Pensar o destino do Brasil, do Planeta e de todos os seus habitantes é pensar, principalmente, em quais protagonistas realizarão as mudanças necessárias. As empresas capitalistas globais têm seu projeto de futuro, mesmo que seja mesquinho e para poucos, no qual o lucro é o principal objetivo. O campesinato, os povos originários e a classe trabalhadora, na outra ponta, também colocam em curso o que pensam/fazem; neste caso, a Vida ganha centralidade. Há um ponto em comum entre esses projetos/pensar/agir: a Terra. É a partir desta perspectiva que nós, da Comissão Pastoral da Terra Nordeste 2, intentamos analisar o ano de 2019, dentro das disputas e tensões destes projetos de sociedade. Neste texto, compartilhamos o balanço da Reforma Agrária no ano de 2019.
Agronegócio a passos largos
O Brasil é o segundo país de maior concentração de renda entre os quase 200 países do mundo, como foi divulgado recentemente pelo Relatório do Desenvolvimento Humano da ONU. O 1% dos mais ricos concentra 28,3% da renda total do país, ou seja, quase um terço da renda encontra-se nas mãos dos mais ricos. É também um dos países que mais concentram terra do planeta: 1% dos grandes estabelecimentos detém quase a metade das terras de todos os estabelecimentos rurais brasileiros, segundo o Censo Agropecuário de 2017. Os atos e medidas do atual Governo Federal aprofundaram essas desigualdades e essa concentração de renda e de terra, suprimindo direitos históricos dos/as mais injustiçados/as, expondo-os/as à face mais cruel do sistema capitalista. O Estado de Exceção está se tornando, com velocidade, uma ameaça permanente e uma sombra obscura pairando sobre o futuro de nosso povo.
Sobre os números detalhados da Reforma Agrária no ano de 2019, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) informou à CPT NE 2 que estes serão divulgados somente em fevereiro de 2020. O que é público e notório é que o órgão não assentou nenhuma família e não desapropriou nenhuma propriedade para fins de Reforma Agrária. Esta é a mesma situação para povos e comunidades tradicionais.
O que vimos foi o anúncio por parte do Governo, em 10 de dezembro, quanto à assinatura da Medida Provisória – MP 910/2019, que pretende instituir novas regras para a regularização de terras no país. Segundo anunciado, o foco se dará em terras da União, especialmente na Amazônia Legal. A meta anunciada pelo Governo é regularizar um total de 600 mil títulos até o ano de 2022. Está em curso, portanto, uma verdadeira legalização da grilagem de terra na Amazônia Legal ou uma disfarçada e imoral anistia à apropriação ilegal de terras públicas.
Além disso, avança no Senado uma das principais reivindicações políticas do grande capital no Brasil, que é o Projeto de Lei (PL) que amplia as possibilidades de venda e de arrendamento de terras no país para estrangeiros. A legislação brasileira em vigor (Lei 5.709/1971) impõe um regime diferenciado ao estrangeiro, seja pessoa física ou jurídica, que pretenda adquirir terras rurais no Brasil, limitando a compra de terras, inclusive para empresas brasileiras com controle acionário estrangeiro ou quando o beneficiário final das empresas for estrangeiro. No último dia 11 de dezembro, as Comissões de Assuntos Econômicos (CAE) e de Agricultura (CRA) do Senado aprovaram o PL 2.963/2019, de autoria do senador Irajá (PSD-TO), que facilita a aquisição de terras por estrangeiros, pessoa física ou jurídica.
O texto desse Projeto de Lei consolida a possibilidade de aquisição e arrendamento rural de até um quarto (25%) da superfície dos municípios onde se situem. Há, ainda, a não vinculação dos imóveis rurais à implantação de projetos agrícolas, pecuários, industriais ou de colonização aos seus objetivos estatutários, e a supressão da necessidade de aprovação ministerial prévia desses projetos de aquisição/arrendamento. O PL segue agora para a análise da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que avaliará se está de acordo com a Constituição; depois, seguirá para votação final no Senado.
Aos Povos da Terra: violência
Os laços entre o Estado e o agronegócio já vinham se acentuando desde governos anteriores, mas o Governo de Bolsonaro pretendeu alcançar níveis muito mais profundos de identidade e de lealdade com os setores da agricultura industrial e com empresas transnacionais multimilionárias. Em consequência, fechou-se cada vez mais o cerco a povos tradicionais e comunidades camponesas. No ano que se encerra, ficou nítido que, para este governo, não se trata de frear ou paralisar a política de Reforma Agrária, a demarcação de territórios tradicionais e de sucatear órgãos responsáveis pelas políticas para o campo. Para os atuais governantes, todas essas políticas devem ser destruídas e erradicadas, pois entendem que elas não constituem um direito fundamental dos cidadãos, apesar de a Constituição Federal declará-las como tal.
