19/04/2020
Entrevista especial com Célia Xakriabá. Liderança indígena fala sobre os principais desafios em tempos de pandemia
Se para a humanidade a pandemia da Covid-19 (novo coronavírus) representa uma ameaça real à vida de milhares de pessoas, para os povos indígenas pode significar o extermínio em massa. Célia Nunes Correa, mais conhecida como Célia Xakriabá, liderança indígena, relata, em entrevista especial à Rede Cerrado, os desafios enfrentados pelos povos originários desde que a pandemia chegou ao Brasil.
Ela, que foi a primeira integrante do seu povo a concluir um mestrado e é a primeira indígena a cursar doutorado em antropologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), também fala sobre a importância da ancestralidade e dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas no processo de cura daquilo que ela intitula como uma verdadeira “guerra respiratória”. Aos 30 anos, ela é professora, ativista e uma das mulheres à frente da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas (Apib). Confira a entrevista que marca este 19 de abril, Dia do Índio, que também é dia de luta!
Está sendo um ano bem diferente e atípico para nós. Isso porque nós temos de ir para o enfrentamento duas vezes: além desse vírus frente a pandemia, temos de enfrentar um vírus sistemático que é anunciado no retrocesso das medidas do governo. Por exemplo, está passando em regime de urgência um PL (Projeto de Lei 191/2020) que flexibiliza a mineração (em territórios indígenas), sob a alegação de ser um trabalho indispensável e que merece ser dado continuidade. Eu vejo que é uma crise civilizatória desse modelo evolucionista, desse progresso da morte que nós, indígenas, sempre falamos. Nós chegamos nesse momento.
Para nós, povos do Cerrado, tem uma especificidade muito grande por conta da segurança e autonomia alimentar. No caso, nós vivemos em uma região do Cerrado que é semiárida e que tem sido mais árida do que nunca. Hoje, em torno de 70 povos indígenas do Brasil vivem no Cerrado e este sempre foi um Bioma muito invisibilizado. Falam muito em outros Biomas, mas o Cerrado é o segundo maior do mundo e queima muito mais que a Amazônia. Mesmo assim, o Cerrado produz uma diversidade imensa da medicina tradicional jamais vista em qualquer outro Bioma.
Para nós, o período da autonomia alimentar marcada por vários frutos do Cerrado é temporário e isso tem sido um desafio, porque contamos com esse calendário sazonal. Só que tudo está mudado. O mundo mudou e o calendário também. A maioria das comunidades guardam frutos, pequis, mas isso tem sido um grande desafio porque as mudanças climáticas afetaram muito o nosso Bioma e mesmo as famílias que plantam não conseguem plantar o suficiente para manter e sustentar a comunidade, sobretudo nesse momento.
Mas ao mesmo tempo, um dos grandes pontos positivos que a gente tem é exatamente essa diversidade de plantas medicinais. Pelo menos para a gripe comum tem trazido muitos resultados positivos.
Nós, povos indígenas, conhecemos essa história. Historicamente, o extermínio dos povos indígenas se deu pelo avanço do capitalismo e pelo processo colonial. As principais armas trazidas contra os povos indígenas foi justamente essas epidemias, a gripe, o sarampo, as comidas contaminadas, as roupas contaminadas. Foi preciso a humanidade reviver isso para entender o que nós, povos indígenas, historicamente, sofremos.
Nem população brasileira, nem a humanidade serão exterminadas na sua totalidade. Mas se o vírus chegar nos territórios indígenas, isso pode significar um extermínio em massa.
E isso é muito preocupante. Todo o nosso esforço é para que esse vírus não chegue em nossos territórios. Embora ainda não tenha cura para a humanidade, os nossos territórios não têm estrutura.
Nota
Indígenas e não indígenas estão imunologicamente suscetíveis a vírus que nunca circularam antes, como é o caso do novo coronavírus causador da Covid-19. Estudos em várias partes do mundo e no Brasil atestam, no entanto, que os índios são mais vulneráveis a epidemias em função de condições sociais, econômicas e de saúde piores do que as dos não índios, o que amplifica o potencial de disseminação de doenças. Condições particulares afetam essas populações, como a dificuldade de acesso aos serviços de saúde, seja pela distância geográfica, como pela indisponibilidade ou insuficiência de equipes de saúde.
Para nós, não é somente o princípio ativo que cura, mas todo o processo. Tenho refletido nos últimos dias que a cura para esta pandemia vai estar nos princípios ativos, nos laboratórios, na ciência biológica, mas, ao mesmo tempo, a cura estará no nosso ativar, do princípio de humanidade.
É muito importante refletir sobre isso: se as pessoas não entenderem a importância da proteção dos povos indígenas como um grupo que está em situação de vulnerabilidade, nós teremos de enfrentar um segundo momento de guerra respiratória e civilizatória que são as mudanças climáticas e que nós, os povos indígenas, já ecoamos há muito tempo.
Se matarem os povos indígenas, se não existir a presença dos povos indígenas, o planeta vai ter a febre mais alta, vai entrar em convulsão.
É importante nos entender, povos indígenas, não somente como uma forma utilitarista, mas entender essa nossa sustentação. Quando arrancaram o que há de mais precioso na terra, que são as árvores, arrancaram junto parte da pele. E quando arrancaram essa pele a terra sangrou, mas ninguém escutou. Quando atingiram a respiração da Terra com a grande emissão de gás carbônico, o mundo também não se atentou porque ninguém quis questionar, de fato, o capitalismo.
Foi preciso esse momento de guerra respiratória atingir o pulmão da humanidade para as pessoas despertarem e entenderem que não se pode viver apenas expirando, sem inspirar. Essa guerra respiratória atingiu em cheio o pulmão do mundo.
Nós precisamos tirar disso tudo, um momento de reflexão da nossa casa interior. Se passarmos por todo esse momento e não entendermos que precisamos reinventar esse nosso ser no mundo, não vamos entender profundamente o que está acontecendo. Por isso, é importante a gente retomar esse templo.
A luta contra essa guerra respiratória não é apenas uma luta contra o tempo, é uma luta pela retomada do tempo. As pessoas estavam totalmente aceleradas, sem tempo para si, mas agora o mundo foi obrigado a se recolher.
Esperamos que essa reflexão do ‘fique em casa’, ‘fique na aldeia’, ‘fique no território’, seja uma reflexão para a estrutura do poder entender que foi por isso que nós sempre lutamos, pelo direito de ficar no território. A gente fala que quem tem território tem para onde voltar, tem colo e tem cura. Nesse momento, isso é muito importante.
O governo poderá justificar o extermínio dos povos indígenas como uma fatalidade dessa guerra respiratória, mas não se pode justificar um genocídio apenas por isso. Uma vez que o governo não estabelece um plano de contingência, é o Estado brasileiro quem vai ser o responsável, caso os povos indígenas sofram um extermínio em massa.