30/08/2023
A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) enviou ofício ao Estado brasileiro exigindo que medidas sejam tomadas com urgência para que a segurança nas comunidades quilombolas e a titulação dos territórios sejam prioridades. O documento informa que é preciso haver uma revisão de políticas para que não haja violação de direitos humanos nos quilombos, como vem acontecendo há centenas de anos.
O ofício também cobra respostas sobre o assassinato de Maria Bernadete Pacífico – a mãe Bernadete -, de seu filho, Flávio Gabriel Pacífico dos Santos – o Binho do Quilombo – e a outras situações de violência nas comunidades quilombolas.
O documento, construído por coordenadores e coordenadoras da CONAQ, foi enviado ao Governo Federal, incluindo o presidente Luís Inácio Lula da Silva, e a vários ministros e ministras, além de governadores da Bahia, Maranhão e Pará – estados com maiores índices de homicídios contra lideranças quilombolas nos últimos 10 anos.
No ofício, a CONAQ chama atenção para a existência de um contexto centenário de violações graves das pautas da população quilombola, o que resulta na intensificação da violência diretamente relacionadas com ações de terceiros – pessoas não quilombolas – incluindo entes estatais, que exploram o trabalho, as terras e a natureza dos territórios quilombolas.
No documento as lideranças quilombolas afirmam que “a trágica morte de Mãe Bernadete expõe a gravidade de um cenário marcado por atraso crônico dos processos de titulação; falta de medidas adequadas de proteção; impunidade crônica no tratamento de crimes dos quais quilombolas são vítimas, violações ao direito de consulta prévia livre e informada; falta de fiscalização eficaz sobre crimes e ilícitos ambientais praticados por invasores e empresas nos territórios quilombolas; avanço ilegal de empresas, projetos de infraestrutura, empreendimentos imobiliários sobre os quilombos; comprometimento de alternativas de desenvolvimento sustentável e falta de uma política de segurança cidadã para a proteção dos territórios quilombolas”.
A CONAQ exige, dos governantes federais e estaduais, o cumprimento de suas responsabilidades, que incluem a garantia de direitos para que as famílias quilombolas possam viver livres, com segurança e justiça.
Entre as medidas urgentes pontuadas pela CONAQ como prioritárias para superar o cenário atual estão:
Leia o ofício na íntegra e saiba todas providências exigidas:
OFICIO – CONAQ – segurança e titulação dos quilombos
Além das exigências, o ofício aponta situações que contribuíram para o assassinato de Mãe Bernadete, como a demora na titulação dos territórios, a falta de medidas adequadas de proteção às lideranças, a impunidade nos casos de assassinatos de quilombolas, a falta de fiscalização sobre crimes ambientais praticados por invasores e empresas nos quilombos, o avanço ilegal de empresas, projetos de infraestrutura, empreendimentos nas comunidades, a falta de política de segurança para a proteção dos territórios quilombolas, entre outros.
Pesquisas conduzidas pela CONAQ nos territórios quilombolas mapearam os principais tipos de ameaças e situações de violência que comprometem o trabalho e põem em risco a vida das lideranças quilombolas.
São exemplos de problemas enfrentados por lideranças quilombolas: insegurança na propriedade das nossas terras devido à omissão, demora e hostilidade do Estado nos processos de titulação; conflitos com as pessoas que têm interesse no nosso território (fazendeiros, latifundiários, empresários, etc.); falta de políticas públicas (saúde, educação, alimentação adequada, etc.); invasões do território por terceiros com desmatamento e outros crimes ambientais; grilagem das nossas terras, sobreposição de cadastro ambiental rural de terceiros sobre os nossos territórios e vendas irregulares de propriedades particulares dentro dos quilombos; proibição de circular livremente no território devido aos conflitos e restrições por vizinhos e invasores; intolerância e racismo religioso dentro das comunidades; avanço de empreendimentos (mineração, construção de portos e estradas, etc. entre outros.
Os problemas expõem as comunidades quilombolas a situações de constantes ameaças e de mortes em casos que não são solucionados. Conforme o ofício, sem as providências exigidas as comunidades quilombolas continuarão a viver no estado de denegação de direitos e violência.
“Nós queremos viver em paz, com liberdade e justiça. Não temos mais tempo para esperar centenas de anos pela titulação de nossos territórios. Já se passaram séculos e o racismo continua a estruturar as relações de poder na sociedade e no Estado, em todas as esferas de poder e conduzindo à morte do nosso povo. O Estado deve cumprir seu papel e garantir nossos direitos para que possamos viver livre e com justiça”, afirma o documento.
Vercilene Francisco Dias, advogada e Coordenadora do jurídico da CONAQ, explicou que o ofício trata de reivindicações antigas da CONAQ, pontos que o Estado brasileiro não tem dado a atenção necessária.
“O documento nada mais é do que o que a gente vem reivindicando há muitos anos, que é a titulação de territórios quilombolas para a garantia da segurança territorial. Para além da titulação, é preciso garantir políticas públicas para a população quilombola. Políticas de saúde, de educação, de segurança alimentar, de território. É importante garantir as políticas essenciais para a sobrevivência e igualdade de direitos aos quilombolas como cidadãos brasileiros”, disse.
Apesar do direito à titulação dos territórios quilombolas ter sido reconhecido pela Constituição Federal há mais de 34 anos, se o Estado brasileiro seguir o atual ritmo de titulação dos territórios quilombolas serão necessários centenas de anos para que todos os cerca de 6 mil quilombos sejam regularizados.
Conforme demonstrado pelo Censo Quilombola de 2022, apenas 12,59% da população quilombola vive em territórios oficialmente delimitados. São, ao menos, mais de 1 milhão de pessoas vivendo em situação de insegurança territorial.
Vercilene explicou que somente a titulação dos territórios assegura, de fato, o direito à vida de quilombolas em todo o Brasil e que dificultar ou impedir as comunidades quilombolas de acessar esses direitos contribui, de forma decisiva, para o atual cenário de violência.
“As políticas só são garantidas efetivamente com a titulação dos territórios, com a gestão territorial autônoma, feita pela própria comunidade, com apoio e segurança dos governos federais, estaduais e municipais. A titulação feita pelo INCRA, que garante a desintrusão nos territórios é primordial. Para que as comunidades possam utilizar livremente os recursos existentes nos territórios”, afirma Vercilene.
O ofício afirma às autoridades que a situação das ações judiciais que têm impedido ou atrasado as titulações dos territórios quilombolas deve ser revista, com a criação de mecanismos para acelerar os trâmites, assegurando o respeito aos direitos constitucionais do povo quilombola.
Devem ser definidos níveis de urgência e prioridade, considerando a situação de violência nos quilombos e as ameaças enfrentadas por defensoras e defensores quilombolas. Por isso a CONAQ exige que o INCRA dê “absoluta prioridade para titular integralmente o território quilombola de Pitanga dos Palmares, em até um ano, de forma a garantir uma resposta digna em face da violência cometida contra Dona Bernadete”, afirma o ofício.
É necessário uma política de Estado, com planos de ação e metas concretas a serem alcançadas anualmente no que toca à regularização dos nossos territórios. Esse plano deve assegurar, a nível federal e no âmbito dos estados, estrutura administrativa e alocação adequada de recursos para cumprir metas concretas que devem ser estabelecidas.