituição os assegura e atribui ao tribunal o dever de protegê-los quando ameaçados.
Para usar a terminologia da Justiça Multiportas, que inspira as mediações e conciliações, a “porta” adequada para defesa de direitos de minorias sociais diante das maiorias políticas e grupos hegemônicos não é a que se abre para negociações e transações. É a porta da defesa de princípios e de direitos humanos, e não a que se escancara para a costura de acordos políticos.
Por isso, o STF não poderia jamais instaurar uma negociação no Congresso para que se decidisse politicamente, por exemplo, se pessoas do mesmo sexo podem se casar; se adeptos de religiões afrobrasileiras podem professar livremente a sua fé; se a polícia pode matar ou torturar suspeitos pobres e negros. Infelizmente, existem setores da sociedade e do Congresso contrários aos direitos fundamentais envolvidos em tais casos, mas isso não os torna passíveis de negociação. O papel institucional do STF em questões dessa natureza não é mediar transações, mas garantir direitos.
É exatamente o que ocorre com o direito dos indígenas às suas terras, como afirmou claramente o texto constitucional, ao proclamar que as terras indígenas “são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas imprescritíveis” (artigo 226, § 4º). Esse caráter inegociável se liga à centralidade das terras para os povos originários. Para os indígenas, a terra não é um bem econômico, mas o espaço vital, com o qual mantêm relação de natureza profunda e espiritual. É em suas terras que os indígenas têm condições reais de viver comunitariamente de acordo com a sua cultura e as suas tradições, preservando a sua identidade étnica. E a garantia dessas terras é também fundamental para a proteção do meio ambiente, pois as cosmovisões indígenas envolvem uma relação profundamente harmoniosa com a natureza.
Em resumo, não há conciliação possível quando em jogo o regime constitucional das terras indígenas. O STF deve ter a coragem necessária para se opor a tentativas de destruição dos direitos indígenas e do meio ambiente, ainda que patrocinadas por forças políticas e econômicas poderosas. É para isso que existe uma corte constitucional.
Não pode haver conciliação contra a vontade do titular do direito
A conciliação, por definição, constitui instrumento de “solução consensual de conflitos”. Por isso, a vontade das partes em conflito é essencial para a instauração da conciliação, e, depois, para a validação do seu resultado, que depende do consenso em relação à solução delineada.
Isso significa que o STF não pode instaurar conciliação de direitos contra vontade dos povos indígenas. Menos ainda, adotar suposta “solução consensual” que não conte com o seu efetivo consentimento.
No passado, os indígenas eram tratados no Brasil como incapazes de decidir seus próprios rumos e de fazer as suas escolhas, seja no âmbito individual, seja no coletivo. Até a promulgação da Constituição de 88, prevalecia na legislação brasileira uma visão paternalista e estigmatizante, que tratava os indígenas como “crianças grandes”, que deveriam ser tuteladas pelo Estado. Os seus direitos eram protegidos até que fossem absorvidos pela sociedade, “incorporando-se à comunhão nacional”, “civilizando-se”: aí deixavam de ser “índios de verdade” e se tornavam plenamente capazes. A Constituição rompeu com esse modelo colonial e racista e, além de proteger os direitos dos indígenas às suas terras e à sua cultura, empoderou essas populações, reconhecendo a sua prerrogativa de defender diretamente os seus próprios direitos, sem a necessidade de intermediação de qualquer instituição governamental.
Nesse contexto, não é possível cogitar de conciliação sobre direitos indígenas sem o seu consentimento. O desacordo dos indígenas com o procedimento e com a eventual solução aventada não pode jamais ser suprido pela vontade de instituições do Estado — inclusive a do governo federal.
Esse ponto é fundamental. Em primeiro lugar, porque os indígenas, por meio da Apib — entidade nacional que os representa, como já decidiu o STF —, manifestaram-se contrariamente à instauração da conciliação sobre os seus direitos, expressando a sua convicção de que, ao invés de abrir negociação sobre os seus direitos, o STF deveria protegê-los, exercendo o controle de constitucionalidade sobre a Lei 14.701. Foram ignorados. Agora, veem-se em situação verdadeiramente kafkiana. Se não participam desse processo de “conciliação obrigatória” — verdadeiro oxímoro —, expõem-se ao risco de serem ainda mais prejudicados por decisão lesiva aos seus direitos. Se participam, sua presença pode ser invocada para legitimar um procedimento gravemente viciado.
Em segundo lugar, não há clareza sobre a necessidade do seu consentimento para a adoção da suposta “solução consensual”. Esse paradoxo decorre da composição da comissão especial de conciliação definida pelo STF, em que há amplo predomínio de órgãos estatais, e participação muito minoritária dos representantes indígenas. Decorre também dos termos das decisões proferidas pelo ministro Gilmar Mendes, que caracterizaram o caso como um litígio decorrente da “desinteligência” entre poderes estatais, e não como um conflito que envolve, antes de tudo, os direitos fundamentais dos próprios indígenas.
Nesse cenário, fica a dúvida: se a maioria dos presentes apoiar uma solução, mas não os representantes dos indígenas, ela poderá ser adotada? Se prevalecer a regra da maioria, o risco de predomínio dos interesses contrários aos indígenas é elevado, até pela postura ambígua do governo federal na matéria — que, às vezes, parece ter esquecido o cacique Raoni na rampa do Planalto.
Aliás, ainda que se adote uma visão formalista do processo constitucional — que me parece inadequada —, que considere não os direitos fundamentais envolvidos, mas as partes processuais, não seria possível a conciliação sem o consentimento da entidade nacional que representa os indígenas — a Apib. Afinal, a entidade é autora de uma das ações direta de inconstitucionalidade contra a Lei 14.701 — diga-se de passagem, a mais robusta delas. Será que o STF vai querer “conciliar” sem o consentimento da parte? Da parte que justamente representa os titulares do direito em jogo?
Como se vê, a obscuridade não vem do direito. Juridicamente, a resposta para a dúvida é óbvia: ainda que fosse possível fazer a conciliação, é claro que não se poderia adotar solução consensual sobre direitos indígenas contra a vontade dos titulares desses direitos. Não haveria o mais importante: o consenso.
A dúvida que resta é sobre se o STF vai honrar a sua trajetória institucional de proteção das minorias vulnerabilizadas e do meio ambiente — como fez, com coragem, na crise democrática que o país atravessou. A certeza, porém, é que os indígenas seguirão lutando bravamente em defesa dos seus direitos, como vem fazendo desde a “descoberta do Brasil”. E que as defensoras e os defensores de direitos humanos estarão do seu lado.
*Daniel Sarmento é professor titular de Direito Constitucional da UERJ e advogado