20/07/2020
“É preciso enxergar a violência como sendo sistêmica: ela é necessária para a expansão do agronegócio e dos projetos extrativos. A violência é necessária para a expansão do capitalismo. E se há violência, há também resistência.”
Enquanto essa fala era dita como parte da oficina da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Fórum Popular da Natureza, 200 famílias que trabalham e produzem alimentos nas terras banhadas de sangue pelo massacre de Pau D’Arco poderiam ser despejadas na semana seguinte. Em 2017, nove trabalhadores e uma trabalhadora foram torturados e assassinados por policiais civis e militares na área da fazenda Santa Lúcia, pleiteada pela família Babinski, no sul do Pará. A Justiça de Redenção havia concedido uma liminar de reintegração de posse para ser executada em plena quarentena. O juiz da Vara Agrária de Marabá suspendeu a decisão pelo tempo em que durar o perigo de contaminação pelo novo coronavírus.
O massacre de Pau D’Arco faz parte dos números coletados no trabalho extremamente importante de documentação sobre os conflitos no campo que a CPT realiza desde meados da década de 1980. Anualmente, é lançada uma publicação com dados reunidos pelos agentes que estão espalhados pelo Brasil.
A cada lançamento, há bastante discussão sobre como se comportaram os conflitos e a relação com a conjuntura política: se houve ampliação ou redução, em quais regiões predominaram, se houve mais ou menos assassinatos. A pergunta da vez é: se o governo Bolsonaro contribui para o acirramento da violência no campo, como isso se dá na prática?
Para além dessas análises, que são fundamentais, os dados apontam que sempre há violência. Desde que a CPT iniciou esse trabalho, não houve um período na história de trégua e paz no campo – a intenção aqui não é aliviar a barra de ninguém; há momentos ruins e há momentos muito piores, como o que vivemos hoje. Mas é preciso enxergar a violência como sendo sistêmica: ela é necessária para a expansão do agronegócio e dos projetos extrativos. A violência é necessária para a expansão do capitalismo. E se há violência, há também resistência.
No Brasil, desde a invasão portuguesa, a expansão dos campos agricultáveis em todos os biomas se deu sobre territórios tradicionalmente ocupados ou terras públicas. O Brasil é um grande grilo. Essa grilagem foi sendo legitimada ao longo da história em diversas anistias. Hoje, há forte e importante mobilização para barrar a medida provisória da grilagem, que se converteu no projeto de lei 2633. No entanto, foram várias as anistias que se sucederam ao longo da história, que premiaram quem roubou terras no Brasil e que permitiram “a boiada passar”.
Não só no passado: o agronegócio continua a se expandir sobre novos territórios tendo a grilagem como método, da Amazônia ao Cerrado. E a violência é instrumento da grilagem.
No final de maio deste ano, a Repórter Brasil publicou o especial Ameaças, milícias e mortes: a nova cara do Velho Chico sobre os conflitos na beira do rio São Francisco, no norte de Minas Gerais. Ali, grileiros tentam se apropriar de áreas nas beiras do rio, pertencentes a comunidades ribeirinhas e vazanteiras. Para isso, organizam-se em um grupo com cerca de 300 fazendeiros da região para realizar despejos e outras ações, com apoio do secretário de justiça e segurança pública do estado. A formação de milícias não é uma particularidade de Minas, é um modo de agir.
A essa reunião de fazendeiros chamamos de consórcios. Foram consórcios de fazendeiros que orquestraram o assassinato de padre Josimo e do sindicalista Gringo na década de 1980, na região conhecida como Bico do Papagaio, no extremo norte do Tocantins; foram consórcios que assassinaram a missionária Dorothy Stang nos anos 2000.
O agronegócio no Brasil não se territorializa sem grilagem e violência, com a consequente destruição ambiental.
Essa violência é parte da opção do Estado brasileiro para o “desenvolvimento” do país com base no agronegócio e nos projetos extrativos. O Brasil tem sido transformado em uma commodity, a natureza tem sido mercantilizada.
Em outras palavras, o Estado brasileiro tem optado pela violência da colonização desses territórios, que é patriarcal e racista – para se conectar com as lutas que ocorrem nas cidades do mundo hoje.
Chama muita atenção que as pessoas de comunidades indígenas e camponesas, e também das comunidades negras nas cidades, quando contam suas lutas, repitam sempre a frase “nós somos seres humanos”, como justificativa para afirmarem que merecem ser tratadas dignamente. Quem são as pessoas que precisam reafirmar sua humanidade?
Por outro lado: para quem a propriedade é sagrada? Estudos de pesquisadores negros têm demonstrado a estreita relação entre propriedade e branquitude, dos tempos de colônia portuguesa até hoje. O agro é branco foi o título da reportagem da Agência Pública que apontou que a propriedade está concentrada nas mãos de pessoas brancas. O agro é branco. O agro é racista. O agro é violento.
