17/03/2021
Conhecimento de seus direitos na Constituição e em convenções internacionais tem fortalecido a luta quilombola em Minas
A questão sobre o que é “ser quilombola” foi uma das mais debatidas entre os participantes do encontro da federação N’Golo – Foto: Federação N’Golo
“Sempre ouvi dizer dessa convenção, desses artigos. Mas nunca tinha entendido. Agora sim eu compreendi bem”. A partir do último fim de semana ficou claro para Joseane Pascoal, de 36 anos, o que significam certos artigos da Constituição Federal e da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) (Convenção nº 169 da OIT, de 07 de junho de 1989 — 6ª Câmara – Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (http://mpf.mp.br). Para a quilombola, mais importante do que saber de tais legislações é conhecer as maneiras de efetivá-las. Se no Brasil da época da colônia uma das principais estratégias dos quilombolas em prol da liberdade era a resistência física, hoje em dia é a luta pela concretização de direitos.
Com o intuito de aprimorar essa tática, a Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais (N’Golo) realizou no fim de semana passado um curso de capacitação para líderes quilombolas. O encontro encerrou um projeto da entidade sobre gestão ambiental e territorial, executado em parceria com o Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA) e o Dedicated Grant Mechanism for Indigenous Peoples and Local Communities (DGM), em parceria com o Fundo Brasil de Direitos Humanos, CONAQ e Moradia e Cidadania de MG. A produção de uma cartilha relativa ao tema mencionado e visitas a quilombos foram os resultados da iniciativa; o Brasil de Fato acompanhou elas.
Minas possui 1.027 quilombos e é o segundo estado que mais tem comunidades quilombolas
A formação foi realizada presencialmente. Em razão da pandemia de coronavírus, ela ocorreu em espaço aberto e com público reduzido. Todos os protocolos sanitários foram cumpridos, como uso de máscaras e uso de álcool em gel.
O material da N’Golo contém as 26 legislações relativas a quilombolas e cita formas para concretizar tais normas. Entre elas está a convenção 169 da OIT. “Ela traz algo muito importante, que pode barrar muitos retrocessos de direitos de vocês: trata-se dos protocolos de consulta prévia”, afirmou Jésus Rosário Araújo, presidente da federação.
A ida da N’Golo no início do mês à comunidade de Joseane, a São Félix, em Cantagalo, na região mineira Rio Doce, despertou nela uma curiosidade quanto ao protocolo, sobretudo diante dos problemas lá vivenciados. Plantações de eucaliptos rodeiam todo o quilombo. Para facilitar o deslocamento da produção, um fazendeiro vizinho construiu uma estrada no território de São Félix, segundo os moradores, sem consultá-los, passando por cima até de uma sepultura, o que viola o direito à ancestralidade.
Protocolo de consulta prévia
Não é raro os povos tradicionais serem impactados por projetos dos poderes públicos ou de entes privados. Eles devem ser consultados previamente a respeito da viabilidade de tais propostas. O direito à consulta é estabelecido desde 1989 pela convenção 169 da OIT. No país, ele foi incorporado ao ordenamento jurídico somente em 2004.
Nas comunidades por onde passou a reportagem, verifica-se um avanço da produção de eucaliptos e cana sobre os territórios quilombolas. Um levantamento de 2018 com 28 quilombos do Rio Doce realizado pelo Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (Cedefes) mostra que o eucalipto e a pecuária são as atividades mais agressivas às comunidades.
“O protocolo é um instrumento intercultural do qual se valem os indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais para definir as regras sobre como eles querem ser consultados previamente ao empreendimento proposto”, explica Edmundo Antonio Dias, procurador do Ministério Público Federal de Minas (MPF- MG).
O exemplo dos Krenak
Para os mineiros, o exemplo de protocolo mais próximo é o do povo indígena Krenak, localizado no leste do estado. O documento foi elaborado em 2017; nele a comunidade afirma: “A consulta prévia será sempre realizada por um órgão público. As reuniões devem sempre ser realizadas no interior da terra indígena, em local definido pelas nossas lideranças. Devem ser evitadas reuniões na época da chuva e no mês de abril, quando estamos envolvidos com festas internas e outros eventos ligados ao Dia do Índio”.
Esse e outros documentos similares podem ser encontrados na página da Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, órgão fiscalizador do cumprimento dos protocolos. “Toda vez que uma comunidade sentir que as regras da consulta foram violadas ela pode nos procurar. E o MP federal pode acionar a justiça federal”, diz o procurador. Ele ainda explica que não é necessário submeter o material produzido a órgãos públicos, como cartórios. Também não é preciso que um advogado, por exemplo, redija o documento.
