22/09/2020
Pela primeira vez, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) criou uma plataforma para reunir e apoiar candidatos; no pleito de 2016, o grupo representava apenas 0,35% dos inscritos no TSE; ascensão de mulheres e representações coletivas são tendências
O avanço das invasões em terras indígenas, o desmatamento, o assédio a órgãos públicos como a Fundação Nacional do Índio (Funai) por ruralistas como Nabhan Garcia e a crise causada pelo novo coronavírus são alguns dos cenários que preocupam etnias em todo o país. Nessa conjuntura de ameaças, candidatos indígenas começam a se mobilizar pelo país para as eleições municipais deste ano.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) reuniu virtualmente, no dia 11, centenas de pré-candidatos indígenas e apresentou uma plataforma de apoio a candidaturas coordenada pela Mídia Ninja. O objetivo é reunir os pré-candidatos indígenas e de outros setores progressistas e apoiá-los com encontros e cursos de formação em política, ferramentas de comunicação e outras estratégias que auxiliem na construção de campanhas democráticas e diversas.
Nas eleições municipais de 2016, o número de candidatos indígenas correspondia a 0,35% do total, segundo balanço do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Dos 496,9 mil candidatos à eleição daquele ano, apenas 1,7 mil eram indígenas. Com a preparação de pré-candidaturas, a Apib espera que esse número de candidatos a vereadores, prefeitos e vice-prefeitos seja muito maior nas eleições municipais de 2020.
A participação ativa na política é vista como uma das frentes para impedir novos retrocessos e garantir a defesa dos direitos indígenas. “Via política partidária, a gente tem uma estratégia de defender os nossos direitos que podem ser usurpados e excluídos na calada da noite”, afirma Mário Nicácio Wapichana, que concorre à vice-prefeitura do município de Bonfim, a 126 quilômetros de Boa Vista, capital de Roraima. “Apesar de muitas pessoas terem um trauma por conta dos escândalos de corrupção”.
O candidato afirma que a estratégia pública da Apib de preparar indígenas para a disputa de eleições é algo inédito. “A Apib e a Coiab sempre fizeram uma divulgação meio tímida da participação em eleições”, afirma. “A iniciativa da Apib hoje é uma estratégia de enfrentamento para poder garantir os direitos dos povos indígenas. É uma estratégia muito importante para os pré-candidatos a vereadores, prefeitos e vices. É dizer que eles não estão sós”.
Em nota, a organização demonstra preocupação com o assédio de diversos partidos políticos a indígenas e pretende, por meio de reflexões e análises, evitar que possíveis candidatos sejam “vítimas de manobras politiqueiras, enganações e falsas ilusões que em muitos casos se reverteram contra nós”. “Mesmo prejudicados pelo distanciamento social”, diz a Apib, ela vê como importante “iniciar discussões no âmbito local e regional sobre a necessidade de lançar cada vez mais indígenas candidatos e candidatas para a disputa nessas próximas eleições”.
A Apib destaca a importância da eleição de representantes indígenas dentro da política partidária, mesmo com todas as limitações da democracia liberal, “em tese representativa, debilmente participativa e menos popular, e ainda gravemente ameaçada pelo governo de Jair Bolsonaro”.
“Temos por isso o desafio de ocupar esses espaços, para disputarmos uma verdadeira democracia representativa, participativa e popular”, diz a organização. O objetivo é que sejam indicados representantes não apenas pela via clássica partidária, mas por meio de colégios eleitorais diferenciados ou de mecanismos autônomos de organização social própria: espaços coletivos de decisão, grandes assembleias, plenárias ou congressos. “Sem deixar de sonhar, mais ainda, nas possibilidades de termos um Parlamento Indígena”.
Ariene Susui, de 23 anos, é a primeira de oito irmãos da Aldeia Truaru da Cabeceira, em Boa Vista, a concluir o ensino superior. A jovem indígena Wapichana agora se prepara para o próximo desafio: ser a primeira vereadora indígena da capital de Roraima. “Quando saíamos das comunidades indígenas e vínhamos para a cidade, ficávamos à mercê”, conta Susui. “São mais de 20 mil indígenas em contexto urbano em Boa Vista. Por que já não tem nenhum representante indígena na câmara de vereadores?”
