01/01/2019
“Feliz Ano Novo”, dizem pessoas, em uma padaria, enquanto compram o pão de cada dia. Em Brasília, com o maior aparato militar de segurança e repressão da história, Jair Bolsonaro toma posse como presidente do Brasil. Em 8 de dezembro de 1967, o papa Paulo VI propôs a criação do Dia Mundial da Paz a ser celebrado todo dia 1º de janeiro. Porém, como conquistar um “Feliz Ano Novo” e Paz como fruto de justiça social, agrária, ambiental, urbana e com respeito aos direitos humanos fundamentais diante do cenário e contexto político, econômico, religioso e social que atravessamos: imensa dívida histórica com o povo negro, racismo institucional, ascensão do fascismo e igrejas com teologia da prosperidade? Com 54% de sua população negra, segundo o IBGE, o Brasil continua reproduzindo uma das maiores desigualdades sociais e raciais do mundo. Essa questão nos remete à história do povo negro no Brasil e ao filme ‘Chico Rei’.
Dirigido por José Eugênio Muller, o belíssimo Filme ‘Chico Rei’ narra a história de um negro, Rei no Congo, África, mas trazido como escravo para o Brasil em navio negreiro e que, após trabalhar muito forçadamente como escravo em Ouro Preto – Antiga Vila Rica -, em Minas Gerais, teria comprado sua alforria e a de muitos outros negros escravizados. Chico Rei trata-se de uma lenda, mas que inspira muitas reflexões e posicionamento diante da escravidão contemporânea que continua crescendo de mil maneiras. Óbvio também que o filme não pode ser assistido como se fosse uma narrativa histórica simplesmente.
Enquanto assistimos ao filme ‘Chico Rei’, podemos viajar imaginariamente pela história da escravidão no Brasil. Artisticamente o filme foi muito bem feito, com músicas inebriantes e cenas inesquecíveis com crueldade de arrepiar! O soar dos tambores e as danças do povo negro revelam uma mística invencível: a certeza de que nascemos livres e pela liberdade sempre lutaremos. Toda opressão suscitará lutas libertárias.
Segundo o filme ‘Chico Rei’, arrancados à força da Mãe África, onde nasceram livres, após serem laçados e capturados por jagunços, durante vários séculos, milhões de negros e negras, com argolas de ferro no pescoço e nos pés, eram empurrados para os navios negreiros, que eram navios para transporte de cargas, também chamados de ‘navios tumbeiros’. Nos navios negreiros, os/as negros/as escravizados/as eram amontoados/as nos porões e amarrados/as em grupos, em média 400 por cada navio. Nos porões superlotados, o mau cheiro imperava, pois, embora fossem grandes porões, o espaço para se movimentar era mínimo, pois quanto mais se superlotava os porões mais lucro se adquiria em cada viagem. Em porões escuros, os negros e as negras escravizados/as passavam literalmente e existencialmente por noites escuras, nas quais uns enlouqueciam, outros suicidavam-se, outros/as tantos/as eram jogados/as ao mar, mas muitos sobreviviam. Historiadores atestam que “conviviam no mesmo local – nos porões -, a fome, a sede, as doenças, a sujeira, os agonizantes e os mortos” que continuavam por muitos dias junto aos vivos, pois o pessoal da tripulação passava muitos dias sem descer aos porões. As fezes e a urina continuavam nos locais onde os negros eram amarrados nos porões.
Em alto mar, em meio a grandes tempestades, muitos negros/as escravizados/as eram jogados/as ao mar para evitar naufrágios. Negro que se rebelava era amarrado no mastro do navio e açoitado impiedosamente. Mulheres negras escravizadas eram estupradas por brancos da tripulação nos navios negreiros. Na costa brasileira, famílias eram separadas, homens eram levados para o Rio de Janeiro ou para São Paulo e as mulheres, vendidas na Bahia, por exemplo. Os negros escravizados eram vendidos em mercados como ‘peças’, mercadoria importada que poderia gerar lucro para seus mercadores brancos. Sacerdotes europeus que vinham juntos nestes navios, ofendendo ao Deus da vida, abençoavam essa tamanha injustiça, trazendo a religião europeia como embaixadora da “civilização” e da “modernidade.” Os negros escravizados eram submetidos a trabalhos forçados nos Engenhos da monocultura de cana e em áreas de mineração. Muitos não sobreviviam além de 7 anos de escravidão.
Com maestria poética, Castro Alves registrou no poema Navio Negreiro:
“Que quadro d’amarguras! / É canto funeral! … / Que tétricas figuras! […] Que cena infame e vil… Meu Deus! Meu Deus! Que horror! […] / Se o velho arqueja, se no chão resvala, / Ouvem-se gritos… o chicote estala. […] / Presa nos elos de uma só cadeia, / A multidão faminta cambaleia, / E chora e dança ali! / Um de raiva delira, outro enlouquece, […] / Senhor Deus dos desgraçados! / Dizei-me vós, Senhor Deus! / Se é loucura… se é verdade / Tanto horror perante os céus?”