“Diante dos problemas políticos do país, neste momento os protocolos têm um importante papel de afirmação de direitos: a consulta prévia, livre e informada”, completou Edmundo. Atualmente, os quilombos mineiros não possuem esse documento.
Apenas 3% dos territórios quilombolas são regularizados
Ainda de acordo com ele, sobre o imbróglio na comunidade de Joseane, a princípio, os moradores devem ser reparados. Isso porque a estrada foi construída sob a violação do direito à consulta prévia.
O curso da federação contou com presença de 13 membros da Comissão Regional Quilombola, de 9 municípios do Rio Doce. Além dos protocolos de consulta prévia, Joseane e os demais quilombolas dialogaram sobre outras questões jurídicas. Por exemplo, os artigos 215 e 216 da Constituição Federal. Ambos determinam que o poder público proteja as manifestações culturais populares, indígenas e afro-brasileiras; e reconhece os quilombos como parte do patrimônio brasileiro. “Tenho uma reunião essa semana com o pessoal da prefeitura (de Cantagalo). E vou cobrar deles o inventário da comunidade”, afirmou Joseane.
O inventário é o primeiro passo rumo ao tombamento. Todo bem tombado deve ser legalmente protegido. Logo, na hipótese de isso ocorrer com São Félix nenhum projeto poderá lhe causar danos. “Outra forma de a comunidade ser protegida é pressionando as prefeituras a decretarem as terras em que as comunidades estão de interesse público. Isso, claro, se elas estiverem em terras da prefeitura”, ressaltou o presidente da federação.
No Brasil, o tema das terras é crucial para entender as violações de direitos dos quilombolas. Informação do IBGE (Base de Informações sobre os Povos Indígenas e Quilombolas | Indígenas e Quilombolas 2019 | IBGE) mostra que em Minas são 1.027 quilombos. É o segundo estado que mais tem comunidades quilombolas. No país, elas são 6.023. Em nível estadual, sequer 3% dos territórios são oficialmente regularizados. No âmbito nacional, esse percentual não chega a 8%. A falta do título definitivo da propriedade acarreta em situações como a de São Félix; fazendeiros, entre outros, expandem suas cercas ou projetos sem autorização.
História e Identidade
Em 2003, o governo federal emitiu o decreto 4.887 para regulamentar o procedimento de reconhecimento, demarcação, entre outros atributos, relacionados aos quilombos. Para os quilombolas, a norma é um dos principais marcos legais. Ela define quilombola como “os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.
Os quilombolas estão direta ou indiretamente relacionados com o período escravocrata brasileiro. Nessa época, foram formados pelos negros fugidos das senzalas os quilombos, palavra originária do idioma quimbundo, falada antigamente em Angola; o significado é acampamento de guerreiros. O mais conhecido quilombo no país é o de Palmares, em Alagoas.
Barra de Santo Antônio poderá ser o quilombo pioneiro na construção de um protocolo de consulta prévia
Negado pelo ensino tradicional de história nas escolas, o quilombo do Campo Grande existiu em Minas Gerais e foi maior que Palmares. Isso é o que mostra, a partir de documentos históricos, o historiador Tarcísio José Martins. Segundo ele, Campo Grande era uma junção de 20 quilombos; dentro de 27 quilômetros na região Centro-Oeste do estado onde viveram milhares de ex-escravos e brancos pobres.
Conforme as pesquisas de Tarcísio, esse quilombo existiu entre 1720 a 1760. Em meados do século 18, Gomes Freire de Andrade foi governador da Capitania onde hoje é Minas. “Depois de muita resistência dos quilombolas, Gomes Freire consegue derrotar o Campo Grande”, contou Tarcísio, autor do livro Quilombo do Campo Grande: história de Minas que se devolve ao povo.
“O Gomes Freire ficou desesperado: com uma fuga dos brancos pobres e de pretos ele começou a ver que as vilas e arraiais começaram a ficar desertos e a arrecadação de imposto caiu”, concluiu Tarcísio, pesquisador da temática há 40 anos.
Ao menos os quilombos localizados na região Centro-Oeste mineira há fortes evidências de que eles sejam ocupados hoje em dia por descendentes de moradores do Campo Grande.
Angola e Congos: forte presença minerária
Em todo o estado, a maior parte dos quilombolas negros descendem do povo bantu, originário de Angola e dos Congos. Isso porque, nessa porção africana havia forte presença minerária; e trazer negros de lá facilitou o trabalho na mineração em Minas Gerais.