Assim como Mário Nicácio, Ariene Susui acredita que a crise do novo coronavírus serviu para mobilizar indígenas a se candidatarem a cargos eleitorais este ano. “Com a pandemia, nos demos conta que só tínhamos um representante lá dentro [Congresso]”, diz Susui. “A Joênia abriu esse espaço para dizer ‘nós podemos, nós somos capazes’. Em tempos de bolsonarismo, se nós não elegermos nossos representantes, sofremos ainda mais as consequências. É como se fosse uma resposta a esses tempos difíceis”.
A jovem Wapichana acredita que a política eleitoral é uma das estratégias de barrar o avanço de pautas anti-indígenas nas esferas municipal, estadual e federal. “Vamos lutar com as mesmas armas”, afirma. “Se é o lugar onde as decisões são tomadas, precisamos nos organizar para chegar nesses espaços, especialmente nós, mulheres, indígenas e jovens”.
A ideia coincide com a da indígena Jozileia Daniza Jagso Kaingang, de Florianópolis. Ela se uniu a outras cinco integrantes de movimentos sociais em uma candidatura coletiva para disputar uma vaga na Câmara Municipal. “Somos um coletivo de mulheres, cada uma de uma rede, justamente porque existe uma conexão de trabalhos entre as mulheres indígenas e não indígenas”, explica a candidata pelo PSOL.
“Eu nunca tinha me imaginado concorrendo a uma vaga político-partidária”, diz Jozileia Kaingang. “Faço muito bem política em outros espaços, mas temos discutido muito a presença de mulheres indígenas nesses espaços de poder, incidindo sobre decisões que vão interferir nas nossas vidas. A gente precisa dar um passo para poder mudar, melhorar. Nesse passo, a gente precisa se colocar como um instrumento de mudança”.
Formanda em Geografia, Jozileia Kaingang mudou-se da região oeste do estado — berço do povo Kaingang em Santa Catarina — para cursar o mestrado em Antropologia Social na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde agora cursa o doutorado. Entre 2016 e 2020, foi coordenadora pedagógica da Licenciatura Intercultural Indígena na mesma universidade.
Ela afirma que os espaços de discussão coletiva criados nos últimos anos serviram para encorajar candidaturas indígenas e de outros campos progressistas. “Nessas eleições, teremos um boom de candidaturas indígenas”, aponta. “Se não estivéssemos debatendo esse lugar das mulheres, esse lugar de fala nesses espaços de poder, eu certamente não teria me candidatado”.
A conjuntura anti-indígena, consequência do avanço da extrema-direita no país, aumentou o ímpeto de eleger candidatos indígenas no país. “Embora a gente sempre tenha tido aliados, é muito diferente quando você está dentro”, avalia Jozileia Kaingang. “Quando se está dentro do espaço de poder, você consegue incidir com os seus pensamentos e conquistar pessoas que eram contrárias ou que não entendiam bem quais eram as pautas de luta dos povos indígenas”.
Vice da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Mário Nicácio Wapichana será candidato a vice-prefeito em Bonfim (RR) pela Rede, que tem na deputada federal Joênia Wapichana sua principal articuladora no estado. A parlamentar foi a primeira mulher indígena a ocupar uma cadeira no Congresso e a segunda indígena eleita após o cacique Xavante Mário Juruna, eleito com 31 mil votos pelo PDT do Rio de Janeiro em 1983. Só em Roraima, a Rede já anunciou a candidatura de 32 indígenas às prefeituras e câmaras municipais.
A chapa de Nicácio é composta pelo atual prefeito de Bonfim, Joner Chagas, que disputa a reeleição. Chagas é filiado ao PRTB, mesmo partido do vice-presidente Hamilton Mourão, e tem o apoio da ala menos conservadora de produtores rurais e comerciantes do município. “A gente sabe que estamos em um terreno que não precisamos correr demais, mas nem achar que está tudo bem”, resume Mário Nicácio.
Ele explica que os indígenas representam cerca de 30% do eleitorado do município. “Sozinho, ele não ganharia”, aponta o Wapichana. “E a gente sempre perdeu também. Por isso que resolvemos, nesse momento conturbado, com o governo Bolsonaro, fazer a chapa com Chagas. Se a gente saísse separados, nós dois perderíamos para um terceiro candidato que não gosta de índio”.
Para Mário Nicácio Wapichana, a pandemia demonstrou a importância da representação indígena no sistema eleitoral, para além de aliados do campo progressista. “Nós precisamos entrar pela porta de frente e discutir com os partidos e parlamentares na mesma mesa”.