A concepção da capital mineira, planejada no fim do século 19, foi um processo marcado pela exclusão de parte dos moradores. Assim, houve uma tentativa de apagamento dessas histórias, como a do Largo do Rosário, onde a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos do Arraial do Curral del-Rei existia.

“Quando Belo Horizonte vai ser construída, a Comissão Construtora destrói tudo que está na região hoje considerada central. Alguns moradores foram indenizados, mas o valor não permitia comprar uma nova área. Assim, a população negra perdeu tudo”, conta o historiador da Diretoria de Patrimônio Cultural e Arquivo Público da Fundação Municipal de Cultura da Prefeitura de BH, Marco Antônio Silva.

A partir disso, algumas comunidades se estabeleceram à margem da Avenida do Contorno. Entre elas, as quilombolas, que preservam seus costumes, em contexto urbano.

Ser quilombo

Durante os periodos colonial e imperial, os quilombos eram refúgios e locais de resistência para negros escravizados. Tanto tempo depois, esses espaços se tornaram a herança da busca pela liberdade, caracterizados pela negação do sistema escravista em um movimento de resistência e luta social, ainda necessário.

Até 1988, as comunidades quilombolas eram consideradas organizações criminosas. Mas o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), da Constituição Federal, ressignificou a ideia, reconhecendo os espaços de resistência em que a população busca a efetivação da cidadania.

detalhe do Quilombo Souza, no Bairro Santa Teresa, Regiao Leste de BH

Quilombo Souza, no Bairro Santa Teresa, Regiao Leste de BH

Leandro Couri/EM/D.A Press

 

Formadores de uma identidade coletiva de importância histórica, as comunidades quilombolas atuais buscam celebrar o legado deixado pelos seus antepassados. Mas esse processo está além do simbolismo. Mesmo em contexto urbano os espaços se estabelecem também como um sistema político, econômico e religioso alternativo à sociedade abrangente.

A certificação fornecida pela Fundação Palmares assegura a preservação dos valores culturais e habitacionais do quilombo. Visando políticas igualitárias e inclusivas para o grupo. No entanto, ser quilombo é um processo de autorreconhecimento.

Luízes

O Luízes fica na Vila Maria Luiza, onde atualmente encontra-se o Bairro Grajaú, Região Oeste de BH. A origem da comunidade, que vem de uma linhagem de lideranças femininas, é marcada ao final do século 19, antes mesmo da fundação da capital.

No terreno com aproximadamente 2,3 mil metros quadrados encontram-se 30 casas, onde moram 80 pessoas, de acordo com os últimos dados divulgados pela Prefeitura de Belo Horizonte (PBH). Eles descendem do comerciante portugês e proprietário de escravos Manoel Luiz, que casou-se com Ana Apolinária, escrava amasiada de Manoel. Seus filhos passaram a se identificar com o sobrenome Luízes.

Esse quilombo foi o primeiro a ser certificado na capital mineira pela Fundação Palmares, em 2005. E, em 2017, passou a ser reconhecido como Patrimônio Cultural de Belo Horizonte.

Mangueiras

Quando Arão Reis programou Belo Horizonte, o quilombo Mangueiras já estava na segunda geração de pessoas com mais de 100 anos vivendo no território. A comunidade, originalmente constituída pelo casal de lavradores Cassiano José de Azevedo e Vicenza, se estabeleceu próximo ao município de Santa Luzia, no quilômetro 13,5 da MG-20. Atualmente, abriga aproximadamente 65 pessoas, distribuídas em 17 moradias, em área de 18 mil metros quadrados, repleto de verde.

Esse território foi adquirido por Maria Bárbara de Azevedo em meados do século 19. Vasto em fauna e flora, o Mangueiras inicialmente fornecia insumos para o Mercado Central e, hoje, trabalha pela sustentabilidade dos demais quilombos. Além disso, a comunidade busca manter as tradições herdadas, transferindo para os descendentes.

“Antes de colocar os nossos filhos na escola, eles passam por uma educação quilombola, que é o processo de tomar bença e dialogar também com a escola para a escola saber receber esse aluno”, explica Ione Maria de Oliveira, rainha da Guarda de Congo Estrela do Oriente.

Certificado pela Fundação Palmares em 2006 e reconhecido como Patrimônio Cultural da Cidade em 2017, o quilombo ainda enfrenta dificuldades para preservar a área que agora encontra-se em contexto urbano. “Aqui nós preservamos, mas convivemos com um monte de esgoto virado para o lado da nossa nascente, mas nós não podemos deixar que polua”, afirma.

Manzo Ngunzo Kaiango

As precursoras da comunidade Manzo Ngunzo Kaiango migram de Ouro Preto em 1954, mas só em 1970 houve a identificação como comunidade quilombola, com o terreno adquirido por sua matriarca, Efigênia Maria da Conceição. No início, usavam o nome Senzala de Pai Benedito, por desejo do Preto Velho Pai Benedito, mentor espiritual da matriarca.