A história do Brasil é a história dos conflitos, do massacre e da violência contra esses povos. Ao mesmo tempo, essa história é, também, a história de resistência dessas comunidades. Não se pode falar da violência do agronegócio e dos projetos extrativos sem falar da resistência. Se é sobre as terras, as águas e as florestas desses povos que o agronegócio e o capital avançam para se territorializarem, são esses povos, com seus corpos, que estão barrando esse avanço.
E, com isso, barram também o avanço e o surgimento de mais doenças. Nos debates do Fórum Popular da Natureza, falou-se bastante da pandemia do novo coronavírus como resultado da forma com que o capitalismo tem agido sobre o mundo, em especial a indústria extrativa e o agronegócio – entendido aqui não só como os fazendeiros e empresas agrícolas, mas também as indústrias de venenos, fertilizantes, sementes etc..
O uso de transgênicos, agrotóxicos e outros químicos, as criações industriais de animais, a devastação florestal e a poluição pelos combustíveis fósseis estão gerando desequilíbrios que resultarão em cada vez mais pandemias e doenças. O que enfrentamos é uma “agropandemia”. Rob Wallace, filogeógrafo e biólogo evolucionista estadunidense que em 2015 escreveu Pandemia e Agronegócio, que será lançado em breve no Brasil pela editora Elefante, afirmou no debate Capitalismo, Mudanças Climáticas, Pandemia que as florestas são organismos importantes para barrar a disseminação de novos vírus.
E as florestas não são vazios: elas são ocupadas por gente, que delas dependem.
Portanto, e isso não é novidade, as comunidades que estão, com seus corpos, lutando para proteger a sua existência, acabam por proteger a humanidade como um todo. Assim, essa não é uma luta que está longe dos habitantes das cidades. As causas dessa pandemia que vivemos e de outras que teremos de enfrentar nas cidades e nos campos nos próximos anos residem na destruição promovida pelo agronegócio e pelos projetos extrativos sobre os territórios desses povos.
Bolsonaro também é um sintoma da crise maior que vivemos. Quando ele toma o poder com um discurso abominável, violento e perverso, nos perguntamos: como chegamos a esse ponto? No entanto, é importante perceber que essa base foi sendo construída ao longo dos anos em que nossa sociedade aceitou e normalizou coisas terríveis. Como aceitamos essas mortes impostas como necessárias ao “desenvolvimento”? Como toleramos toda essa violência, no campo e nas periferias das cidades? Talvez porque esses corpos não são considerados suficientemente humanos?
Mas essas violências se estendem a outros corpos, de diferentes formas. Como aceitamos comer comida envenenada pelo agronegócio diariamente, como se isso fosse necessário e inexorável? Como aceitamos beber água envenenada pelo agronegócio diariamente?
E não são somente as comunidades como as da Serra do Centro em Campos Lindos, no Tocantins, impactadas há décadas pela soja, que consomem água envenenada. O veneno está nas nossas torneiras, na maioria das cidades brasileiras, como mostrou o Mapa da Água publicado no ano passado pela Repórter Brasil e pela Agência Pública.
Como toleramos sermos envenenados diariamente pelo agronegócio, como se não houvesse alternativa? Somos todos nós nos envenenando. E adoecendo: as mortes pela covid irão entrar na conta de assassinatos do agronegócio? E os casos de câncer e de outras doenças?
Aquilo que acontecia nos chamados campos distantes e nas periferias está batendo na porta de mais gente, e sendo escancarado como política institucional. O governo Bolsonaro e a pandemia escancaram e aprofundam uma destruição e uma violência que já estavam ali.
A história de mais de 500 anos de resistência mostra que há muita luta. Apesar disso, não há um olhar sobre essas lutas por parte das esquerdas clássica e institucional como fundamentais para barrar a expansão do capitalismo. Muita gente do campo das esquerdas vem dizendo que, desde o golpe em 2016, o povo não está organizado. Mas havia muita gente organizada e em luta enquanto parte da esquerda estava atônita sem saber o que fazer. Talvez não com a organização centralizada que conhecemos – ou esperamos – tradicionalmente, mas ainda assim organizadas.
Para quem está nas comunidades, tendo sua existência ameaçada, não é uma opção não lutar. Não é possível escolher o momento certo. Ou se luta, ou se morre. Ou se luta, ou se termina em uma periferia de cidade empobrecido e subalternizado, o que é a morte para muitas dessas pessoas.
Traçando um paralelo com os primeiros atos durante a pandemia, não é opção para muitos escolher se vão ou não para as ruas. Nas manifestações daquele domingo, dia 7 de junho, as pessoas, questionadas sobre os riscos de quebrar o isolamento social, respondiam: “tenho mais medo do racismo do que do vírus”, “é mais fácil morrer de bala do que de vírus”. Boa parte dessas pessoas continuam impossibilitadas de cumprir o isolamento. São elas que estão morrendo de qualquer jeito, que estão sendo assassinadas de qualquer jeito. E isso ocorre nas periferias das cidades e ocorre nos territórios das comunidades camponesas: são espaços de violência mas são territórios de resistência e de luta, muitas vezes invisibilizadas e tidas como menores pela própria esquerda.
