Sem apoio do governo para combater a pandemia de coronavírus nas comunidades brasileiras, alguns povos indígenas encontraram uma maneira de mobilizar recursos contra a Covid-19: lançar livros. O interessado paga R$ 10 e recebe a obra em PDF por e-mail. O recurso é dividido entre a aldeia e o autor.

O livro que deu origem à série é “Djantchy Djaterê”, da escritora guarani Geni Nuñez, 29 anos, criadora do projeto. “A ideia surgiu em abril, no comecinho da pandemia. Na época não tínhamos ainda o auxílio emergencial e, como a principal fonte de renda vinha da venda dos artesanatos nas cidades, com o fechamento e a pandemia isso foi se interrompendo e aumentando a precariedade nas aldeias. Foi aí que decidi lançar o livrinho”, conta a autora, em entrevista à coluna.

A ideia se multiplicou e, hoje, há uma série de obras de escritores indígenas engajados na causa. A organização desses livros tem sido feita por Julie Dorrico, que edita e publica. Entre os títulos disponíveis estão “A indiazinha chapéu verde”, “A lenda de Jurecê”, “Cantos da Mãe Terra” e “O Macaco e a Onça”.

“Desde pequena minha mãe me contava a história do Djatchy Djatere, que ficou popularmente conhecido como Saci Pererê, e resolvi escrever esta história para que mais pessoas saibam que o Saci é guarani”, relata a escritora, que contou com uma equipe de artistas indígenas na diagramação, na ilustração e na revisão da obra.

“O valor ficou R$ 10 e vendemos até agora para mais de mil pessoas”, afirma. “Com o dinheiro arrecadado pudemos auxiliar várias aldeias guarani na compra de alimentos, de materiais agroecológicos e de produtos de higiene.”.

Como funciona?

Interessados em receber o livro devem escrever para geninunez@gmail.com. A autora encaminha o e-book e os dados da conta para depósito. “Os dados vão variando a cada mês porque vamos avaliando qual aldeia está demandando naquele momento. Os pagamentos vão direto para a conta de lideranças. Então 100% do valor tem sido revertido para nossa luta”, explica a autora.

“Meu objetivo era que, ao mesmo tempo em que a gente fazia a arrecadação também pudéssemos colaborar na luta antirracista, levando informações às pessoas sobre nossas histórias, nossas sabedorias, tão apagadas no imaginário de um folclore racista.”.

“Para nós, guarani, a palavra também pode ser uma medicina, um cataplasma que colocamos nas feridas, um abraço, um acolhimento espiritual. Eu escrevo para existir, para artesanalmente poder construir afetos em um mundo que faça sentido para mim, pra quem sou, pra quem somos.”

Geni Núñez, escritora.

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Branquitude e etnocídio

 

Graduada em psicologia, Geni é mestre em Psicologia Social e doutoranda no Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Ela mora em Florianópolis e faz parte da ABIPSI, articulação brasileira de indígenas psicólogos.

“Como sempre morei na cidade, busco apoiar os parentes que vivem em aldeias usando os espaços que acessei para facilitar nossos projetos coletivos”, diz. Além do livro, Geni ministra cursos sobre branquitude e etnocídio, temas que pesquisa no doutorado, e outros assuntos, como descolonização dos afetos.

“Este é outro dos caminhos que encontrei para reverter de alguma forma os saberes que aprendi na Universidade para benefício do nosso povo. Até agora já tivemos em torno de 10 turmas destes cursos, sempre com retorno de 100% dos valores para aldeias guarani. Em todas as iniciativas das quais faço parte eu conto com orientação e conselhos das nossas lideranças e me sinto muito honrada de somar com essas gotinhas no oceano das nossas lutas.”.

 

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