O primeiro Seminário Internacional da Coalizão Negra, nesta sexta-feira (29), marcou um espaço de consagração da nova entidade, que reúne cerca de cem movimentos ligados à defesa dos direitos de negras e negros. A coalizão, criada este ano, atuou dentro do Congresso Nacional em um corpo a corpo com os parlamentares e, também, em instâncias internacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), na União Europeia e na Organização das Nações Unidas (ONU), denunciando o desrespeito do governo brasileiro contra a população negra.
Uma das mais importantes intelectuais brasileiras, a filósofa e escritora Sueli Carneiro, fez um discurso histórico de análise conjuntural do país na abertura do evento e reconheceu o peso do coletivo.
“A Coalizão Negra é a resposta necessária para o momento de desconstrução de direitos arduamente conquistados por nosso povo”, explicou. Para ela, “a nossa luta atual é contra o retrocesso, contra a desconstitucionalização de direitos, ela corre paralela à necessidade e urgência de construirmos formas de sobrevivência e resistência num contexto de ausência de políticas sociais, políticas de promoção e inclusão de nossa diversidade, especialmente racial.”
Em outro momento, Carneiro criticou as políticas impostas pelo governo federal, que devem continuar sendo pautadas em 2020. “Vivemos hoje quase que a repetição do cenário pós-abolição, libertos para morrermos à míngua, ou com toda sorte de violência nas sarjetas desse país. É isso que as reformas que estão sendo instauradas aqui promoverão sobre a nossa gente. Em nenhum outro momento do pós-abolição, o projeto de extermínio da racialidade indesejada, que somos nós, se tornou tão evidente no Brasil e com tamanho apoio e/ou indiferença social, expondo negras e negros a chacinas, extermínios, genocídios, feminicídios e mortes previsíveis e evitáveis. Mais do que nunca, estamos por nossa conta.”
Carneiro integrou a mesa de abertura do evento, com nomes relevantes para o movimento negro. A jornalista e escritora Bianca Santana, a também escritora Nilma Bentes, a historiadora Wania Sant’Anna, Selma Dealdina, da direção da Coordenação Nacional da Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), e Edson Cardoso, editor do jornal baiano Irohín.
O seminário ocorre na Ocupação 9 de Julho, na região central de São Paulo, e a programação se estende até o sábado (30). Nesses dias, representantes de entidades de oito países participam do encontro.
Antes do resgaste feito por Sueli Carneiro de todas as conquistas do movimento negro nos últimos 40 anos, que incluem as cotas, direitos trabalhistas de trabalhadoras domésticas, criminalização do racismo, entre outros, a jornalista Bianca Santana lembrou que esses êxitos só foram possíveis com “pressão nas ruas”: “Nós nunca deixamos de fazer trabalho de base.”
“Não há enfrentamento ao racismo feito de forma individual. O protagonismo de uma figura negra não é novidade na história do Brasil, isso nunca deslocou a situação em que vive a maior parte do nosso povo. Ou nos organizamos para fazer o trabalho coletivamente para propor uma mudança efetiva na vida do nosso povo, ou não haverá transformação”, explicou Santana.
A historiadora Wania Sant’Anna lembrou que o movimento negro “tem um projeto de nação, um projeto para esse país” e que “somente nossa eliminação física pode destruir o projeto de nação que temos. Mas eu aviso que não serão vitoriosos nesse propósito, porque nós somos a maioria e a maioria vai vencer”, ponderou, acusando o governo federal pela tentativa de romper com “direitos adquiridos” pelo povo negro.
Fundação Palmares
Para Bianca Santana, uma das formas de violência de Jair Bolsonaro foi nomear Sérgio Camargo para a Fundação Cultural Palmares. “Não à toa, esse governo nomeia nesta semana, dias antes de nosso encontro, no final do novembro negro, um homem que não está comprometido com a nossa causa e que toma a palavra para falar com nós. Talvez, eles estejam respondendo à essa articulação, que trará cada vez mais frutos.”
