A partir de 11 de junho o Supremo Tribunal Federal (STF) terá a oportunidade de revisar a história do Brasil. Nesta data começará a ser analisado, por meio do plenário virtual, o Recurso Extraordinário (RE) nº 1.017.365, que fixará o entendimento da Corte sobre ocupação tradicional indígena e a sua abrangência.
“O direito dos povos indígenas à terra é cláusula pétrea”. Assim se posicionou o ministro do STF Roberto Barroso em entrevista concedida ao Jornal O Globo, publicada no dia 20 de abril de 2021. E assim se posicionam também os povos indígenas, conforme detalharemos neste artigo.
O RE 1.017.365 diz respeito à demarcação da Terra Indígena (TI) Ibirama La-Klãnõ, do povo Xokleng. O processo é originário da Justiça Federal de Santa Catarina e chegou ao STF por meio de um recurso da Fundação Nacional do Índio (Funai), que defende o direito territorial do povo. Ao aplicar o instituto da repercussão geral no caso, por unanimidade, no início de 2019, o STF indica que pretende julgar o processo e fixar ali uma tese, a qual servirá a todos os povos indígenas do Brasil, numa perspectiva de resolução definitiva para a matéria.
“O direito dos povos indígenas à terra é cláusula pétrea”
O povo Xokleng é parte nesse processo, direito que adquiriu tão somente quando o caso já havia chegado ao Supremo. Embora possa causar certo estranhamento para os profissionais de direito essa constatação, fato é que o direito de acesso à justiça para os povos indígenas no Brasil, apesar de garantido pela Constituição Federal, ainda enfrenta um grande desafio para a sua plena realização, uma vez que é recorrente a tramitação de processos judiciais sem a citação das comunidades diretamente afetadas.
Contudo, o elemento mais importante para o caso é que o povo Xokleng, por meio dos seus advogados, defendeu nos autos o direito constitucional dos povos indígenas como cláusula pétrea, inamovível e inflexível.
Assim concluiu o povo, no item 12 de suas alegações finais, entregues ao Supremo no ano de 2020: “os artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988 consistem em cláusulas pétreas, inatingíveis pelo poder constituinte reformador, sendo vedado, ainda, o retrocesso hermenêutico”.
Por tais motivos, entendemos que, além do direito à terra, são também cláusulas pétreas o direito dos povos indígenas à organização social, à crença, ritos, línguas, usos e costumes, tradições e o direito de acesso à justiça. A garantia de inflexão e inamovibilidade do direito à terra e da exclusividade do seu usufruto se estende e sustenta todos os demais direitos, pois derivados que são, todos eles, do território ancestral, originário.
Podemos afirmar, sem risco de erro, que estamos falando de cláusulas pétreas ao analisar os artigos 231 e 232 da nossa Carta Política de 1988, porque ali está o complexo e bem definido estatuto jurídico-constitucional da causa indígena. Daí que, nos termos do artigo 60, § 4º, da Constituição Federal, são direitos conquistados que não se submetem ao poder reformador, pois são garantias individuais[1].
“Além do direito à terra, são também cláusulas pétreas o direito dos povos indígenas à organização social, à crença, ritos, línguas, usos e costumes, tradições e o direito de acesso à justiça”
Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as Cláusulas Pétreas traduzem “a vontade da Assembleia Constituinte de retirar do poder constituinte reformador (…) a possibilidade de alterar determinado conteúdo da Constituição em razão de sua importância. Para alterar conteúdo disposto em cláusulas pétreas, é preciso promulgar uma nova Constituição”.
O debate sobre a inamovibilidade do direito constitucional indígena foi levado ao Supremo pela comunidade indígena Xokleng com o fito de obliterar retrocessos, seja no campo do Judiciário, seja na esfera dos demais poderes da República, e garantir a manutenção da higidez do texto constitucional.
Nesse sentido, o fato de o direito indígena estar fora do Título II da Constituição não implica em dizer, por esse fator, que não estaria assegurado pela barreira de imutabilidade. Diz o professor Daniel Sarmento, sobre o assunto, que o “STF já afirmou que a localização de um direito constitucional fora do Título II da Constituição, que trata dos direitos e garantias fundamentais, não basta para descaracterizá-lo como cláusula pétrea”. Para o professor, pode-se “invocar ainda outra razão adicional para considerar o direito as terras indígenas como cláusula pétrea. É que a interpretação constitucional deve dialogar com o Direito Internacional, especialmente no campo dos Direitos Humanos”.
“A interpretação constitucional deve dialogar com o Direito Internacional, especialmente no campo dos Direitos Humanos”
Nessa linha de raciocínio, para reforçar a garantia da inamovibilidade do direito indígena, a Corte Constitucional, no ano de 2011, ao julgar o ARE 639.337, de relatoria do Ministro Celso de Mello, firmou que “o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los”.
Todos os elementos do direito indígena que conformam o Capítulo VIII do Título VIII da Carta de 1988 são direitos individuais indígenas, em certo plano; mas vão muito além, diante da cosmovisão indígena, por serem direitos indisponíveis manejados no plano da coletividade, considerando a relação multicultural e pluriétnica das gentes indígenas, e por isso são cláusulas pétreas, inamovíveis, e contam com a proibição do retrocesso.
Então, justamente pelo fato de a nossa Constituição reconhecer a organização social dos índios, com todos os seus sistemas, inclusive o sistema jurídico, garante que ali estão justapostos direitos individuais e coletivos, protegidos pela imutabilidade do artigo 60, §4º.
Tanto o direito cultural como o direito territorial – portanto, direito material e imaterial dos índios – que perfazem para as etnias brasileiras um conjunto cosmológico, contínuo e universal, estão sistematizados em direito escrito, presente na Carta Magna; mas estão edificados também na mundividência e cosmovisão indígena (direito não escrito). Esse direito à diferença, fundamentado no Capítulo Dos Índios, garante também a existência de direitos costumeiros, sustentados na oralidade e que, justamente por isso, são cláusulas pétreas.
“Qualquer medida judicial, administrativa ou legislativa que vise alterar o texto constitucional, na parte que regula os direitos indígenas, é inconstitucional, pois estes são protegidos pela barreira da imutabilidade”
Restringir esse direito sistêmico não escrito dos índios, previsto e albergado no artigo 231 da Constituição Federal, por interpretação judicial ou por Emenda Constitucional, seria reduzir a vontade do constituinte originário e incorrer em vício de inconstitucionalidade. O mesmo ocorre com a proposta de limitar os direitos territoriais indígenas com base em um marco temporal, como propõe a teoria, flagrantemente inconstitucional, do chamado “fato indígena”.
Portanto, qualquer medida judicial, administrativa ou legislativa que vise alterar o texto constitucional, na parte que regula os direitos indígenas, é inconstitucional, pois estes são protegidos pela barreira da imutabilidade do artigo 60, § 4º da Carta de 1988, o que se soma à força do princípio da proibição do retrocesso em matéria de direitos humanos.
Por isso mesmo defende o povo Xokleng na Suprema Corte a inteireza da tese do indigenato e do direito originário, edificados por vontade do Constituinte Originário nos artigos 231 e 232 da Constituição, tornando esse direito plural dos índios em verdadeiras cláusulas pétreas.
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[1] Embora se aplique aos índios os direitos fundamentais previstos na Constituição, o estatuto jurídico da causa indígena, contidos nos artigos 231 e 232, carrega em si mesmos todos os direitos previstos na Magna Carta. Isso em função do reconhecimento da organização social, que abrange o direito oral, consuetudinário dos povos originários, bem como seus sistemas de justiça.