19/01/2024
Mais de 400 fragmentos de corpos, recuperados na área da barragem de Brumadinho (MG), permanecem armazenados no IML (Instituto Médico Legal) de Belo Horizonte. Eles fazem parte dos 1.023 corpos ou segmentos, localizados ao longo dos cinco anos de buscas.
Os 410 segmentos que estão no IML são de 133 vítimas já identificadas. Algumas possuem mais de um fragmento guardado —uma delas teve 15 partes do corpo encontrados em pontos diferentes da lama. A informação é da perita Ângela Romano, especialista em mortes violentas e atual coordenadora do trabalho da Polícia Civil desenvolvido na Operação Brumadinho.
Das 133 vítimas, 130 já tiveram sepultamento realizado. As famílias fizeram os enterros com o primeiro segmento encontrado e identificado. Algumas decidiram deixar com o IML novos fragmentos. Eles serão levados a um memorial, ainda sem data para ser inaugurado. Parte dos familiares optou por não ser comunicada sobre novos achados.
Três vítimas ainda não tiveram sepultamento. Suas famílias têm esperança de que outros segmentos ainda sejam localizados.
É o caso do operador de motoniveladora Vagner Nascimento da Silva. Em maio de 2019, a mãe dele, Arlete Gonçala de Souza da Silva, foi comunicada pelo IML sobre a localização de uma perna do filho. Após se recusar a sepultar apenas parte do corpo, empreendeu uma luta, junto de outros familiares, para que a operação de buscas fosse adiante.
Quando o pai de Vagner ficou doente, em 2022, Arlete pensou em desistir. Ela queria que o marido, Alderico Silva —diagnosticado com água no pulmão—, enterrasse o filho antes de morrer. Ele, no entanto, não quis sepultar apenas parte do corpo e faleceu dois meses depois. Hoje, Arlete ainda espera.
Já cheguei até aqui, então vou continuar esperando o fim. Arlete Gonçala Silva
Eva Aparecida de Sousa está em situação parecida. Só uma parte do fêmur do filho, Renato Eustáquio de Sousa, foi encontrada, em maio de 2021. Em julho do mesmo ano, ela perdeu o marido, Geraldo de Sousa, vítima de um AVC. Para Eva, ele —que já era hipertenso e entrou em depressão após a tragédia— adoeceu ainda mais após saber do estado em que o filho foi soterrado.
Geraldo se entregou, só ficava sentado no sofá. Foi de desgosto que ele morreu, não foi outra coisa. Eva Aparecida de Sousa
A terceira vítima ainda não sepultada é Miraceibel Rosa. O irmão dele, Moacir Rosa Filho, conta que apenas cerca de 5% do corpo foi encontrado. “Não é nada para um homem como ele, que tinha 1,80m e quase 80 kg”, argumenta.
Moacir tem receio de que nenhum outro segmento do irmão seja localizado. Se isso acontecer, diz ele, “vai ser um sentimento de frustração que vai durar para o resto da vida”.
Vagner, Renato e Miraceibel trabalhavam na Mina Córrego do Feijão no momento do rompimento. Miraceibel estava no alto da barragem. Segundo estudo conduzido pelo médico-legista Ricardo Moreira Araújo —que coordenou os primeiros anos da Operação Brumadinho— o desmembramento de corpos na tragédia foi 3,4 vezes maior entre os trabalhadores da mina do que entre as vítimas da comunidade.
Os 410 segmentos estão em caixas de zinco, guardadas em um caminhão frigorífico no pátio do IML. Cada uma das 133 vítimas possui uma caixa. Sempre que algum novo segmento é encontrado, ela é aberta para receber o material.
O método das caixas foi criado para a tragédia de Brumadinho. Prevendo que o material levaria anos até ter sua destinação final, os familiares exigiram da Vale uma forma de preservá-lo pelo máximo de tempo possível. Um legista contratado pela mineradora desenvolveu a metodologia.
Das 270 pessoas mortas na tragédia, mais dois nascituros, 267 foram identificadas. Dessas, apenas 88 tiveram o corpo completo (com cabeça, tronco e membros) encontrado em meio à lama. As outras 179 tiveram seus corpos segmentados.
A maioria das identificações tem ocorrido a partir de ossos. O último tecido mole foi encontrado em setembro de 2022. Segundo a perita Ângela, havia pele, cabelo e até barba, além de ossos. Mas o resultado do DNA levou cerca de 90 dias para sair e só foi possível a partir do osso. “O tecido mole degrada mais rapidamente. É mais fácil perder o exame com tecido mole do que com o osso. O [exame com] osso demora, mas sai”, explica a perita.
22 exames de DNA estão em análise, e os últimos três resultados saíram na segunda-feira (15). Dois deles deram inconclusivos, quando não é possível extrair o material genético mesmo após várias tentativas. Um terceiro foi um caso de reidentificação —quando a parte de corpo pertence a uma vítima já identificada anteriormente.
121 casos foram considerados inconclusivos, e as tentativas de extração de DNA foram encerradas. “Foram usadas várias técnicas tentando extrair [DNA] de várias partes do segmento, por várias vezes, mas não se conseguiu”, explica a perita. Esse material também está separado e irá para o memorial das vítimas.
Ainda não foram encontrados segmentos na lama em 2024. Os últimos foram achados no ano passado —18 no total. Neste ano, bombeiros chegaram a enviar um material encontrado nas estações de buscas, desconfiando que pudesse ser humano. Mas tratava-se de um pedaço de madeira.
O material de Brumadinho continua tendo prioridade. Segundo Ângela, o laboratório de DNA do Instituto de Criminalística atende todo o estado, mas a análise do material de Brumadinho é priorizada —da mesma forma que ocorre com os casos de estupro e morte violenta.
A Polícia Civil de Minas Gerais também recebe objetos encontrados na área de buscas. Até agora, mais de 1.500 foram localizados. Entre eles, peças de roupas, álbuns de fotografia e brinquedos. Os recuperáveis e que apresentam identificação são encaminhados para a delegacia de Brumadinho e podem ser retirados por proprietários ou familiares.
A construção do memorial foi um pedido da associação dos familiares das vítimas (Avabrum) à Vale. O prédio ficou pronto no final de 2022. Ele possui 1.220 m2 de área construída e ocupa um terreno de 5 hectares, no Córrego do Feijão —bairro vizinho da mina.
O memorial será gerido por uma fundação sem fins lucrativos. A entidade foi criada, em agosto de 2023, em um acordo que resolveu um impasse que durou mais de dois anos entre Avabrum e Vale. A associação insistia para que a gestão fosse das famílias e que a Vale não tivesse participação administrativa —o que ficou acertado em um termo de compromisso mediado pelo Ministério Público de Minas Gerais.
O Conselho Curador foi escolhido pela Avabrum. Ele é composto por dois diretores da associação, um associado e dois membros convidados: a reitora e uma professora de Direito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
A Vale está obrigada a custear a manutenção e a conservação do espaço. A empresa terá de fazer um depósito inicial na conta da fundação no valor de R$ 157,9 milhões, além de depósitos complementares de R$ 5 milhões a R$ 12 milhões —também anualmente, até 2027.
Além de receber os segmentos, o espaço também será dedicado ao tema da mineração no Brasil. “Queremos contar o que a mineração representa, quais as consequências dela nos territórios que mineram e como a gente pode buscar um equilíbrio como uma nova sociedade diante da mineração”, afirma Vagner Diniz, presidente do Conselho Curador da fundação.