Mulheres mineiras de três gerações que vivem no Quilombo Manzo, em BH, chamam a atenção para o respeito ao ser humano e fim do preconceito

Jéssica Elias, Makota Cássia Cristina e Mãe Efigênia Maria

 

O sorriso de Mãe Efigênia ilumina o rosto de Makota Kidoialê, alegra o semblante da neta Jéssica Fernanda e, munido de intensa suavidade, parece preencher todos os espaços do Quilombo Manzo, no Bairro Paraíso, na Região Leste de Belo Horizonte.

Nesta geração de três mulheres mineiras, que vivem em comunidade e preservam a cultura ancestral africana, o Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado hoje (20) para reverenciar a memória de Zumbi dos Palmares (1655-1695), vai além de uma data.

“Precisamos de ‘consciência pela vida’, de respeito, de amor pelo ser humano”, afirma a matriarca Efigênia Maria da Conceição, de 75 anos, nascida em Ouro Preto e moradora da capital desde criança.
Na sala onde joga búzios e mantém um altar com santos católicos e divindades do candomblé, Mãe Efigênia toca em pontos nevrálgicos, que já lhe tiraram o sossego por décadas devido à cor da pele.

“Recebi pedrada, ouvi humilhação, meus filhos também já sofreram muito. Hoje, a situação melhorou, há mais entendimento. Devemos acabar com o egoísmo, o racismo, o preconceito, por isso falo em ‘consciência pela vida’, no sentido bem mais amplo”, diz a senhora que teve 13 filhos, cinco dos quais estão vivos, e se orgulha dos 26 netos, mais de 30 bisnetos e dos 20 meninos e meninas criados em sua casa e que lhe pedem a bênção.

Efigênia Maria da Conceição, de 75 anos, a Mãe Efigênia do Quilombo Manzo, de BH
(foto: LEANDRO COURI/EM/D.A PRESS)
Efigênia Maria da Conceição, 
de 75 anos, a Mãe Efigênia do Quilombo Manzo, de BH

“Precisamos de uma ‘consciência pela vida’, e respeito, de amor pelo ser humano”

SAGRADO

Com 11 famílias residentes, o Quilombo Manzo (na língua banto, significa casas) foi fundado por Mãe Efigênia em 1970, reconhecido pela Fundação Palmares em 2017 e merecedor do título de Patrimônio Cultural de Minas em 2018. A cada metro quadrado, as palavras identidade e sagrado se tornam frequentes.
“Amo meu cabelo, amo minha cor, amo minha identidade. E sempre transmiti tal sentimento à minha família. Tenho meu lado negro, dos antepassados que viveram em Ouro Preto e vieram da África escravizados, e também dos indígenas. Dos negros, tenho o gosto pela vida, pelas origens, pelo jeito de morar em comunidade. Nos índios, admiro a simplicidades das construções, das moradias de barro, sem reboco, e a liberdade de viver sem roupa”, conta Mãe Efigênia num jeito bem espontâneo.

No altar da matriarca, ficam as imagens de Nossa Senhora Aparecida, Santa Luzia, São Jorge, Santa Bárbara e outras católicas ao lado de Iemanjá, Pai Benedito e Preto Velho. “Nossa organização inclui a religiosidade, a cultura e as tradições. Tenho muita fé. Todos os dias ao acordar, olho para o céu e digo baixinho: ‘Senhor, dai-me força para guiar meu rebanho’. Cada ovelha aqui é uma joia.” Um dos maiores ensinamentos, avisa, é trabalhar. “Nunca parei um segundo, nunca pedi esmola, nunca me prostituí.”

As lembranças familiares aumentam as energias e fortalecem as heranças culturais. Mãe Efigênia nasceu no Morro da Queimada, um dos pontos mais importantes da geografia e da história de Ouro Preto e chegou a BH aos 9 anos. Ela fala com devoção da avó Maria de Lourdes, que lhe contava casos, do pai que “amansava burro” na Praça Tiradentes, no Centro Histórico de Ouro Preto, e da bisavó, de quem lembra muito pouco, e foi “indígena pega no laço”.
Do lugar que a memória denomina Campo do Raimundo, perto de Passagem de Mariana, chega o balançar das bateias, “que a gente chamava de carumbé”, ressalta a matriarca, à cata de ouro nos ribeirões. E o sabor das comidas dá saudade. “Gostava de comer feijão com pele de porco defumada…ela ficava pendurada sobre o fogão a lenha.”
Makota Kidoialê, de 51 anos, uma das lideranças do Quilombo Manzo
(foto: LEANDRO COURI/EM/D.A PRESS)
Makota Kidoialê, 
de 51 anos, uma das lideranças do Quilombo Manzo

