A Justiça condenou União, Funai e Governo de Minas Gerais por atrocidades cometidas contra os Krenak durante a ditadura militar. Os indígenas foram expulsos de suas terras e obrigados a viver confinados em uma fazenda.
Waldemar Krenak foi arrastado por um cavalo por falar krenak quando criança — Foto: Douglas Krenak/Arquivo pessoal
Uma criança de 10 anos foi amarrada ao rabo de um cavalo e arrastada por vários metros porque insistia em falar o idioma krenak. Waldemar costumava ser espancado com regularidade por não aceitar a “reeducação” proposta pelos “professores” da Fazenda Guarani, campo de concentração indígena, criado pelo regime militar em Carmésia, no Vale do Rio Doce.
“Meu pai sofreu muito. Apanhava demais. O pai dele, meu avô Jacó, morreu lá. Foi tirado à força de nossa terra. Amarrado como um animal selvagem que deveria ser exterminado. Foi torturado porque não aceitou a prisão. Ele está enterrado lá. A gente não sabe bem onde. Tiraram até a chance de fazer uma cerimônia fúnebre”, disse Douglas Krenak, filho de Waldemar e líder indígena.
Índios Krenak têm marcas profundas de violações sofridas na época da ditadura
A Fazenda Guarani foi criada em 1972 para confinar homens, mulheres e crianças que foram expulsos de suas terras em Resplendor, às margens do Rio Doce, considerado sagrado para o povo Krenak.
Fazenda Guarani em Carmésia — Foto: Redes sociais/Reprodução
Depoimentos colhidos pela Comissão da Verdade confirmam o cotidiano de terror imposto aos indígenas. Espancamentos e estupros eram comuns.
“O sofrimento entre os sobreviventes é latente. Muito difícil tocar nestes assuntos. A crueldade era sistemática”, disse o pesquisador Marco Túlio Antunes Gomes, que colheu parte destes depoimentos.
Jacó Krenak foi torturado e morto na Fazenda Guarani — Foto: Douglas Krenak/Arquivo pessoal
Douglas Krenak, líder indígena — Foto: Douglas Krenak/Arquivo pessoal
As atrocidades cometidas na fazenda motivaram um processo em 2009 impetrado por Waldemar e Douglas. Em 2015, o Ministério Público Federal entrou com uma ação de reparação. Passados seis anos, agora que a Justiça Federal condenou a União, a Funai e o governo de Minas Gerais pelo que foi feito aos Krenak durante a ditadura.
“Meu pai morreu no ano em que eu e ele demos entrada no processo que resultou em tudo isso”, contou Douglas.
Veja alguns documentos colhidos pela Comissão da Verdade sobre a Fazenda Guarani:
Relação de indígenas na Fazenda Guarani — Foto: Comissão da Verdade/Reprodução
Lista de indígenas confinados na Fazenda Guarani — Foto: Comissão da Verdade/Reprodução
Famílias indígenas confinadas na Fazenda Guarani — Foto: Comissão da Verdade/Reprodução
O Reformatório Krenak, prisão criada para abrigar indígenas de todo o país, também era palco para torturadores. Pessoas eram espancadas, submetidas a trabalhos forçados, e até colocadas em pau-de-arara.
Não havia julgamento. Grande parte dos “crimes” atribuídos eram bebida e saída da aldeia, como descreveu Oredes Krenak em documento da Comissão da Verdade.
“A gente era proibido de pescar, proibido de caçar com esse presídio aí, com esses confinamento que eles tinham aí. Inclusive aprisionava até o nosso povo também, que gostava de sair para vender seus artesanatos em Aimorés, Colatina, Governador Valadares. Quando voltava, eles achavam que a gente estava desobedecendo a ordem deles, então tinha que aprisionar o índio. Ficar preso dois dias com fome”, contou ele.
