02/12/2021
Vem do guarani a palavra que representa o tema da 19ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Nhe’éry (ou “onde as almas se banham”) é como o povo indígena mais populoso do Brasil se refere à Mata Atlântica, e foi esse o termo escolhido para ambientar a edição deste ano entre plantas e literatura.
Devido à pandemia, o evento repete o formato virtual de 2020, mas tem como uma das novidades prestar homenagem coletiva, e não individual. O tributo foi feito a pensadores e líderes indígenas que morreram em decorrência da Covid-19.
Realizada entre os dias 27 de novembro e 5 de dezembro, a festa conta com 19 mesas que abordam como as obras literárias olham para árvores, florestas e meio ambiente e quais podem ser as soluções para a atual emergência sanitária. “Seria impossível, e imprudente, minimizar a imensa tragédia vivida, desejando neste momento apenas uma volta ao ‘normal’ — que foi uma das causas do problema”, escrevem os curadores na justificativa do tema. “É preciso urgentemente imaginar outras formas de vida, sem a centralidade no “humano”, preparando o terreno para evitar o agravamento da crise climática na qual o planeta já vive”, acrescentam.
É no mesmo sentido que o coletivo de curadores (ou floresta curatorial, como se autointitulam) direciona a homenagem anual da Flip a todos os grandes nomes indígenas que conversavam com Nhe’éry — e tantas outras matas — e tiveram suas vidas interrompidas pelo coronavírus. O Brasil já registrou 615 mil mortes pela Covid-19 e, até esta quinta-feira (2), foram 1.238 óbitos de indígenas de 162 povos, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Conheça a seguir algumas das histórias relembradas e celebradas pelo evento e que, ao mesmo tempo, estendem o tributo a todas as vítimas da pandemia.
Alípio Xinuli Irantxe, 81 anos
Excelente tocador de flautas, Alípio Xinuli Irantxe sempre se dedicou à preservação da cultura do povo Manoki. Teve sua vida marcada por lutas e conquistas, incluindo o enfrentamento da epidemia de sarampo que quase aniquilou seu povo, que vive em Terras Indígenas (TI) no oeste do Mato Grosso. Seu Alípio faleceu em 24 de dezembro de 2020, após dias internado em um hospital em Cuiabá.
Bernaldina José Pedro (Meriná), 76 anos
Reconhecida por sua alegria, Bernaldina José Pedro, a Meriná, foi mestra de rituais de cura e benzimentos do povo Macuxi. Com conhecimentos milenares, era considerada uma referência na TI Raposa Serra do Sol, no norte de Roraima. Foi, inclusive, uma das protagonistas na defesa da homologação do território, sem deixar de denunciar qualquer violência contra povos indígenas. Passava adiante sua sabedoria sobre a cultura dos Macuxi, incluindo cantos, danças, artesanato, rezas e medicina tradicional.
Também conhecida como vó Bernal, ela tinha seis filhos e 15 netos. “A memória de Meriná não pode ser apenas de doçura, mas de bravura, como bem fazia ao fechar o semblante diante das injustiças, quando a flor virava onça e defendia”, escreveu o artista Jaider Esbell, filho adotivo de Bernaldina e também falecido em novembro de 2021.
“Tenho quase certeza que foi por amar demais que minha mãe o contraiu [o coronavírus]. Deve ter sido dando algum abraço, ou benzendo alguma criança adoentada, ou fazendo suas honrarias de bem receber em sua comunidade aqueles que lá chegavam”, disse Esbell sobre a morte da vó Bernal. Ela faleceu em 23 de junho de 2020, após passar dez dias internada em um hospital em Boa Vista.
Domingos Venite, 68 anos
Líder do povo Guarani Mbya, Domingos Venite foi cacique e guardião da TI Guarani do Bracuí, a maior do Rio de Janeiro, localizada em Angra dos Reis. Teve grande destaque ao acompanhar equipes no campo e colaborar em pesquisas antropológicas pela demarcação de sua terra, homologada em 1995.
