30/07/2017
Numa Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) marcada pela diversidade, tanto na programação oficial quanto nas ruas da cidade do sul fluminense, e pelo homenageado desta edição, o autor negro Lima Barreto, a escritora mineira Conceição Evaristo foi ovacionada pelo público, que lotou o Auditório e a Tenda da Matriz.
Vencedora do Prêmio Casa de la Américas pelo romance “Um defeito de cor”, Ana Maria Gonçalves comandou uma mesa emocionante em homenagem à conterrânea Conceição. Ao introduzir a amiga, a autora elogiou a “curadoria inclusiva e participativa” de Joselia Aguiar e bradou:
— Que a gente comece a pensar numa literatura feita por negros, indígenas e mulheres. Feminismo, racismo e imigração são três temas integrados nesta edição. Queremos mais escritores, curadores e mediadores mulheres e negras. Precisamos quebrar o estereótipo de que negros e mulheres não produzem de literatura e qualidade — disse Ana Maria, que lembrou a professora Diva Guimarães, que tomou a palavra numa mesa paralela do evento, num dos momentos mais marcantes da Flip. — Ela foi a musa desta edição.
Celebrada pelo público do início ao fim do encontro, Conceição Evaristo falou sobre sua obra, seu processo criativo, sua história de vida e questões como racismo, machismo, preconceito contra autores negros e a importância da união de forças para derrotar esses ainda tão presentes na sociedade brasileira.
— Esse momento significa a comprovação da força coletiva. Não estou aqui sozinha. E não podemos deixar de afirmar que não foi concessão. Este lugar é nosso por direito — disse Conceição, para nova forte rodada de aplausos.
O fio narrativo da conversa foi uma apresentação de slides com fotos da escritora, abrindo um caminho para contar a trajetória e a história de vida de Conceição. Na primeira imagem, uma menina de oitos anos posa para a câmera no dia de sua primeira comunhão.
— O catolicismo negro, em determinados momentos, traz a memória das religiões de matrizes africanas. Nem a força do cristianismo tinham conseguido apagar essa memória coletiva. Cresci também ao som das congadas, em que se celebra um mito católico, mas são marcados por rituais africanos. São práticas que os africanos conseguiram implantar e desenvolver para não perder uma referência que continua através do tempo e é retomada pela memória na explicitação da fé — comentou a escritora.
Para Conceição, “em matéria de fé, quanto mais proteção, melhor”:
— Por medidas de segurança, sou devoda de Imaculada Conceição. Mas, toda vez que estou com ela, eu negocio com Oxum. Falo padres nossos e canto para mamãe Oxum. Negocio com Santa Rita de Cássia, Iemanjá, Anastácia… Quase todas as entidades que me protegem são mulheres.
No diálogo, a autora de “Ponciá Vicêncio” retomou a imagem da escrava Anastácia, foi castigada com uma máscara para que não pudesse falar.
— Tenho a imagem dela no meu quarto há anos. Mas aquela máscara, que simboliza a interdição da fala, metaforicamente reverbera em grito. Ela foi tema de escola de samba, e não há nada mais efusivo que isso. Deu nome a um grupo de rap feminino do Rio, foi tema de filme com a Oprah Winfrey. Mas falamos com tanta veemência pelos orifício da máscara que a estilhaçamos — concluiu Conceição, novamente muito aplaudida.
Outro ponto da mesa foi a importância da educação, com lembranças do trabalho da escritora como professora do sistema público.
— Uma coisa que eu tenho certeza é de que eu tentei construir dentro de sala de aula uma ambiência diferente da que eu encontrei enquanto menina. tinham problema de falta de professores e materiais. Mas não podemos ter a ilusão de que a educação oferecida pelo estado pretende atingir as classes populares. A revolução da educação está mais na mão dos professores do que dos projetos educacionais — garantiu.
Segundo Conceição, “o único momento em que o homem negro se equivale ao homem branco é na hora do machismo”:
— Fora disso, sabemos muito bem quem a polícia irá criminalizar ao se deparar com um homem branco e outro negro.
— Quando crio a maternidade na literatura, como em “Olhos d’água”, estou pensando não só de uma maternidade do ponto de vista físico, mas das tias que tomam conta dos sobrinhos, das vizinhas que auxiliam, da amigas, nas mães de santo, que dão colo aos filhos no terreiro, das rainhas de congado. Se a literatura brasileira não consegue criar mulheres negras fecundantes, ela coloca a mulher negra sempre no lugar do mal, com um corpo estéril. É um corpo para o prazer. Quando ela aparecia como mãe, aparecia como mãe preta. A que existia para cuida da prole alheia. E é um mito horrível. Muita gente diz: “não sou racista, tive uma mãe preta, uma babá que me criou”. E a gente pergunta: e daí? — indagou Conceição.
A escritora, que enfrentou muitas dificuldades para estrear em livro, fez uma comparação entre a aceitação de duas grandes escritoras brasileiras. Uma branca, incensada pela academia, e outra negra, ainda pouco conhecida do grande público.
— Por que todos leem Clarice Lispector e conseguem perceber que ela fala de uma dúvida existencial, das angústias humanas, e não percebem isso na Carolina Maria de Jesus? A Carolina é uma grande autora brasileira, mas os pesquisadores dizem que ela fere as normas cultas da língua. Mas eu digo que são as normas ocultas, porque só algumas categorias sociais conseguem acesso a essas normas cultas da língua — disse Conceição, ovacionada por uma plateia lotada que fez questão de aplaudi-la de pé.