Comunidades Quilombolas em Minas Gerais – Resiliência, luta e assertividade de um Povo

20/11/2019

Pablo Matos Camargo

As Comunidades Quilombolas de Minas Gerais resistem e lutam para se manterem vivas, reconquistar os seus territórios e terem uma vida digna e cidadã, onde o respeito e a valorização de sua identidade sejam naturalizados.
Minas Gerais recebeu um grande contingente negro no século XVIII e XIX quando foi palco de um grande movimento econômico, político e social com as descobertas de ouro, diamante e outras minérios. Isto fez com que um grande fluxo de escravos negros oriundos da África e de outras regiões da América Portuguesa, sobretudo do Nordeste. Todo este movimento fez com que diversos grupos afro-brasileiros se organizassem em torno de um território, de um modo de vida e de trabalho ou de uma organização religiosa. Várias comunidades negras surgiram (escravos fugidos e de forros) nestes dois séculos. Findada a escravidão em 1888, a população afro-brasileira foi alijada do trabalho, das terras (a lei de terras de 1850 foi totalmente excludente para a população negra), da educação e tiveram que resistir de forma autônoma para sobreviver e exercer sua alteridade perante a sociedade que impunha uma ordem outra que não reconhecia este grupo no novo imaginário republicano, que se pretendia homogêneo espelhado nas sociedades europeias. O racismo e o preconceito para com toda a comunidade afro-brasileira são acirrados de forma perversa.
Até o ano 2000 eram conhecidas 66 comunidades negras de origem quilombola no Estado de Minas Gerais. Em todo o território Brasileiro, até esta data, a organização política e identitária destes grupos ainda eram muito incipientes. Houve no início dos anos 2000 várias iniciativas de ONGs, Universidades e do próprio poder público (marcos legais e nova legislação) de promoção dos conceitos e direitos das comunidades negras. Estas novas “identidades” coletivas são geradas em circunstâncias de conflitos ou de oportunidades de acesso a políticas públicas por exemplo. A semântica da palavra quilombo carrega consigo a força da resistência e da cultura afro-brasileira. O conceito quilombo vai muito além dos antigos grupos descendentes de escravos fugidos dos períodos colonial e imperial. Ele também engloba, além das comunidades rurais, grupos urbanos que se auto definem como comunidades negras e pedem o registro de seu espaço como “território negro”.
Esta população negra, iniciou um processo de identidade e de organização que culminou em número superior a aproximadamente quinhentas comunidades que se reconhecem como quilombolas. Este movimento e articulação política se deu com um grande apoio do Projeto Quilombos Gerais, realizado pelo Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva – CEDEFES em articulação com outras entidades e com o próprio movimento de base. Esta população quilombola que vive em Minas Gerais é em grande parte oriunda do povo banto que habita as regiões Sul e Sudeste do continente africano. Prova disso é que os dialetos documentados em Minas Gerais são de matriz africana, como é o caso de comunidades em Diamantina, Serro e no município de Bom Despacho onde foram encontradas raízes linguísticas de origem banto.
Há no Estado de Minas Gerais diversos campos negros, ou seja, regiões de grande concentração de comunidades quilombolas, como no Médio Jequitinhonha, no Vale do São Francisco, nas antigas regiões mineradoras do Estado, entre outras. Outros campos negros foram formados a medida que a população migrava para os centros urbanos e outras áreas de pungência econômica. A distribuição das comunidades quilombolas mostra grande concentração nas regiões Norte de Minas, Jequitinhonha e Metropolitana de Belo Horizonte, onde se encontram mais de 70% do seu total.
A realidade das comunidades quilombolas de Minas Gerais não difere da de outros Estados do Brasil. A falta de fomento de políticas públicas ou o desconhecimento pelos quilombolas dos projetos de governo que podem beneficiá-los impedem e travam a sustentabilidade desses grupos em seus locais tradicionais. A violência em relação à disputa pela terra é o principal problema das comunidades quilombolas do estado. A maioria dessas comunidades perdeu seus territórios históricos por grilagens que datam aproximadamente da década de 60, 70 e 80 do século XX. Há também vários casos conflituosos relacionados a construções de hidrelétricas, instalações de grandes mineradoras, criação de parques ou reservas biológicas, implantação de siderúrgicas de eucalipto, entre outros exemplos – todos agentes explícitos que comprometem a sobrevivência dos quilombolas e de outros grupos e populações da área rural. A conjuntura atual dificultou o acesso ao direito ao território tradicional pelas comunidades. O marco legal ainda é muito frágil, há o artigo 68 da Constituição Federal, o Decreto 4.887, de 2003; a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), onde o Brasil é signatário e institui a auto declaração das comunidades como quilombola e a consulta sobre qualquer intervenção no território; o Decreto 6.040, de 2007 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais; entre outras legislações correlatas. Em 1998 foi a primeira vez que o termo quilombola aparece na legislação de forma positiva. Somente em 2003, com o Decreto 4887 é que o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição é regulamentado, mas mesmo assim, o Decreto ainda é questionado por parlamentares que não concordam com o acesso dos quilombolas ao território tradicional.
