20/01/2021
Vimos manifestar nosso apoio aos carroceiros, contra a Pl 142.
Sr. Prefeito,
A manutenção e reprodução de práticas e valores tradicionais nos espaços urbanos não deveria ser conflitivo ao modo de vida urbano e sua configuração, pelo contrário, são partes essenciais e constitutivas do mesmo. A verdade é que toda e qualquer manifestação dos povos tradicionais, especialmente de matriz africana, são conflitivos aos valores morais de uma sociedade que se mantém rigidamente racista. Portanto, posicionados nos espaços de poder, conseguem de forma a ser dita “democrática” ou “legal” impor condições indignas, e obstruir a manutenção de práticas herdadas, as quais carregam um valor existencial, um reconhecimento identitário e um sentido de vida dessas comunidades que os ligam aos seus antepassados, seja de gerações longínquas ou recentes.
Não queira nos tornar cristão, violando nossas identidades e tradições. Essa tentativa de nos proibir de sermos independentes a partir das nossas práticas, nos desperta uma total falta de reconhecimento com nossos gestores públicos e a forma de administrar a cidade onde vivemos, em nossas comunidades, com nossas famílias e criamos nossos filhos. Reconhecer os modos de vida, as práticas culturais, as tradições herdadas de seus antepassados, de geração em geração e os diversos ofícios da população que governa deveria ser obrigação de qualquer gestor público. Especialmente quando se usa como slogan de governo, a frase: “governar para quem precisar”.
Projetos de leis como do PL 142 carregam em sua essência um caráter higienista e excludente, remontando os princípios dos criadores desta cidade. Mas acreditávamos termos evoluído como humanos e em nossa visão sobre nossa diversidade cultural, religiosa e todos os campos da vida em sociedade. Projetos de leis como este são lamentáveis e carregam o DNA de uma sociedade eugenista e higienista, que ainda não conseguiu conviver e criar formas, que não seja através da imposição pela força, tanto a física quanto a legislativa, para dirimir seus impasses raciais, de gênero, culturais e religiosos, e permitir que todes convivam na cidade com pleno gozo de seus direitos e deveres, tendo suas diferenças respeitadas. Portanto, não tente nos convencer que este PL não nasce de uma atitude racista e também antidemocrática. Especialmente, quando se percebe qual a parcela da população será atingida pela lei e por ignorar a possibilidade de uma consulta pública.
Nesse sentido, é higienista no aspecto hipócrita de uma suposta limpeza do espaço urbano, e também do argumento falacioso de defesa a vida e dos direitos dos animais. É eugenista, pois, na verdade trata-se de uma limpeza étnica, ao tentar reduzir as possibilidades de participação na vida social e das possibilidades de trabalho da população afrodescendente e outros não brancos, diminuindo assim suas expectativas de vida acesso a serviços bens materiais e qualidade de vida.
Nós povos e comunidades Tradicionais, que somos de variadas culturas e tradições temos nossos modos de nos organizarmos, justamente porque uma sociedade perversa, racista e capitalista, tentam ainda nos corromper, nos explorar, em um processo silencioso e por vezes, “legal” através do qual se perpetra o extermínio por meio da redução de nossas possibilidades de participar da vida em sociedade de forma plena, nos impondo condições indignas matando nossas tradições, sejam elas culturais ou religiosas. Mas todas, em conexão com nossos modos de vida. Quando se intervém nos modos de vida de um povo, fica nítida a imposição cultural e a intenção de solapar suas possibilidades de autorrealização, autonomia e independência e, consequentemente incutir um sentimento de inferioridade. Esta é a fórmula básica, utilizada secularmente, com a finalidade dissipar gradativamente as identidades de alguns povos, facilitando assim os processos de dominação, exploração constante e dizimação de seus membros no Brasil contemporâneo.
O Kilombo Manzo já sofreu na pele e no terreiro o peso das “chibatas” institucionais e legislativas. Uma violência sem precedentes que interferiu em toda nossa dinâmica de forma inexorável, pois, até os dias de hoje não foi possível retomarmos nossas atividades da forma como era. Isso interferiu até mesmo nas dinâmicas de afeto entre os familiares e as filhas, filhos e filhes da casa, em nosso sagrado e na tradição. Reconhecer o Manzo como patrimônio cultural não foi reparação em razão deste ato violento de racismo institucional, mas um direito.
Agora, queremos saber excelentíssimo prefeito, vai nos arrancar as carroças?
Uma pena, pois ela está tão bonita no documentário “Tem Quilombo Na Cidade”, mostrando a beleza do Quilombo de mangueiras.