“O Dia Nacional da Consciência Negra deve ser de reflexão. É importante trazer para a atualidade a luta de Zumbi dos Palmares e da mulher Dandara, contar esta história e dar continuidade na forma de políticas públicas%u201D


REFLEXÃO

Cada palavra na voz de Mãe Efigênia fortalece sua admiração por quem lhe deu a vida e traz o conhecimento repassado às novas gerações. Com o nome da tradição africana, Makota Kidoialê, nascida Cássia Cristina, de 51, é zeladora do terreiro de candomblé do Quilombo Manzo e guardiã da memória da comunidade, que se estende ao Bairro Bonanza, em Santa Luzia, na Região Metropolitana de BH.

“Vejo o Dia Nacional da Consciência Negra como de reflexão. É importante trazer para a atualidade a luta de Zumbi dos Palmares e da mulher Dandara, contar esta história e dar continuidade na forma de políticas públicas”, conta Makota Kidoialê, uma das lideranças do Quilombo Manzo, que, em 2012, por determinação da Prefeitura de Belo Horizonte, “então alegando risco de desmoronamento das construções”, teve que migrar para Santa Luzia.

“Hoje a situação está resolvida, mas não foi fácil. Precisamos sair com nossos objetos sagrados, as famílias ficaram divididas por um tempo, enfim, foi uma agressão.”

Para tantos séculos de exclusão, décadas de intolerância, dias de racismo e horas de violência, Makota encontra apenas uma palavra: ingratidão. “Nossos antepassados, diferentemente dos imigrantes europeus, vieram para o Brasil de maneira forçada. Sofremos tanta ignorância, hostilidade, sem ter qualquer recompensa. Temos nossa cultura e tradição, porque as cultivamos e não queremos passar por um apagamento de nossa trajetória”, afirma a belo-horizontina, que tem quatro filhos e dois netos.
As histórias familiares povoam a cabeça de Makota Kidoialê. Da avó paterna Maria das Dores, ouviu relatos que atravessaram o tempo. “Ela falava de negros de ‘orelha fubá’, relatando que saía um pozinho amarelo lá de dentro da orelha deles. Também citava os calungas, homens e mulheres com o branco da palma das mãos e da planta dos pés maior do que o natural. Então, a vida inteira, fico procurando esses sinais, negros com a ‘orelha fubá’ ou mãos e pés do jeito que minha avó dizia. Em resumo, estamos sempre procurando nossa territorialidade, nossas origens.”
Jéssica Fernanda Elias, de 29 anos, casada, mãe de Luan, de 8, e de Isac, de 5, moradora do Quilombo Manzo
(foto: LEANDRO COURI/EM/D.A PRESS)
Jéssica Fernanda Elias, 

de 29 anos, casada, mãe de Luan, de 8,

e de Isac, de 5, moradora do Quilombo Manzo

 

“A coletividade nos ensina a ser gente, a respeitar o próximo, a acabar com os preconceitos. Sou muito feliz aqui, perto da minha mãe e dos orixás%u201D

PRESENTE

Se a cultura se faz presente no quilombo, onde há oficinas, aulas de capoeira e outras atividades, incluindo festas regadas a muito samba, o sagrado permeia todas as ações. “Na hora da refeição, precisamos agradecer à Natureza, à Terra, tudo isso faz parte do nosso dia a dia”, diz Makota.

Em família, os integrantes do Quilombo Manzo usam palavras de dialetos africanos. Esse universo, formado por crenças e costumes, só faz aumentar a admiração de Jéssica Fernanda Elias, de 29, casada e mãe de Luan, de 8, e Isac, de 5, já iniciados no candomblé. Dona de uma lanchonete ao lado de casa, com o marido, Jéssica gosta de viver em coletividade. “A gente se sente mais protegida. Estou perto da minha mãe e dos orixás.”

Viver em comunidade causa admiração a muita gente, confessa Jéssica. “Para mim, a coletividade nos ensina a ser gente, a respeitar o próximo, a acabar com preconceitos. Sou muito feliz aqui.” Perto dali, Makota acrescenta: “O povo negro sobreviveu porque ficou unido. Se cada um seguisse sozinho e não se organizasse nos quilombos, certamente continuaria escravizado. Precisamos de harmonia no mundo, entre todas as religiões e povos”.
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