E, o que é ainda pior, para estes, a prioridade é combater todos que lutam por esses direitos. De fato, as medidas e posições defendidas pelo presidente, em 2019, apontaram para a repressão e para o estímulo ao genocídio de sem-terras, indígenas, quilombolas e de povos tradicionais. O Governo está legalizando e armando as milícias privadas de fazendeiros e anunciando uma criminosa exclusão de ilicitude das forças militares (GLOs) em reintegrações de posse, para transformar as forças armadas em uma verdadeira milícia pública, institucionalizando a violência do Estado a serviço do grande capital e do agronegócio.
2019 foi mais um ano marcado pela violência generalizada no campo, causada por problemas estruturais nunca enfrentados no Brasil. Uma característica foi marcante nesse ano: os assassinatos no campo tiveram como endereço certo a Amazônia. Das 29 pessoas que foram assassinadas em conflitos agrários, no ano de 2019, 25 viviam na Amazônia legal, representando 86% do total, conforme dados parciais divulgados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). O estado do Pará liderou o ranking, com 12 dos 29 assassinatos, representando 41% do total.
O contínuo massacre sofrido pelos povos originários do Brasil ganhou novos contornos e maior agravamento em 2019, a partir da posição do Governo Federal de incitar a violência e de disseminar o ódio contra esses povos. No ano que está se encerrando, oito indígenas foram assassinados, destes, 7 eram lideranças. Esse foi o número mais alto de assassinato de lideranças indígenas nos últimos 11 anos, de acordo com dados da CPT. O Estado assumiu, sem pudor algum, a posição de agente protagonista da violência. Não houve espaço para quem luta e para quem pensa diferente. Para todos/as, o Governo ofereceu a violência, o ódio, o rearmamento da sociedade, enfim, ofereceu a bala das armas que são simuladas no gestual de suas mãos, numa propaganda criminosa de incitação oficial à violência.
Ao invés de cumprir o seu dever de desapropriar imóveis rurais que não atendem a sua função social, conforme prevê a Constituição Brasileira, o atual governo optou por legitimar o crime e a violência contra quem defende o cumprimento da Carta Magna brasileira.
O massacre da Mãe Terra
Marcado por crimes ambientais de gigantescas proporções e pela implementação de uma política ambiental desastrosa por parte do Governo Federal, o ano de 2019 representou um verdadeiro massacre ao meio ambiente no Brasil. O presidente Bolsonaro relegou a pauta ambiental ao abandono total, chegando, inclusive, a cogitar acabar com o Ministério do Meio Ambiente no início do ano. Recuou após pressões externas, e então decidiu mudar a sua estratégia, passando a operar um verdadeiro desmonte do órgão.
Mineração – No dia 25 de janeiro, rompeu-se a barragem de rejeitos provenientes da produção na Mina no Córrego do Feijão, da empresa Vale, o que resultou num dos mais impactantes crimes ambientais no Brasil. Cerca de 11,7 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração invadiram a cidade de Brumadinho, deixando até o momento 259 mortos e outras 11 pessoas desaparecidas. Nenhuma sirene de perigo foi acionada no momento do rompimento. Os danos ambientais e sociais são incalculáveis, impossíveis de serem sanados com quaisquer medidas reparativas. Não nos esqueçamos de que o Brasil é um dos maiores produtores e exportadores de minério de ferro do mundo e, portanto, crimes desta dimensão podem continuar ocorrendo e destruindo centenas de vidas, o meio ambiente e territórios sagrados de populações tradicionais.
Expansão da fronteira agrícola: causa da destruição da Amazônia – Uma situação que chocou o planeta em 2019 foi o alto índice de queimadas na Amazônia. Conforme dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), até o mês de agosto, foram registrados cerca de 71.500 mil focos de incêndio na floresta, representando um aumento de 82% em relação ao mesmo período do ano anterior. Na Amazônia, zona de floresta úmida, o fogo é associado ao desmatamento e a áreas degradadas; trata-se de uma prática conhecida que faz parte do chamado “ciclo do desmatamento na Amazônia”. É justamente nesta região que ocorre a expansão da fronteira agrícola, como também no Cerrado.
O agronegócio, para se expandir, precisa cada vez mais de terra e de água. É nesse contexto que se entende o “dia do fogo” – noticiado pela imprensa nacional -, quando ações criminosas foram realizadas com o objetivo de devastar a Floresta Amazônica. A ação teve como intuito abrir espaço para que empresas de sementes transgênicas, de pecuária, de insumos agrícolas, de venda de máquinas e dos fundos de pensões pudessem expandir seus negócios em terra arrasada, e assim investir e lucrar com a queima da floresta.
