19/02/2021
Fonte:https://www.brasildefatomg.com.br/2021/02/19/atacados-por-empresas-esquecidos-pelo-poder-publico-a-vida-quilombola-em-minas#.YDBB-SHJeMU.whatsappReportagem do Brasil de Fato acompanhou a Federação N´Golo em visita a comunidades que sofrem com violações de direitos
Em Minas menos de 3% das comunidades tem seus territórios legalizados – Créditos da foto: cedefes
As violações de direitos não cessaram para as comunidades quilombolas. Hoje em dia elas são promovidas pelo poder público e grandes empresas, conforme verificou a Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas (N’Golo) e o Brasil de Fato.
Uma reportagem do Brasil de Fato e a Federação passaram ao longo desta semana pelos quilombos Carrapatos da Tabatinga, em Bom Despacho, Saco Barreiro, no município de Pompeu, e Pontinha, em Paraopeba.
O primeiro município está na região Centro-Oeste do estado e os dois últimos na Central. A intenção da viagem foi a finalização de um projeto sobre gestão territorial e ambiental, executado pela N’Golo em parceria com o Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA) e DGM Brasil, com diversos quilombos, que resultou na produção de uma cartilha a respeito do tema (veja PDF).
Desde meados do século XVII, os registros históricos confirmam a existência de quilombos. Essas comunidades originam-se dos agrupamentos de negros fugidos da escravidão durante o período colonial brasileiro. Quilombo é uma palavra originária do quimbundo, idioma falado antigamente em Angola, e significa acampamento de guerreiros. O desrespeito e a violação a esses povos é histórico no Brasil.
Atual modelo agrícola contrata pouca mão de obra e as requisitadas são mal remuneradas
“A gente só será de fato livre com a regularização das nossas terras”, afirma a quilombola de Bom Despacho, Sandra Maria dos Santos. Ela está com 61 anos e há 40 atua em prol dos quilombos. Atualmente compõe a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e trabalha no financeiro da N’Golo. Segundo ela, atualmente a principal luta dos quilombos é a regularização das terras. “Minas Gerais é o pior estado na lida com a questão quilombola. Aqui é onde temos mais conflitos de terras. E eles são muitos: com fazendeiros, mineradores e produtores de celulose”, resume.
De acordo com informações do IBGE, em Minas são 1.027 localidades que abrigam descendentes de quilombolas. No país, segundo o Instituto, são 6.023, espalhadas por 1.672 municípios. De todas os quilombos em âmbito nacional, sequer 8% deles são territórios oficialmente regularizados.
Comunidade sofre com os problemas gerados pelo rompimento da barragem da Vale, em janeiro de 2019
Em Minas esse percentual não chega a 3%. No estado apenas 22 comunidades quilombolas são regularizadas. Depois da Bahia, Minas é onde há mais quilombos no país. Januária, cidade do Norte mineiro, abriga o maior número de localidades quilombolas no Brasil, com 29 comunidades. Os quilombos visitados pela reportagem não estão entre os regularizados.
A Vallourec começou avançar sobre as terras da comunidade desde os tempos da minha avó
A Constituição Federal assegura aos quilombolas a propriedade definitiva da terra onde estão. Uma vez que a grande maioria dos quilombos não possuem a propriedade definitiva, eles estão suscetíveis a diversas violações.
“Isso é uma grande brecha para empresas e fazendeiros pensarem assim: ‘ah, posso entrar nessa terra, afinal, são só negros que ocupam e eles não tem nada para comprovar que é deles’”, explica Agda Marina Moreira, pesquisadora em saúde pública e assessora da N’Golo.
Para sanar a disputa por terras, a Constituição prevê que o poder público tome o terreno quilombola sob domínio de um terceiro mediante desapropriação por meio da compra dessas terras. Embora não seja competência exclusiva, o governo federal por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) é o grande responsável por essa regularização.
“E aqui em Minas a maioria das comunidades quilombolas que precisam ser regularizadas estão em terras devolutas do Estado e não em privadas”, afirmou Sandra. Terras devolutas são basicamente espaços públicos sem uma destinação específica; podem ser dispostos para qualquer fim. “Então, para Minas Gerais é mais fácil promover a nossa regularização. O Estado não faz isso por pura falta de vontade política. É racismo”, observou a quilombola coordenadora da Conaq. Não existem dados acessíveis a respeito das terras devolutas pertencentes ao governo estadual.