Vestígios do reformatório indígena em Resplendor — Foto: Fred Bottrel/TV Globo
Outra violação foi a criação da Guarda Rural Indígena, composta por pessoas das aldeias que vigiavam e puniam os presos. A primeira turma foi treinada pela Polícia Militar de Minas Gerais e era composta por 84 indígenas de diferentes etnias e regiões do país, entre elas Craós (Maranhão), Xerente (Goiás), Carajás (Pará), Maxacali (Minas Gerais) e Gaviões (Tocantins).
A medida causou desagregação dentro do grupo, ferindo a cultura e o espírito de irmandade entre os povos.
A única foto que documenta uma cena de tortura durante a ditadura militar é de um indígena em um pau-de-arara sendo “exibido” em Belo Horizonte, na presença de autoridades como secretários de estado. O evento era a formatura da 1ª turma da Guarda Rural Indígena.
Indígena em pau-de-arara é exposto a autoridades em Belo Horizonte — Foto: Jesco von Puttkamer/Reprodução
O que determina a Justiça
Segundo a decisão da juíza federal Anna Cristina Rocha Gonçalves, a União, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o governo do estado terão que realizar, em um prazo de seis meses, “após consulta prévia às lideranças indígenas Krenak, cerimônia pública, com a presença de representantes das entidades rés, em nível federal e estadual, na qual serão reconhecidas as graves violações de direitos dos povos indígenas, seguida de pedido público de desculpas ao Povo Krenak”.
A Funai também terá que concluir o processo administrativo de delimitação da terra de Sete Salões, considerada sagrada para os indígenas. Só em 1993 que os Krenak conseguiram parte dos 40 mil hectares originais de volta. Porém, esta área ficou de fora.
“A decisão acontece em um momento muito importante que é a discussão do marco temporal das terras indígenas. Se esta questão vigorasse, e não o que determina a Constituição, estas pessoas jamais teriam conseguido retornar para sua terra. Porque isso só aconteceu depois da constituição de 88. Eles ainda estavam na Fazenda Guarani’, disse o procurador.
A Justiça também determinou que a Funai e o Estado de Minas Gerais implementem “ações e iniciativas voltadas ao registro, transmissão e ensino da língua Krenak, de forma a resgatar e preservar a memória e cultura do referido povo indígena, com a implantação e ampliação do Programa de Educação Escolar Indígena”.
A União deverá reunir toda a documentação relativa às graves violações, disponibilizando-a na internet, no prazo de seis meses.
Na ação, o Ministério Público Federal (MPF) ainda pede a punição do capitão Manoel dos Santos Pinheiro, responsável pelo reformatório na época de sua criação. O órgão reivindicou a perda da patente e da aposentadoria de militar.
Povo Krenak foi expulso da terra e confinado em fazenda; foto de 1987 — Foto: Cimi/Reprodução/Lígia Simonian
Indígenas ouvidos pela Comissão da Verdade nos últimos anos relataram abusos cometidos pelo capitão:
“Não tinha juiz, não tinha advogado, não tinha Justiça, não tinha nada. O capitão Pinheiro era quem decidia quem ia para a cadeia e quanto tempo ficava”, disse a indígena Maria Júlia, em depoimento.
“Se um militar queria uma índia, ela tinha que dormir com ele e o marido ficava preso. E isso aconteceu muitas vezes. O próprio capitão Pinheiro vinha de vez em quando na aldeia Krenak e praticava estes atos de violência sexual contra as mulheres”, contou Douglas Krenak, também em depoimento.
A defesa do militar reformado nega as acusações. A juíza entendeu que o pedido de punição do MPF deve ser analisado pela Justiça Militar, mas determinou que ele também é responsável pelas violações dos direitos dos indígenas.
O que dizem os condenados
A União e a Funai — ambas representadas pela Advocacia-Geral da União (AGU) — disseram que não receberam intimação até a manhã desta quinta-feira (16).
A Advocacia-Geral do Estado informou que ainda não foi notificada da decisão.