Petroleiras
No fim do ano, outro crime de grande proporção causou danos incalculáveis ao meio ambiente e à vida das populações de todo o litoral nordestino. Trata-se do derramamento de petróleo, que atingiu 966 pontos da costa nordestina e algumas praias de estados do Sudeste, como apontou recente levantamento do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA). Milhares de pescadores e pescadoras artesanais, além de comunidades pesqueiras e RESEXs sofreram os danos desse crime. Pescadores, marisqueiras e governos estaduais tiveram de limpar as praias em regime de mutirão, devido à injustificável omissão do Governo Federal. Até hoje, o Governo não identificou a origem do vazamento criminoso. Não se pode esquecer: a economia capitalista global é totalmente dependente do petróleo, e as empresas petroleiras têm total interesse nas grandes reservas globais. Estas não possuem um mínimo de ética na exploração, armazenamento e comércio do seu produto. Guerras, golpes e crimes ambientais ocorrem na corrida pelo controle do petróleo, seja no Oriente Médio, seja na Venezuela ou no Brasil.
Agrotóxicos – Outro triste aspecto para a agricultura e para o povo brasileiro foi a liberação recorde do licenciamento de agrotóxicos. Desde o início de 2019, foram 467 novos produtos autorizados pelo Governo. A maior parte desses agrotóxicos são produtos tão lesivos às pessoas e ao ecossistema que são proibidos nos países sedes das empresas que os produzem. Todo esse veneno está agravando a contaminação da flora e da fauna brasileiras e vem sendo consumido pela população brasileira que, sem saber, tem a sua saúde agredida a cada refeição.
COP-25 – O espanto e o descrédito internacionais foram imensos, com todos estes crimes citados acima, e se consolidaram, agora no final de 2019, com o Governo Bolsonaro obstruindo os necessários acordos na COP-25, que somente se realizou em Madrid porque o Presidente da República renunciou a que o Brasil fosse o país sede, como estava programado.
Tempos sombrios
O ano de 2019 chegou ao fim tendo alcançado uma marca muito peculiar na história: a de um período em que a institucionalidade foi tensionada por uma ética e uma política de naturezas perversas, discriminatórias e preconceituosas por parte de seu principal governante. Os desatinos diários, em 2019, foram anunciados já durante as eleições em 2018, com ampla divulgação de sua conduta e pronunciamentos preconceituosos, misóginos, racistas, fascistas, de elogio à violência, às ditaduras, à tortura e aos torturadores, dentre várias outras posições anticivilizatórias e antidemocráticas. Foi um ano marcado pela intensificação de um projeto ultraliberal e fascista, com grande apelo ao fundamentalismo religioso e de rompimento da democracia burguesa.
Resistências e mobilizações
Nas disputas de sentidos, de pensar o campo brasileiro e de agir sobre ele, o Estado brasileiro e seus governantes estiveram fiéis a um lado. O presidente do Brasil defendeu o agrobanditismo, o latifúndio, a especulação da terra por grupos estrangeiros, incentivou o desmatamento e incitou o ódio. Pôs em prática uma política de terra arrasada para o Brasil.
Acontece que, como sempre ocorreu na história do Brasil, os povos originários, o campesinato e a classe trabalhadora não se curvaram aos interesses do grande capital e do Estado brasileiro. A indignação se fez presente na resistência cotidiana e em grandiosas marchas e mobilizações. A Marcha das Margaridas, a Primeira Marcha das mulheres indígenas, centenas de mobilizações contra a Reforma da Previdência, protestos em defesa da Educação e de direitos são alguns exemplos de povo firme em luta.
Escutamos, neste último tempo, o apelo profético do Sínodo Panamazônico, convocado pelo Papa Francisco. Precisamos mergulhar nas águas do Sínodo, cuidar da “Casa Comum” e escutar os gritos dos/as empobrecidos/as e injustiçados/as. O grito desses povos é o grito da esperança, assim falou o Papa no encerramento do Sínodo. Inspirados e inspiradas no discurso do Papa Francisco, na apresentação dos votos natalícios, reafirmamos que a vida do povo de Deus é um caminho marcado por começos e recomeços. É um convite, uma necessidade de partir para poder permanecer e de mudar para ser fiel. Deixar-se questionar pelos desafios do tempo presente, enxergando-os com franqueza e coragem, firmeza e perseverança. Seguiremos! O futuro vem pela frente. Ele é fértil e deverá florescer com brevidade.