Administrar uma cidade e as dinâmicas de vida de suas várias populações é algo que requer muita responsabilidade e sensibilidade. Nossas lutas neste país, para termos nossas vidas e nossas tradições respeitadas, custaram a vida de muitas e muitos em tempos passados. Mas há uma cegueira institucional acompanhada de uma de um silenciamento que impede que tais violências cessem e não sejam cometidas de forma tão absurda e naturalizada, hoje dissimulada em atos legislativos. Acreditamos que todas as gestoras e gestores públicos, incluindo todas as pessoas que atuam na administração pública, deveriam passar por um processo letramento da diversidade para uma atuação coerente com o que requer nosso contexto social e multicultural.
Argumentos em prol da vida ou defesa dos direitos dos animais não deveriam ser utilizados para medidas que impactam negativamente na vida das pessoas. Obviamente há formas de contemplar todas, todos e todes, incluindo os animais, sem prejuízo para nenhuma das partes. Pelo contrário, melhorando a relação entre todas, todos e todes, incluindo os animais. Por estes nítidos motivos, a exemplo e similares a intervenção arbitrária ocorrida no espaço do Kilombo Manzo, são reconhecidas como racismo institucional. Se a preocupação fosse de fato a vida e os direitos dos animais, há várias outras instâncias que deveriam focar, como os animais que vimos pelas ruas e outras medidas possíveis junto às trabalhadoras e trabalhadores de veículos com tração animal.
Outro exemplo do tratamento diferenciado, o que nos mostra que tal PL 142, tem menos haver com a vida ou direitos dos animais e mais com racismo e imposição de poder sobre a população negra, não branca e pobre da cidade, podemos ver no tratamento direcionado à população cigana. Já perceberam, que no em torno do parque municipal, antes ocupado por grupos ciganos, hoje se encontram as mulheres da Bíblia?
Isso torna perceptivo, que nesta cidade, a exemplo da maior parte do Brasil e como herança de um histórico escravocrata na qual a igreja católica participou ativamente, ainda persiste um rigoroso processo objetivo e simbólico de imposição do cristianismo como matriz religiosa ideal. Isso nos leva a restabelecer também, à luz de nosso passado escravocrata de políticas eugenistas de embranquecimento e destituição identitária dos povos afrodescentes e não brancos, o fomento à cultura do capitalismo. Um povo, ou, vários povos no culto a uma mesma crença e modos de vida, se torna mais simples de controlar, de ordenar o mercado e potencializar os lucros das grandes empresas. Qual o vínculo da PL 142 com tudo isso¿ As empresas de caçambas lucram mais que as empresas de transporte público, aliás como anda o processo da caixa preta, e o projeto para acabar com as enchentes na Cidade, Sr. prefeito?
Será que senhor prefeito sabe que existe um preconceito tão grande que ninguém emprega ciganos?
Somos povos de tradicionais, senhor!
Aprendemos a cuidar da terra e dos animais, porque diante de tanta maldade que nossos antepassados sofreram, foi a terra e os animais que nos garantiu alimentação e nossa subrevivência, e ainda nos alimenta. Somos povos que preserva a nossa história, as carroças, os sons dos tambores, a fumaça do fogão a lenha, as matas e as nascentes, são páginas do livro de nossos ancestrais que a política da dominação e usurpação ainda não conseguiu queimar. Somos de uma geração que teve que aprender a nos reconhecermos em nossas identidades raciais para sobreviver contra toda sorte de violências. Por outro lado, em razão desse passado, percebemos que a tradição da dominação, imposição do poder, da tortura e maus-tratos ainda persistem no DNA dos que assumem as rédeas da administração das cidades, dos Estados e de nosso País. É uma irresponsabilidade querer nos igualar para justificar políticas de extermínio contra nossos povos e comunidades.
Estamos em pleno século XXI e a questão ambiental se tornou cada vez mais premente. Será que vocês estão tão focados na desarticulação dos ofícios dos afrodescendentes, não brancos e pobres que ainda pensaram na questão ambiental e nos impactos que a adição de mais veículos motorizados vão causar na qualidade de vida ambiental de nossa cidade?
Somos cidadãos desta cidade e requeremos nossos direitos em participar de forma digna e respeitando nossas tradições e modos de vida. Estamos aqui também para contribuir para que possamos pensar em soluções viáveis que não reduzam as oportunidades, ou atuem na restrição da manutenção de nossas práticas culturais, religiosas ou ofícios, especialmente sobre as populações que vivenciam experiências ocasionadas por uma série de condicionantes estruturais. “Governar para quem precisa”, deveria ser governar com quem precisa, o que implica em consultar quem precisa para tomar as melhores medidas.
Associação de Resistência Cultural da Comunidade Quilombola Manzo Ngunzo Kaiango