Com a expansão do comércio de negros, muitas grandes empresas foram constituídas para traficar negros da África e vender no Brasil. O tráfico de escravos só foi proibido com a Lei Eusébio de Queiroz, em 04 de setembro de 1950, 38 anos antes da abolição formal da escravatura no Brasil. Sobre os/as negros/as escravizados/as se impingia a ideologia dominante que dizia que se trabalhassem muito poderiam comprar sua própria alforria, liberdade. Porém, na realidade, o caminho para se conquistar a liberdade era fugir e construir quilombos. Dandara e Zumbi demonstraram que esse era o caminho da libertação, assim como os quilombos na região de Ouro Preto.
Em Alagoas, o Quilombo dos Palmares, em 1670, contava com mais de 20 mil pessoas e resistiu por mais de 100 anos ao sistema escravista. Recentemente, os 11 Acampamentos do MST, em Campo do Meio, MG, em homenagem à resistência quilombola no estado de Minas Gerais, batizou o nome da sua luta de “Quilombo Campo Grande”, em que cada Sem Terra é outro Zumbi e outra Dandara. O Quilombo dos Palmares é considerado um grande símbolo nacional de luta, mas é importante também ressaltar que a antiga Confederação dos Quilombos Campo Grande vem sendo considerada por historiadores ainda muito maior do que foi o Quilombo dos Palmares, tendo sido composta por, pelo menos, 27 núcleos de resistência, espalhados por territórios que abrangem hoje, em Minas Gerais, o Centro-Oeste, o Alto São Francisco, o Sudoeste e o Triângulo Mineiro e , em 1752, segundo o pesquisador Diogo de Vasconcelos, chegou a possuir vinte mil habitantes. Os líderes quilombolas Ambrósio e Pedro Angola da Confederação do Quilombo Campo Grande devem ser também lembrados por todos da luta. Na segunda metade do século XVIII, houve várias investidas repressivas que visavam desbaratar os principais núcleos quilombolas em Minas Gerais. A perseguição e a matança de negros escravizados foi grande e hedionda. O capitão do mato, Bartolomeu Bueno Prado, fez questão de trazer para mostrar ao governador da capitania de Minas Gerais 3.900 pares de orelhas de negros escravizados assassinados. Apesar da intensa perseguição, muitas pessoas quilombolas conseguiram fugir para as matas, pois a existência de rotas de fuga antes da chegada das milícias saqueadoras e repressivas era uma forte estratégia de resistência negra. A história oficial divulgou o extermínio total dos quilombolas, da mesma maneira que dizia não haver mais indígenas nas matas e nas vilas! Muitos indígenas e quilombolas se mantiveram na invisibilidade como forma de resistência ao sistema repressor e ao preconceito racial e social. Todavia, atualmente muitas comunidades remanescentes de quilombolas que estão se organizando e lutando por seus direitos em Minas Gerais têm a sua raiz na belíssima história dessa grande Confederação de Quilombos Campo Grande.
Uma história que foi por muito tempo escondida pelos poderosos e que temos o dever de revelar e de divulgar! Mas, sobretudo, entender que a escravidão não acabou. O que se vive atualmente no Brasil e na América Latina, com os inúmeros retrocessos e perdas de direitos conquistados pelo povo é uma forma concreta de manter o povo na escravidão. Não percamos a memória das lutas de resistência! Sobretudo a memória das nossas ancestralidades, de Dandara, de Zumbi, de Chico Rei – Ocupação Chico Rei em Ouro Preto atualmente -, dos povos indígenas, de quem resistiu ontem e resiste hoje. Assim, o Ano de 2019 se abre convidando toda a classe trabalhadora e camponesa, do campo e da cidade, a dar as mãos. “Ninguém largue a mão de ninguém!”, principalmente a mão dos povos indígenas, quilombolas, LGBTTQIs[2], pessoas em situação de rua, jovens de periferia; enfim, todos os injustiçados. Coragem e perseverança nas lutas de resistência e por conquista de direitos. Os opressores são poderosos, mas contraditórios e, por isso, têm pés de barro quebradiços.
Assista ao filme ‘Chico Rei’ e a uma Reportagem em vídeo sobre Ocupação Chico Rei em Ouro Preto, nos links, abaixo.
1 – De Galanga no Congo a Chico Rei em Ouro Preto
2 – Ocupação Chico Rei/Ouro Preto/MG: O direito à moradia com segurança e dignidade – 04/7/2018
Belo Horizonte, MG, 1º/01/2019.
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com– www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queers e Pessoas Intersex.