A única comunidade que teve o território/terra delimitado e regularizada como território quilombola é a Comunidade de Porto Coris. A comunidade, localizada no município de Leme do Prado, no médio Jequitinhonha, apesar de ser a única do Estado a possuir o título coletivo de remanescente de quilombos, teve seus moradores deslocados das margens do rio Jequitinhonha para o alto de uma chapada, pois a área tradicional do quilombo foi alagada pelo lago do empreendimento hidrelétrico de Irapé. Há atualmente mais de cem processos em andamento no INCRA, que é o órgão responsável para a demarcação fundiária dos territórios quilombolas. A burocracia e a lentidão do andamento de todos os processos fazem com que o direito ao território das comunidades quilombolas de Minas Gerais não seja efetivado e assim, os conflitos tendem a se acirrar a disputa destes espaços. Existe uma correlação de força desigual no cenário político, onde um grupo que detém uma força institucional e econômica que impede que as terras sejam tituladas, pois assim ela se torna inalienável e coletivas, saindo do mercado formal de terras. Há uma grande disputa econômica para instituir latifúndios agropecuários, plantações de monocultura, atividades minerárias e de geração de energia. Nas áreas urbanas e peri urbanas há ainda a especulação imobiliária. A pressão nestes territórios é muito grande, pois, mesmo em terras diminutas, o que resistiu da grilagem, que foram regiões entre fazendas, nas terras mais distantes e de difícil acesso e nas periferias dos centros urbanos, são locais que pelo uso tradicional da terra, ainda possui biodiversidade, água, terras férteis
Há diversos processos já bem encaminhados, como os dos dois grandes quilombos do Norte de MG, os Gurutubanos e o Brejo dos Crioulos. Estas duas grandes comunidades tiveram seus territórios recortados por fazendas e empreendimento. São lutas históricas que tem um grande significado para todo o movimento. Estes dois grandes grupos resistem em seus territórios e no entorno dele, visando a reparação histórica dos territórios tradicionais. Há diversos casos emblemáticos como os quilombos do Serro e de Paracatu que lutam contra a sana da mineração que polui o entorno e destrói todo o meio e a terra ancestral, onde a cultura e o modo de vida das comunidades foram construídos. A especulação imobiliária também pressiona de uma forma violenta as comunidades quilombolas que se encontram nas regiões urbanas. Em Belo Horizonte, a luta dos Luízes, de Mangueiras, do Manzo Ngunzo Kaiango e Vila Teixeira, são icônicas e significativas na história política recente das lutas sociais em Minas Gerais.
O grande problema das comunidades quilombolas é a questão fundiária que não se resolve e a efetivação do direito ao território, que adormece no cipoal burocrático.
A questão cultural das comunidades quilombolas também sofre um grande abalo com esta desestruturação social que a falta de terras e de geração de renda acarreta. Minas Gerais é um estado riquíssimo em diversidade cultural entre os quilombolas. A religiosidade, a música, as danças, o dialeto de matriz africana, o artesanato, o trabalho de mutirão, entre outras expressões são a base da existência desses grupos diferenciados etnicamente.
As igrejas neopentecostais também exercem grande influência na cultura quilombola, uma vez que impõem valores que não se encaixam com o viver dessas populações. Nas comunidades do Baú e do Ausente, no município de Serro, a igreja proibiu os adeptos de frequentarem as festas de Santo, de participarem da Guarda de Catopés e de conversarem em um dialeto de origem Bantu.
A questão da degradação ambiental influi bastante na vida de todas as pessoas, e dos quilombolas também. Práticas comuns como a pesca, a caça, a cata de raízes e frutos, entre outras atividades que transitam nas esferas da cultura, da subsistência e da sociedade, ficam comprometidas. A inexistência de uma legislação estadual sobre as terras quilombolas ajuda na morosidade para resolver este problema. A problemática da terra origina-se na demanda pelos territórios quilombolas, seja por pressão imobiliária, por agricultores, por empresas, por barragens, como o caso da Usina de Irapé, que não (re) conhecem o valor étnico histórico das áreas dos quilombos e nem mesmo a cultura desses povos, que trazem consigo o som de tambores e a arte de danças tradicionais dos povos de origem Bantu, Nagô, entre outros originários do continente africano. As apropriações do espaço original mediante a inserção de atividades econômicas, gradativamente, tendem a ocasionar a redução das terras das comunidades quilombolas acarretando a ausência de autoestima, a migração e a falta de espaço para produção. Ainda assim, muitas comunidades estão se organizando, reconhecendo a sua diferença étnica e valorizando a sua cultura e forma de viver.