Ao saber da morte de Domingos, o Centro de Trabalho Indigenista (CTI) escreveu uma nota em que exaltou os conhecimentos de luta que o cacique passou adiante. “Ainda nos anos 1990, Domingos foi o primeiro agente de saúde na aldeia Sapukai [dentro da TI Guarani do Bracuí]. Liderança fiel ao xamõi (ancião) João da Silva Wera, trabalhou também na equipe de Saúde no Vale do Ribeira. Foi um grande amigo e colaborador”, lamena o texto. O defensor de novas políticas de saúde indígena faleceu no dia 21 de julho de 2020, em Angra.
Maria de Lurdes de Oliveira Brandão, 69 anos
Como parteira, Maria de Lurdes de Oliveira Brandão trouxe muitas crianças do povo Mura ao mundo e é considerada uma das principais guardiãs da memória ancestral dos lagos e rios de seu território. Também se dedicava a cuidar das plantas de cura em seu quintal, onde sempre chegava alguém precisando de tratamentos.
Por morar em Nazaré, às margens do rio Madeira, em Rondônia, dona Lurdes viu o distrito sofrer com as inundações do rio após a construção das hidrelétricas de Santo Antônio e de Jirau. Passou, então, a proteger cada uma das mudas das plantas medicinais, retirando-as sempre antes das cheias e plantando-as novamente quando a água descia. Faleceu em 26 de maio de 2020, em sua casa.
Poani Higino Pimentel Tenório, 65 anos
Referência no estudo da história indígena no Brasil, o professor Higino Tenório foi um dos responsáveis por iniciar o processo de decolonização epistemológica na pesquisa sobre arte indígena e arqueologia. Discordou de métodos de arqueólogos não indígenas e os ensinou sobre a integração de ecossistemas vivos, incluindo mentes humanas e não humanas.
O professor fundou a primeira escola indígena do seu povo, Tuyuka, que vive no noroeste do Amazonas. Também foi escritor, benzedor e especialista em arte rupestre, tendo sido reconhecido como membro honorário da Associação Brasileira de Arte Rupestre (Abar) e internacionalmente como o primeiro pesquisador indígena do campo no Brasil pela International Federation of Rock Art Organisations (IFRAO). Faleceu em 18 de junho de 2020, em Manaus.
Sibé Feliciano Lana, 83 anos
Artista plástico e escritor, Sibé Feliciano Lana tinha um vasto trabalho e era reconhecido nacional e internacionalmente por suas obras, expostas em diversos países e consideradas uma marca da TI Alto do Rio Negro. Em seus desenhos e pinturas, mesclava narrativas míticas e paisagens do noroeste amazônico para contar as histórias de seus antepassados. Membro do povo Desana, seu nome era Kenhiporã, que quer dizer “filho dos desenhos dos sonhos”, segundo a agência Amazônia Real.
“Uma biblioteca humana, grande artista, amigo, irmão e exemplos para muitos jovens indígenas”, foi como o também artista Denilson Baniwa descreveu o colega. “Uma profunda dor por cada mestre que perdemos. Ficaremos com a lembrança dos ensinamentos e das risadas alimentadas durante sua passagem por este planeta”, completou. Feliciano Lana faleceu no dia 12 de maio de 2020, no município amazonense de São Gabriel da Cachoeira.
Zé Yté Kayapó, 88 anos
Zé Yté foi colaborador central dos grandes estudos sobre a etnobiologia Kayapó, jogando luz sobre a importância da defesa de pautas ambientais na Amazônia e da conservação da biodiversidade. Seus conhecimentos auxiliaram cientistas a investigar a relação entre o povo Mebêngôkre Kayapó e o manejo das florestas e do Cerrado, além de ter contribuído para pesquisas antropológicas.
Seus esforços mais recentes se concentravam em conseguir apoio para novas pesquisas sobre plantas medicinais e alimentícias em seu território, no sudeste do Pará, onde lutava pela soberania alimentar de seu povo. Faleceu no dia 2 de junho de 2020, na aldeia Gorotire, localizada no município paraense de Cumaru do Norte.
As informações sobre os homenageados na Flip foram retiradas dos depoimentos do Memorial Vagalumes, projeto dedicado a prestar homenagem aos indígenas mortos e atingidos pela Covid-19 no Brasil e em países vizinhos. O nome está relacionado à característica mais marcante desses insetos. “Acreditamos que os povos indígenas são como vagalumes no mundo atual. De tempos em tempos fazem piscar uma luz em meio à escuridão”, explica o site.
*Com supervisão de Luiza Monteiro