Edson Cardoso, do jornal Irohín, também criticou a escolha, lembrando do deputado federal Hélio Lopes (PSL-RJ), que era conhecido como Hélio Negão, até tomar emprestado o sobrenome Bolsonaro, que utilizou durante as eleições de 2018.
“Sabemos que o lado esperto das ideologias, não abre mão de uma representação negra submissa. Ele vai de Hélio de Negão, sem cor, sem nome e sem voz, a outros, que tem voz e nome, até falam sobre racismo, mas na verdade é inserção submissa que ele faz. O outro espectro adora apresentar um Hélio Negão, ou um presidente da Palmares”, criticou Cardoso.
Por fim, a historiadora Wania Sant’Anna fez um desabafo. “É claro que eu gostaria de estar falando de outras coisas. A vida é muito interessante, mas os caras não deixam. Temos que falar de racismo e genocídio, porque por incrível que pareça, mesmo depois de termos dado nosso melhor, desde que fomos trazidos para cá sem convite, criamos a riqueza desse país, mesmo depois disso tudo, continuamos nesse martírio que não acaba.”
Confira o discurso de Sueli Carneiro na íntegra:
“A nossa luta atual contra o retrocesso, contra desconstitucionalização de direitos, ela corre paralela à necessidade e urgência de construirmos formas de sobrevivência e resistência num contexto de ausência de políticas sociais, políticas de promoção e inclusão de nossa diversidade, especialmente racial. Vivemos hoje, quase que a repetição do cenário pós abolição, libertos para morrermos à míngua, ou com toda sorte de violência nas sarjetas desse país. É isso que as reformas que estão sendo instauradas aqui promoverá sobre a nossa gente. Em nenhum outro momento do pós-abolição, o projeto de extermínio da racialidade indesejada, que somos nós, se tornou tão evidente no Brasil e com tamanho apoio e/ou indiferença social, expondo negras e negros a chacinas, extermínios, genocídios, feminicídios e mortes previsíveis e evitáveis. Mais do que nunca, estamos por nossa conta. É preciso lembrar, revisitar e resinificar as estratégias de luta e sobrevivência que fomos capazes de desenvolver em outros momentos semelhantes e que nos trouxeram até aqui.
Como afirmou benedita da Silva, em artigo para a Folha de São Paulo em 1995, o primeiro grito de liberdade ecoado no mundo, foi dado por Zumbi, que pagou com a própria vida, por ter ousado construir na Serra da Barriga, em Alagoas, a República de Palmares, onde conviveram em liberdade os escravos fugidos, índios e brancos pobres. Além de Palmares, fizemos Malês, Balaiada, das mais conhecidas de dezenas de revoltas escravos. Estamos em uma ocupação. Fomos capazes de criar organizações negras capazes de desempenhar múltiplas estratégias, como compra de alforrias, como compra de créditos para assistência de escravos para casos de doenças, invalidez, prisões e funerais. Essas eram as tarefas cumpridas pelas irmandades negras mais de 50 anos antes da abolição. Estamos diante de um cenário temerário, que clama pela nossa resistência vigorosa à negação do nosso direito à vida e à dignidade humana. Mas somos também detentores de um patrimônio libertário de lutas e conquistas que servem para nos inspirar. Temos aqui, com a Coalizão, a possibilidade de construir as expressões organizativa das diferentes dimensões que a questão racial nos impõe nesse momento no plano político, econômico, social e na defesa da vida e dignidade de nossa gente. É um cenário temerário, que clama também pela solidariedade das forças progressistas internacionais no monitoramento de denúncia das violações dos direitos humanos dos negros no Brasil e, particularmente, na defesa do nosso direito à luta. Representações políticas de outros países presentes aqui, saibam que mais do que nunca precisamos e contamos com vocês. Estamos condenados à resistência. Para negras e negros brasileiros, luta é verbo. Seguiremos com força e honra, faremos Palmares de novo. Marielle, Presente”
Edição: Vivian Fernandes