É preciso atentar para o potencial revolucionário e transformador das lutas das comunidades camponesas e indígenas. Elas são profundamente transformadoras porque subvertem nossa lógica de olhar para o mundo. Se abrirmos nossos ouvidos e nossas mentes e nossos corações, essas lutas subvertem nossas próprias subjetividades atravessadas pelo capitalismo, pela colonização, pela modernidade. Nós também somos colonizados.
Ao contrário do que se pensa, essas lutas não são apenas lutas localizadas por aquele pedaço de chão ou pela defesa dos corpos. Elas são afirmação do presente e construção de possibilidade de futuro.
Nessas lutas, está contida a construção de uma teoria política anticapitalista que aponta para outras direções: outro modelo de propriedade da terra, e portanto de propriedade; outra relação com o trabalho, que não de subalternidade, de exploração, de escravidão; vivências de autonomia e autossuficiência, ao contrário da dependência a que estamos submetidos; outros valores que orientam a organização da vida, fundamentados no cuidado e nas rede de reciprocidade; outros sistemas produtivos que não causam destruição ou concentração de riqueza e que, ao contrário, estão produzindo vida; outra relação com a espiritualidade, porque as pessoas buscam sentidos e isso não deve ser menosprezado. E mais: um deslocamento dos direitos individuais – que podem balizar uma ideia de que o capitalismo é bom desde que os direitos sejam respeitados – para os direitos coletivos, que ultrapassam os humanos e se estendem aos outros seres.
E não são lutas isoladas: as comunidades estão articuladas nessa construção. As diversas articulações de comunidades camponesas que existem pelo Brasil são espaços pedagógicos, nos quais se ensina e se aprende a lutar, nos quais se reflete sobre a prática e se criam estratégias, e nos quais a luta é transformada.
Quando as comunidades se reúnem na Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão, por exemplo, há a percepção de que as lutas estão interligadas. Se um porto privado com capital chinês, apoiado pelo governo estadual, despeja a comunidade camponesa do Cajueiro em São Luís, depois, a ferrovia que vai abastecer esse porto vai desterritorializar outras comunidades, assim como as plantações ou extrações de minério para serem escoados por essa ferrovia e esse porto. A luta do Cajueiro, portanto, torna-se central.
Se há uma cadeia de desterritorialização, há uma cadeia de resistência ao avanço do capital. São muitas comunidades no Brasil que resistem há séculos. Os campos no Brasil não são um vazio demográfico e são elas que estão barrando o avanço do capital.
Durante muito tempo fomos orientados por ideias distantes e esquecemos de olhar o que está bem perto da gente, em ação já no presente. Ficamos desolados, derrotados, atropelados pela sucessão de notícias que apontam para o fim do mundo.
Então, em um encontro dessa teia do Maranhão, por exemplo, os que mais estão sofrendo com a violência do capital estão batendo tambor, erguendo os maracás, dançando, cantando “na lei ou na marra nós vamos ganhar”. Indo do Maranhão ao Mato Grosso do Sul, as comunidades guarani, extremamente violentadas, acreditam na transformação da terra arrasada, na reconstrução do mundo guarani. Essa espiritualidade, essa alegria e essa esperança são políticas. Porque essas comunidades já conhecem outro presente e sabem que é possível um outro futuro.
Alguém pode dizer que tudo isso é idealização – há sempre os que apontam nessa direção quando se fala das lutas camponesas. É de se questionar se a idealização não está em quem faz isso, ao imaginar que, para ser proposta possível, deve haver perfeição. É importante observar o que há de positivo e perceber que as dificuldades e problemas – que existem – estão sendo discutidos e confrontados no processo. A utopia a ser construída é a utopia possível. Pois é impensável e desconectado da realidade que a caminhada seja isenta de dificuldades e contradições.
Essas resistências apontam caminhos em um momento de colapso do sistema e em que temos um impasse civilizatório: ou se transforma radicalmente nosso modo de estar nesse mundo ou seremos aniquilados. A pandemia é um sintoma claro disso. Bolsonaro é um sintoma disso. Não as causas. Temos de combater pandemia e Bolsonaro, de forma urgente, ampla e contundente. Mas é preciso enxergar as possibilidades para além disso.
Carolina Motoki é jornalista, educadora popular e assessora a Campanha de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra
Artigo baseado em fala do dia 8 de junho de 2020, na oficina “Conflitos no campo no Brasil: o de sempre e em tempos de pandemia e bolsonarismo”, no Fórum Popular da Natureza.