Saco Barreiro
A não titulação dos terrenos é a “porta de entrada” para a violação de outros direitos. Essa situação não ocorre apenas nos quilombos visitados pela reportagem. Não é raro em nível nacional haver violações de direitos de quilombolas, sobretudo no Nordeste e Norte do país, regiões com forte presença da agropecuária e mineração.
Há 23 quilômetros de Pompeu está o quilombo Saco Barreiro. O caminho é por uma estrada de chão em que o atolamento de carros é rotina. Preenche praticamente toda a paisagem até a comunidade a plantação de cana da Agropeu, empresa produtora de álcool. O quilombo é circundado pela cana. Por lá vivem 38 famílias. Elas plantam para consumo próprio arroz, café, milho, entre outros alimentos. O excedente é vendido na feira da cidade.
Alguerino Thomaz de Almeida, de 72 anos, e Neide de Almeida, de 62 vivem na comunidade. Uma lista do que é plantado na porção de terras deles não caberia em uma folha, se encontra de tudo, de canela a café, de maracujá a laranja e limão. A água que utilizam para demanda própria e para a plantação provém de uma cisterna. Existe uma preocupação sobre a possibilidade de a água estar contaminada por agrotóxicos provenientes do canavial que os rodeiam.
“Uma vez eu estava aqui perto, fora de casa, e aí, passou um avião. Quando eu vi, eu tinha tomado um banho de veneno”, conta Alguerino. Segundo ele, há 15 anos ao menos a empresa jorra agrotóxico de diversas maneiras. Uma delas é a por avião. Um vídeo filmado por Igor Antônio de Almeida, de 23 anos, mostra um desses jatos passando. O grande problema desse tipo de pulverização é a dispersão dos agrotóxicos, que facilmente podem chegar até o quilombo.
“Uma prova de que esses venenos estão nos prejudicando está aqui nesta planta. Você vê que as bordas dela estão brancas. E isso é um forte indicativo de que ela está contaminada. Agora, imagina tantas outras coisas que podem estar contaminadas também”, afirmou Igor mostrando algumas plantas na beira de um rio que passa por Saco Barreiro. De acordo ele, o defensivo usado pela empresa é o glifosato, um dos pesticidas mais utilizados na agricultura brasileira.
Conforme nutricionistas, a substância em grandes quantidades pode causar sérios danos à saúde. Até câncer. Na Alemanha existe um projeto para banir até 2024 o uso do glifosato. O México recentemente o proibiu.
O dilema de Saco Barreiro é intrínseco à não titulação das terras. “Existem limites até onde as empresas podem jogar veneno, que não pode atingir comunidades próximas às plantações. Mas, sem a titulação que demarca o nosso território, a empresa pode alegar que está jogando no terreno dela”, observa Igor.
“Teve até um dia que carreguei um carrinho cheios de pintinhos mortos. Eles morreram do nada. Eu desconfio que isso pode ter uma relação com o agrotóxico”, relembrou Wilton de Almeida, de 55 anos, líder comunitário. Em Saco Barreiro praticamente todos os moradores pertencem a uma família, a Almeida.
Pontinha
A comunidade Pontinha fica na zona rural de Paraopeba. Ela abriga cerca de três mil moradores. É um dos maiores quilombos de Minas. O rio Paraopeba, e as lagoas Dourada, Lontra e Cedro cercam a comunidade. Por ser grande, a localidade possui uma diversificada produção de alimentos. Hoje existem uma agroindústria, comércio e escola. Um dos problemas atualmente são os impactos do rompimento da barragem da Vale, em janeiro de 2019.
Além das centenas de mortes, o desabamento da estrutura gerou enormes danos ambientais em especial ao rio Paraopeba, que ajuda a abastecer a comunidade. A produção de diversos alimentos foi atingida; o que gerou perda de renda para muitos quilombolas.
Uma das famílias atingidas foi a de Renato Moreira, de 42 anos, membro da associação de moradores. Eles criam o minhocuçu, isca para pesca. A criação da minhoca era realizada por meio da água do Paraopeba, hoje imprópria para uso. Ainda não foi calculado minuciosamente todos os efeitos da tragédia nessa comunidade. Uma assessoria técnica está realizando um relatório nesse sentido.