A Federação Quilombola de Minas Gerais – N`Golo

Mesmo após 131 anos de abolição da escravidão as comunidades negras ainda convivem com a exclusão social e política. A invisibilidade social do movimento quilombola, como ator social, foi agravada pela luta desarticulada em contextos locais.
No entanto, em 2005, Minas Gerais passou por um momento histórico protagonizado por representantes de diversas comunidades quilombolas. A Federação Quilombola de Minas Gerais foi criada, que tem como objetivo agregar e organizar as comunidades para o enfrentamento de seus problemas sociais, econômicos e culturais. A organização para criar a Federação começou em 2003, com várias atividades que proporcionaram a discussão e mobilização dessas comunidades por entidades sociais e lideranças quilombolas. A partir dessa mobilização, acompanhada de uma discussão sobre a identidade quilombola e seus direitos, ocorreu, em novembro de 2004, o I Encontro de Comunidades Negras e Quilombolas de Minas Gerais, como territórios culturais, e o Seminário de Identificação e Diagnóstico para o Etnodesenvolvimento, em novembro de 2004, em Belo Horizonte. Esse evento, que reuniu representantes de 78 comunidades quilombolas do Estado, proporcionou o encontro das lideranças das comunidades quilombolas com autoridades governamentais da esfera federal (Fundação Cultural Palmares, Ministério do Desenvolvimento Social, Incra), estadual (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – Consea/MG, Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais – Idene), municipal (Prefeitura Municipal de Belo Horizonte) e organizações não-governamentais (Cedefes, Instituto Fala Negra, Sindicatos de Trabalhadores Rurais).
Por meio das atividades durante o encontro, revelaram-se várias violações aos direitos básicos vividos por essas comunidades, sendo um dos grandes problemas apontados a disputa pela terra. Foram relatados pelas lideranças quilombolas presentes inúmeras questões que perpassaram desde a problemática da sobreposição de territórios com a criação de unidades de conservação em áreas de comunidades tradicionais, a invasão dos territórios tradicionais pelo avanço desenvolvimentista até a perda gradativa da identidade e a ausência de informações quanto aos seus direitos.
Como resultado, as 78 comunidades quilombolas presentes no I Encontro Estadual decidiram pela construção de uma organização que as represente e para isso foi constituída uma Comissão Quilombola Provisória com pessoas eleitas por região.
Com o apoio do Consea-MG, do Cedefes e de outras entidades, esse grupo realizou duas reuniões onde ficou definido que a organização a ser criada para representá-los deveria ser uma Federação de Comunidades Quilombolas e a criação desta se daria em uma Assembléia que possibilitasse a ampliação da participação de outros representantes. A Assembléia se deu nos dias 17, 18 e 19 de junho, na Escola Sindical 7 de Outubro, Belo Horizonte. Durante os três dias, a Comissão Provisória da Federação Quilombola reuniu representantes de 76 comunidades quilombolas do Estado de Minas Gerais, totalizando aproximadamente 170 participantes.
No dia 17 de junho, a Comissão Provisória abriu a Assembléia relatando a história da organização dos quilombolas em Federação. Diversos representantes de comunidades quilombolas expuseram a situação atual como vivem: A grilagem das terras, a parcimônia de políticas públicas, a falta de fontes de geração de renda nos locais, entre outros.