Quando se estabelece no Bairro Santa Efigênia, a organização ressaltou sua expressão religiosa, seguindo as tradições de matriz africana. Em 2007, o Manzo Ngunzo Kaiango foi certificado pela Fundação Palmares.

“As senzalas têm pertencimento de uma propriedade colonial. Quem morava numa senzala, na verdade morava dentro de um espaço de propriedade de um colonizador. Quando a gente entende que nós somos de uma comunidade quilombola, a gente entende que esse território de pertencimento é nosso e não do Estado”, explica Makota Kindoiale.

Souza

Já no Bairro Santa Tereza, na Região Leste de BH, está o quilombo Souza, também conhecido como Vila Teixeira Soares. Se estabeleceu em BH em 1909, nos números 985, 999 e 1.005 da Rua Teixeira Soares, inicialmente com a cultura ligada à plantação.

A certificação, conquistada em 2019, protegeu a comunidade de uma briga travada na Justiça por posse territorial, dias antes de uma ordem de despejo. “Esse movimento de colocar a boca no mundo e correr atrás dos nossos direitos, é uma questão de resistência, luta e proteção ancestral. Assim, conseguimos nossa permanência, contando também como uma rede de apoiadores e proteção”, afirma Glaucia Cristina Martins de Araújo Vieira, uma das lideranças do quilombo-família Souza.

O território, com registro de compra datado de 1923, foi conquistado por Petronillo de Souza, que foi para BH vindo de Além Paraíba, na Zona da Mata. A princípio, a área se estendia até a Rua Salinas, mas conforme o tempo foi passando, a comunidade perdeu boa parte de seu terreno. “A gente tem que lembrar que nós não estamos em um território que pertence à cidade e sim a cidade que cresceu e foi nos engolindo. Já estávamos aqui”, destaca Glaucia.

Hoje, o terreno de 2.538 metros quadrados abriga 14 casas, com 33 moradores, unidos pelos laços familiares em diferentes graus de parentesco. Apesar da diversidade dentro da comunidade, os Souza mantêm as tradições afro-brasileiras por meio de festas, comidas e danças e com devoção a Cosme Damião.

Irmandade Os Carolinos

O último a ser certificado em BH foi o Quilombo Irmandade Os Carolinos, no Bairro Aparecida, Região Noroeste de BH, em 2022. Descendentes de Francisco Carolino, também conhecido como Chico Calu, fundador da Guarda de Moçambique e Congo Sagrado Coração de Jesus, como devoção à Nossa Senhora do Rosário, em 1917.

Mais tarde, em 1937, Luiz Carolino, filho de Calu, migra com a Irmandade Os Carolinos do município de Contagem para consolidar-se em BH. Hoje, na comunidade formada por 50 pessoas, as tradicionais festividades do congo e a dança afro-brasileira são destaques e mantêm vivo o vínculo dos povos com sua matriz.

“Somos quilombo, um modo de vida e cultura de comunidades formadas por negros escravizados que fugiram da escravidão e resistiam pela liberdade. Assim nos caracterizamos, por nossos antepassados e por mantermos as tradições”, diz Nilson Pereira da Silva, Capitão-mor da Irmandade.

Mattias: à espera da salvaguarda

Como consequência do apagamento de histórias sofrido pelos povos negros, o quilombo Familia Mattias demorou um pouco mais para se reconhecer e reivindicar seus direitos à União. Os remanescentes de escravizados pelo mosteiro de Macaúbas chegaram em Belo Horizonte em 1924, no período da expansão ferroviária e para a construção da capital.

“Fui convidada como pesquisadora para ouvir a Makota Kindoiale, do Manzo. Quando ela começou a contar a história dela, identifiquei a minha história”, relembra Luciana de Souza Matias, liderança no quilombo.
Assim começou o processo de luta da comunidade, que encontra provações contra os vizinhos e até mesmo na Justiça, para estabelecer o domínio do território no Santa Tereza. “Descobri toda essa ligação e tentei encaixar as peças do quebra-cabeça de uma ancestralidade e de uma história que é de gente preta. Por isso, é difícil. Por conta do processo colonial, nos negaram nossa história”, afirma a professora da rede municipal de BH.

Foto de Luciana de Souza Matias, liderança no quilombo Matias, em BH

Luciana de Souza Matias, liderança no quilombo Matias, em BH

Mannu Meg/EM/D.A Press

 

Depois desse processo de autorreconhecimento, o Mattias já se identifica como comunidade quilombola, pela trajetória dos ancestrais e pela preservação das tradições afro-brasileiras. Agora, aguarda a salvaguarda do direito a existir na cidade em processo de certificação pela Fundação Palmares. Até o fechamento desta reportagem, faltava apenas a homologação do certificado, pois toda a documentação já foi aprovada.