Se a demarcação de TIs sempre foi conquistada a duras penas, hoje o cenário é apontado pelo movimento indígena como o mais duro ataque aos direitos constitucionais dos últimos 30 anos. Este é um dos principais temas do Acampamento Terra Livre (ATL) 2018, que acontece até a próxima sexta (27) no Memorial dos Povos Indígenas, em Brasília.
Regulamentado pelo Decreto 1775 de 1996, o procedimento administrativo de demarcação das Terras Indígenas, aqui explicado de forma resumida, é iniciado com os estudos de identificação e delimitação por um grupo de trabalho designado pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Após a aprovação dos estudos, o passo seguinte é dado pelo Ministério da Justiça que publica a Portaria Declaratória, a partir da qual se determina a demarcação da TI e passam a valer os limites da área. Por fim, cabe à Presidência da República a homologação que garante a posse plena à comunidade indígena.
No atual governo, composto não somente pelos cargos ocupados pelo Executivo, mas também caracterizado por uma forte influência do legislativo, dominado pela bancada ruralista, os processos de demarcação estão tomando o caminho contrário, quando não simplesmente paralisados.
Inicialmente demarcada antes da Constituição de 1988, a TI Jaraguá, do povo Guarani Mbya, na capital de São Paulo, ficou famosa como a menor Terra Indígena do país, com apenas 1,7 hectare para uma população de mais de 700 pessoas. Para adequar a terra aos limites constitucionais, os estudos foram iniciados pela Funai em 2002 e posteriormente aprovados somente em 2013. Todo o processo foi permeado por forte mobilização da comunidade Guarani. Em 2015, o então ministro da Justiça assinou a Portaria Declaratória que reconhece 532 hectares como terra tradicionalmente ocupada pelos Guarani Mbya.
Os mais de 13 anos de expectativa da comunidade Guarani foram frustrados com apenas uma canetada do atual ministro Torquato Jardim, que em ação inédita publicou uma portaria que anulou a portaria declaratória anterior.
“O ministro do governo Temer resolveu fazer o que nunca havia sido feito, que é o processo inverso de demarcação, a ‘desdemarcação’ que retira um reconhecimento que já havia sido feito”, comenta David Karai Popyguá, liderança guarani da TI Jaraguá.
Para Karai Popyguá, a posição do atual governo contrária às demarcações abre caminho para a atuação da iniciativa privada em territórios indígenas.
“Terras que já foram demarcadas são alvos dos projetos de grandes corporações de mineração, construção de hidrelétricas, enquanto lideranças indígenas que denunciam esse processo estão sendo criminalizadas”, aponta.
“São 73 processos de demarcação na mesma situação do Jaraguá com Portaria Declaratória publicada. Se a anulação no Jaraguá se mantém, o que vai acontecer é um precedente para ataques a cada uma dessas terras”, completa.
Para tanto, o executivo tem utilizado diversas estratégias. Desde 2017, a principal delas se tornou o Parecer 001 da Advocacia-Geral da União (AGU), que impõe a toda a administração pública as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol nos processos de demarcação.
Um marco inconstitucional
Um dos principais pontos do parecer é o Marco Temporal, tese ainda em discussão nas instâncias do judiciário e que condiciona o direito à terra tradicional somente para as ocupadas pelos povos indígenas em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição.
Com base nessa interpretação, que desconsidera todas as violações e casos de esbulho territorial contra os povos indígenas no período da Ditadura Militar e antes dela, a Segunda Turma do STF, da qual participa o ministro Gilmar Mendes, anulou três processos demarcatórios em 2014: a TI Limão Verde, do povo Terena, a TI Guyraroka, dos Guarani Kaiowá, ambas no Mato Grosso do Sul, e parte da TI Porquinhos, dos Apãnjekra Kanela, no Maranhão.
“Por que parou? A gente precisa da nossa areazinha”, questiona Gabriel Tipã Apãnjekra Kanela, cacique da aldeia Porquinhos. A aldeia fica dentro de uma parte de seu território, reservada há décadas.
A demarcação, que foi anulada pelo STF, devolvia aos Kanela uma área de seu território da qual foram expulsos com um grande massacre, cerca de 70 anos atrás – motivo pelo qual não estavam sobre essa parte da terra em 1988, e pelo qual ela permanece com fazendeiros desde então.
“Os mejin [indígenas] estão aumentando e não tem mais lugar para trabalhar. A terra é nossa e nós precisamos demarcar, porque tem muito fazendeiro apertando nós. Os cupen [não-indígenas] fazendeiros puxam a água, e baixa o rio. Não dá mais. Se fizer campo e eucalipto ao redor de tudo, não tem mais caça para nós viver”, reclama o cacique.
As decisões da Segunda Turma contrariam precedentes do próprio STF, já que duas decisões posteriores do pleno – ou seja, de todos os onze ministros – reafirmaram o caráter originário dos direitos territoriais indígenas e rechaçaram o marco temporal, no caso das terras quilombolas.
Apesar das decisões em contrário, as posições minoritárias da Segunda Turma serviram de base para o parecer 001 da AGU.