No último dia, os grupos expuseram os planejamentos de ações e houve a eleição por aclamação por haver uma chapa única. A Federação Quilombola será uma entidade civil que representará política e juridicamente as comunidades remanescentes de quilombos mineiras em prol do desenvolvimento sustentável e do fomento ao funcionamento das Associações Quilombolas locais. Além disso, a formação de uma rede de comunidades através da Federação fortalecerá a reconstrução da identidade deste movimento, dará visibilidade social à existência desse grupo étnico que possui características e contextos históricos particulares que devem ser considerados quanto à implementação de políticas públicas diferenciadas.
Nos últimos dois anos, as ações e mobilizações desenvolvidas confirmaram que Minas Gerais possui uma presença expressiva de comunidades Quilombolas invisíveis à ação oficial. O contexto do ano de 2005 para as comunidades quilombolas de Minas Gerais foi positivo no sentido da articulação e organização dessas populações no intuito de reivindicar seus direitos. Mas, em termos de conquistas políticas e sociais, a realidade de pobreza, de abandono do poder público e do racismo que os quilombolas sofrem, não houve avanço nenhum. A morosidade do governo em regularizar e titular as terras ainda é o grande empecilho para o avanço e o reconhecimento dos direitos quilombolas.
Após fundada e organizada a Federação das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais realizou outros diversos Encontros que envolveram e articularam com outros órgãos governamentais, não governamentais e outra gama de comunidades quilombolas que ainda não estavam envolvidas neste processo político. Os Encontros aconteceram em Belo Horizonte e em cidades no interior do Estado próximo às comunidades, como em São João da Ponte e Itabira. Cada Encontro pautava as ações da Federação Quilombola e das lideranças comunitárias durante determinados períodos. Hoje, em 2019, a Federação Quilombola se tornou uma referência para a luta quilombola. Hoje há as Comissões Regionais da Federação divididas por regiões. O CEDEFES continua dando apoio a articulação política e organizacional da Federação através do Projeto Quilombos Gerais.
A conjuntura política atual vive um momento muito desfavorável em relação a efetivação das políticas públicas em relação aos quilombolas. Por isto a organização e articulação é muito importante nestes períodos de ameaça e ruptura de direitos. Há uma grande demanda social, estética, política e humanitária represada no que tange aos direitos das comunidades quilombolas no Brasil e em Minas Gerais.
As conquistas, a História e a Luta das Comunidades Quilombolas faz parte de Nossa Alma e precisa ser alimentada e fortalecida sempre! O 20 de Novembro precisa ser lembrado e vislumbrado como uma ideia que está presente nos corações e mentes de tod@s!
Parabéns a Federação das Quilombolas de Minas Gerais – N`Golo pelos 15 anos de sonhos, conquistas e esperança!!
Bibliografia: Comunidades quilombolas de Minas Gerais no séc. XXI: história e resistência. Belo Horizonte: CEDEFES, 2008.

 

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