Ainda de acordo com Renato, o outro grande sofrimento é o avanço da plantação de eucalipto sobre as terras do quilombo. Ao viajar pela região Central e Centro-oeste de Minas é comum ver imensidões de plantações de eucaliptos, que abastecem indústrias de carvão e papel, por exemplo.
“A Vallourec começou avançar sobre as terras da comunidade desde os tempos da minha avó. E até hoje ela ainda avança”, conta Renato. Ele não soube dizer o tamanho da área abocanhada pela empresa franco-alemã. Pontinha percebe o avanço do eucalipto em seu terreno, mas não consegue dimensionar essa situação uma vez que a comunidade não está delimitada oficialmente. “A empresa inclusive cercou o ‘lugar dela’. E a gente não pode fazer isso”, mostrou.
A associação de moradores de Pontinha cobra da empresa compensação pelos danos. Mas, segundo os residentes isso não ocorre de maneira devida. “A empresa, por exemplo, não nos contrata para trabalhar para ela. Eu mesmo tenho que morar em Sete Lagoas para ganhar minha vida”, relatou Renato.
As máquinas da Vallourec estavam a todo vapor cortando os eucaliptos quando a reportagem visitou o quilombo. Poucos funcionários trabalhavam no corte. Na realidade, as máquinas é que realizavam quase todo o serviço.
Esse é um dos grandes dilemas econômicos do atual modelo agropecuário, que tende a devastar comunidades como a de Pontinha. Ele contrata pouca mão de obra e as requisitadas são mal remuneradas. Assim sendo, ocorre uma concentração de renda aliada à potencial destruição de um povo.
De acordo com a plataforma governamental Dataviva em Paraopeba, onde está a comunidade, há cerca de 5,4 mil empregos para uma população que beira 24,2 mil habitantes. Dos postos de trabalhos, 11,7% ou 634 provém da agropecuária.
Para tentar driblar a falta de oportunidades econômicas, Pontinha criou com a ajuda de um projeto da UFMG uma agroindústria de produtos derivados do pequi, fruto abundante na comunidade. O estabelecimento em operação desde 2016 gera renda para 10 famílias. A intenção é agregar mais ao longo do tempo. “Aqui a gente consegue fazer óleos. É uma maneira de conseguirmos agregar valor ao fruto”, diz Renato Moreira.
Atuação da Federação N’Golo
“Essa cartilha que hoje distribuímos é para que vocês possam usá-la. Aqui está um conjunto de estratégias para que possam planejar o uso do território de vocês. Além disso, nela se encontra todas as legislações que protegem vocês, quilombolas”, explicou Jesus Rosário Araújo, presidente da N’Golo, durante uma das reuniões com as comunidades visitadas.
O documento produzido e distribuído pela federação N’Golo supre dúvidas de muitos quilombolas sobre seus direitos. Existem atualmente 26 normas jurídicas, desde portarias a artigos constitucionais, que contemplam os povos de quilombos. “Aqui estão os marcos legais sobre os direitos de vocês. Agora, cabe a gente tentar colocar eles em prática. E isso só vai acontecer com muita luta”, completou Jesus.
A Federação N’Golo atua em prol dos quilombolas há pouco mais de 10 anos. Ela é a representante deles no estado. Sua atuação ocorre de diversas formas. No ano passado e ainda este ano os esforços se concentram em questões relacionadas à pandemia de coronavírus. A Federação e o Brasil de Fato ainda irão percorrer outras cinco comunidades em março.
Providências
A deputada estadual Andréia de Jesus (Psol) esteve em uma parte da viagem da N’Golo. Ao averiguar a situação dos quilombolas ela se comprometeu a tomar providências. “Com a cartilha entregue a gente viu a quantidade de legislações que existe para proteger os quilombolas. Mas a execução disso é precária. Vou acionar a Copasa para que verifique a situação da água de Saco Barreiro, onde existe fortes indícios de que está contaminada. E também acionaremos o Incra para que dê respostas sobre a demarcação de terras”, disse Andréia, que é vice-presidenta da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa.
Edição: Elis Almeida