Determinados fatos históricos contidos no livro de Tarcísio ajudam a explicar a grande presença quilombola em Minas. Em 1776, por exemplo, haviam 319,7 mil habitantes no estado. Cerca de 52%, ou 166,9 mil, eram negros.
A questão sobre o que é “ser quilombola” foi uma das mais debatidas entre os participantes do encontro da federação N’Golo. “Ser quilombola tem a ver com aceitação de sua história, cultura e território”, indicou uma das lideranças em uma das atividades propostas para eles na reunião. “Eu por exemplo: nasci branca. Mas me considero quilombola por causa da minha história com a comunidade. Fui criada lá”, observa Cristiana Vita Correia, presidente da Associação da Comunidade São Félix.
“Quando a gente fala de luta de direitos isso requer união, e união requer identidade”
“Uma pessoa, por exemplo, que é quilombola… Mas que teve que sair da comunidade para ir à cidade não deixa de ser quilombola. É preciso ficar atento a isso. Sobretudo porque este ano teremos o primeiro censo quilombola. E é o censo que embasa várias políticas públicas”, observou Agda Marina Moreira, assessora da N’Golo.
No encontro, as lideranças manifestaram preocupação com o distanciamento de jovens, boa parte dos quais não se identificam como quilombolas. “E isso pode ser prejudicial porque quando a gente fala de luta de direitos isso requer união, e união requer identidade”, completou Agda.
“A questão dos jovens que não se identificam com a comunidade é muito preocupante. Afinal de contas são eles que devem perpetuar nossa cultura”, emendou Altaíde Nunes Ferreira, da comunidade Águas Claras, em Virgolândia, no Rio Doce. “Eu vejo que hoje em dia eles não têm conhecimentos sobre nossa origem. Hoje a gente percebe que a escola passa um véu sobre nossa história”, ressaltou. Existem diversos fatores para a não identificação dos mais jovens. Uma delas é a ida definitiva para a cidade, em decorrência de condições econômicas.
Federação Quilombola N’Golo
Além de promover o curso, a Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais (N’Golo) visitou no último fim de semana duas comunidades: São Domingos Cabeceiras e Barra do Santo Antônio, ambas em Sabinópolis, Alto Rio Doce.
Na primeira comunidade, onde há 20 famílias, o principal gargalo identificado foi a escassez de informação concernente à pandemia. Segundo relatos de membros da comunidade, não houve visitas de agentes de saúde; não ocorreu também a distribuição de máscaras. Uma moradora, por exemplo, se recusa atualmente a tomar a vacina contra o coronavírus por entender que existem três imunizantes sendo disponibilizadas hoje em dia no país e ela, porém, não sabe qual seria o melhor para seu organismo. Daí a recusa.
“Eu mesma só sei do que está acontecendo com essa pandemia porque assisto jornal”, contou Ivone Rodrigues, outra moradora. Integrantes idosos da comunidade relatam ainda que eles estão há quase um ano sem medirem a pressão, um dos serviços de saúde mais simples.
O segundo quilombo percorrido foi o Barra de Santo Antônio. Essa comunidade, entre tantas no estado, é avançada no que tange a direitos. Um exemplo é a existência de uma escola estadual na comunidade, algo demandado por muitas outras.
A contínua atuação política faz parte das articulações da associação de moradores. “A gente lamenta não termos eleito nenhum vereador ano passado. Mas a gente precisa disso. Eu mesmo até já pretendi me candidatar. Mas acabou não dando certo”, comenta José Ferreira, de 60 anos, que pleiteia dinheiro de emendas parlamentares para aumentar a estrutura do quilombo, o qual possui 50 famílias. A N’Golo cogita que poderá ser Barra de Santo Antônio o quilombo pioneiro na construção de um protocolo de consulta prévia. Isso graças à união deles.
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Além da entrega das cartilhas, a federação realizou uma roda de conversa nos quilombos onde esteve, desde o mês passado. O intuito foi discutir a cartilha e averiguar a atual situação deles. Ataques de empresas e esquecimento do poder público sobretudo na pandemia foram as principais críticas das comunidades, conforme mostrou o Brasil de Fato em duas matérias: Sem renda e impedidos de estudas: pandemia agrava situação dos quilombolas e Atacados por empresas, esquecidos pelo poder público: a vida quilombola em Minas.
A Federação N’Golo irá também disponibilizar R$ 2,5 mil para parte das comunidades visitadas atuarem na prevenção e combate à pandemia. O recurso é oriundo de doações angariadas por meio de vakinha online e mediante auxílio emergencial disponibilizado pelo CAA/DGM Brasil às entidades com as quais possuem projetos em andamento.
Edição: Elis Almeida