21/06/2021
Sessenta e três indígenas Warao compõem o grupo de venezuelanos que migram pelo Brasil há quatro anos. Com 34 crianças, família chegou a Belo Horizonte no início do mês e não sabe ainda se permanecerá na capital
Para o cacique Santo, que lidera o grupo, prioridade é garantir a sobrevivência dos parentes que viajaram para o Brasil e enviar recursos para aqueles que permaneceram na Venezuela
O cheiro de sobrecoxas de frango grelhadas no gramadão da Vila Alberto Hurtado, no bairro Santa Amélia, na região da Pampulha, a disposição de bacias com farinha de trigo e água para preparação de pão e o som agudo de gargalhadas de crianças que se comunicam em dialeto próprio alertam os sentidos para a presença da maior comunidade indígena Warao em Belo Horizonte. Oriunda das margens do rio Orinoco, na Venezuela, a população subsiste no Brasil desde 2018 em migração que percorreu nove municípios nas regiões Norte e Nordeste, além de Montes Claros e Sete Lagoas, em Minas Gerais.
Com patriarcas da aldeia ribeirinha encabeçando o deslocamento forçado pelo país à procura de condições básicas para o sustento do núcleo e para a sobrevivência financeira de parentes que permaneceram na Venezuela, indígenas Warao partiram de Sete Lagoas para Belo Horizonte no início do mês e, alcançando a rodoviária, no centro, se alojaram na entrada do terminal à espera de um abrigo temporário. Quatorze horas depois, o Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR) pôde transferi-los para a chácara da instituição na Pampulha. Sessenta e três indígenas Warao compõem essa família que aportou na capital de Minas Gerais – entre eles, 34 crianças e adolescentes. Analista social do Serviço Jesuíta, a indígena Yolis Lyon refugiou-se no Brasil há uma década, e, atualmente, é a única intérprete da população Warao em BH. Barreiras linguísticas e mão-de-obra sem qualificação são as principais dificuldades dos Warao para encontrar trabalho no Brasil, como ela detalha.
“O grupo que recebemos é um núcleo familiar, são avô e avó, seus filhos, genros, noras, netos e bisnetos. Aqui eles são classificadas como mão-de-obra não qualificada e essas pessoas não conseguem ser inseridas no mercado de trabalho formal pela falta de escolaridade. Outro problema é a barreira linguística. Eles arranham o português, palavras em espanhol e o idioma Warao. É difícil conseguirem emancipação social na sociedade brasileira por essas diferenças”, explica.
Afora a preocupação com o próprio sustento e dos parentes geograficamente próximos, migrantes Warao em Belo Horizonte também são afligidos pela urgente necessidade de enviar economias para os que permaneceram no país natal, como pontua o cacique Santo, liderança do núcleo. “Saímos da Venezuela à procura de alternativas para a família. Vivemos em uma situação de vulnerabilidade aqui, mas coletamos, pedimos dinheiro nos sinais das ruas para mandar a nossos irmãos que estão na Venezuela. Eles estão passando fome, muita fome. Lá acabou tudo”.
Esmola no Brasil, fome e escassez de medicamentos na Venezuela
A carência na assistência à saúde e a escassez de remédios igualmente compõem o cenário da realidade enfrentada pelos indígenas Warao que não migraram para o Brasil. “Muitas crianças, homens, mulheres, vovós, faleciam por falta de medicamentos lá. A alimentação não chega. A comida é cara, muito cara. Pela farinha de trigo, agora, precisamos pagar (na Venezuela) algo como U$ 50 (cerca de R$ 250). Óleo também é caro, açúcar… Tudo”, reflete o Warao Jhon Vargas, 32.
Como a própria família, ele percorreu municípios como Pacaraima, Boa Vista, Manaus, Belém, São Luís, Fortaleza, Natal, Recife, Feira de Santana, Montes Claros e Sete Lagoas até parar em Belo Horizonte na tarde do último 8 de junho.
O indígena é pai de um menino, hoje com 2 anos e meio. “Na Venezuela, morávamos na rua. Aqui, moramos em rodoviárias, nos abrigos para Warao, pedimos dinheiro nas ruas… Quando viajava com meu filho eu tinha muito medo de que alguém o roubasse ou discriminasse minha mulher”, conclui. Um entre os 63 membros do núcleo familiar acolhidos em Belo Horizonte, Vargas compõe o grupo de 4,5 milhões de refugiados, migrantes e solicitantes de asilo que partiram da Venezuela. O país da América Latina responde pelo segundo maior deslocamento migratório do mundo, atrás apenas da Síria, de onde escaparam 6,6 milhões de pessoas segundo o relatório do Alto Comissariado das Nações Unidos para Refugiados (ACNUR) divulgado na sexta-feira (18) por ocasião do Dia Mundial do Refugiado, em 20 de junho.
Em BH, hábitos e costumes permanecem
A agulha com linha preta percorre em cruzes o tecido esverdeado para a confecção do traje típico para mulheres Warao, com babados, retalhos coloridos e miçangas a compor os vestidos com comprimento na altura dos joelhos. Alinhadas à tradição do artesanato, que corriqueiramente comercializam nos centros urbanos, as indígenas da etnia Warao não perderam trejeitos, dialetos e hábitos com a migração para o Brasil. Após percorrerem cerca de 4.000 quilômetros em território brasileiro de 2018 para cá, em ônibus e a pé, o grupo Warao mantém forte elo com as próprias raízes, sustentando, principalmente, a tradição alimentar, como pontua a analista Yolis Lyon.
“Quando o grupo de 63 parentes chegou à rodoviária de Belo Horizonte, nós levantamos todas as necessidades deles para acolhê-los da melhor maneira possível, dentro de sua cultura e com uma alimentação própria”. Tendo recebido marmitas preparadas no Restaurante Popular da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), os indígenas não conseguiram comer. A dieta que mantêm é baseada em restrições alimentares. A comunidade ingere inhame, mandioca, farinha de trigo, frango, manga e banana, e opta por preparar as próprias refeições, manipulando os alimentos segundo a herança Warao.
O núcleo familiar sustenta o desejo de permanecer no Brasil. “Ficar no Brasil é muito melhor”, encerra Jhon Vargas. Sobre a permanência na capital mineira, não há certezas. “Vamos continuar em Belo Horizonte se conseguirmos trabalho, se não, seguiremos viagem”, afirma o cacique Santo.
Deslocamento no Brasil
O agravamento da situação de emergência humanitária na Venezuela obrigou o deslocamento forçado de indígenas para países vizinhos na América Latina a partir de 2014. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), atualmente 5.800 indígenas venezuelanos vivem no Brasil. Cerca de 4.000 deles pertencentes à etnia Warao, e 140 destes estão em Minas Gerais. Veja no mapa interativo a seguir o trânsito migratório dos três grupos de indígenas Warao que estão em municípios mineiros – clique nos ícones para conferir os detalhes:
—