Morro dos Cavalos
Publicada em 2008, a Portaria Declaratória da Terra Indígena Morro dos Cavalos há anos mobiliza a comunidade Guarani Mbya no município de Palhoça, Santa Catarina, na campanha pela homologação do processo de demarcação. A constante pressão de políticos ruralistas locais, caso de Valdir Colatto (PMDB-SC), tem alimentado ódio contra o povo Guarani na região e causado instabilidade na vida das comunidades.
“Temos duas aldeias no Morro dos Cavalos e agora estamos temendo a violência. Em cada retrocesso no processo, temos diferentes atores que nos atacam. No ano passado minha mãe sofreu um ataque e teve cortes na cabeça e a mão decepada dentro da casa dela”, revela Eunice Kerexu Yxapyry, liderança da Terra Indígena Morro dos Cavalos.
O Parecer 001 da AGU se tornou o principal argumento para questionar o processo de demarcação em uma disputa judicial entre o governo do estado de Santa Catarina e a comunidade Guarani. Em março de 2018, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Morais questionou o Ministério da Justiça sobre o processo, destacando a adequação ao Parecer 001.
O mesmo ministro negou participação da comunidade Guarani como parte no processo. A Portaria que declara 1.988 hectares como terra tradicionalmente ocupada pelo povo Guarani ainda é válida, mas em uma manobra do atual governo, o processo voltou da Casa Civil, onde estava pronto para ser homologada, para a Funai.
“Cada vez que esse processo é movimentado, quem sofre é a comunidade dentro da aldeia, muita violência está acontecendo”, denuncia preocupada Kerexu Yxapyry.
Começa, mas não termina
Além de um enorme passivo de terras que sequer iniciaram suas demarcações, as comunidades indígenas apontam a demora em processos que já estão em andamento e em retirar invasores de terras já demarcadas.
Homologada em 2005, parte da TI Krikati ainda está nas mãos de não-indígenas. A paralisação judicial da desintrusão por um curto período foi suficiente para que invasores se somassem a ocupantes antigos, ainda não indenizados, e a fazendeiros que haviam recebido a indenização, mas mesmo assim retornaram para a terra, conforme denuncia Edilena Krikati, liderança da TI localizada no Maranhão.
“Esse processo vem desde a década de 1980, mas a demarcação só começou a andar quando o povo Krikati derrubou as torres da Eletronorte e iniciou a autodemarcação”, explica.
Dentro da TI, uma aldeia resiste cercada de fazendas, enquanto os Krikati aguardam pelo término desintrusão.
“A gente esbarra naquilo de que a Funai não tem dinheiro, a Funai não tem poder”, reclama Edilena. “Esses fazendeiros sabem que vão sair, então eles estão derrubando tudo. O que vai sobrar vai ser pastagem, pouca mata… como vamos resolver isso depois da desintrusão?”
Condenação internacional
Em março deste ano, numa decisão histórica, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiropela morosidade na demarcação da Terra Indígena Xukuru de Ororubá, do povo Xukuru, em Pernambuco.
A Corte entendeu que o Estado brasileiro violou os direitos territoriais e de proteção judicial do povo Xukuru, em função de um processo de demarcação que já se arrasta por décadas e resultou em conflitos e na morte de diversas lideranças.
“A demora na demarcação da TI Xukuru deixou um rastro de sangue muito grande”, afirma o cacique Marcos Xukuru. Seu pai, Xikão Xukuru, foi uma das lideranças que foram assassinadas durante a luta pela demarcação da terra, e ele mesmo sofreu um atentado em que outros dois indígenas acabaram mortos.
“A demarcação iniciou em 1989 e, apesar da terra ter sido homologada em 2001, ainda não foi conclusa. Cada momento em que um povo avança na demarcação, há projetos, leis, portarias dos poderes Executivo e Legislativo que vão travando as coisas”, diz Marcos Xukuru.
Invasões a terras demarcadas
Mesmo as terras com o processo administrativo concluído não estão livres da pressão do agronegócio. Na semana que antecedeu o ATL, Adriano Karipuna, liderança da TI Karipuna, em Rondônia, foi à sede da Organização das Nações Unidas (ONU) para denunciar a invasão e inclusive o loteamento de áreas dentro da sua terra indígena, homologada há 20 anos.
“Nosso povo foi reduzido a cinco pessoas. Hoje somos 58, mas madeireiros, garimpeiros, fazendeiros e grileiros agem de forma incansável. O governo brasileiro não protege o território”, denunciou Adriano, durante a 17ª Sessão do Fórum Permanente sobre Assuntos Indígenas.
“Querem consumar a invasão às terras indígenas com venda de lotes, arrendamento de terras indígenas, uma nova fase de esbulho possessório”, alertou Cleber Buzatto, secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), durante plenária do Acampamento Terra Livre.
Assim como nas edições anteriores, o Acampamento Terra Livre 2018 teve como principal pauta a defesa dos direitos territoriais dos povos indígenas. A principal reivindicação do movimento atualmente é a revogação do Parecer 001 da AGU, apelidado de Parecer do Genocídio.