No marco dos 60 anos da ditadura militar, o Estado brasileiro pode reconhecer pela primeira vez na história sua culpa na perseguição, tortura e morte de indígenas durante a ditadura militar. Nesta terça-feira (2), será julgado na Comissão da Anistia o pedido de perdão inédito referente aos casos de violações cometidos contra o povo Guarani-Kaiowá e ao povo Krenak.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a liderança indígena Geovani Krenak pontua que o julgamento é histórico pois é o reconhecimento de um direito coletivo por parte do estado brasileiro.
“Tentaram exterminar nosso povo pelo fato da gente ser indígena, da gente ser Krenak”, coloca o jovem, que é vereador no município de Resplendor (MG).
Dentre os episódios que marcam os ataques contra o povo Krenak durante a ditadura estão o deslocamento forçado, criação da Guarda Rural Indígena (Grin) e a instalação do Reformatório Krenak, presídio construído dentro do território indígena em Resplendor (MG) e que violentou representantes de 23 etnias.
O local foi classificado no relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) como “instalação prisional pela Funai e local de tortura, morte e desaparecimento forçado de indígenas”. Para Geovani, a definição é que o espaço se assemelhava a um campo de concentração dentro do próprio espaço sagrado do povo Krenak.
“Reformatório krenak é uma forma muito singela de se falar que era um campo de concentração. Assim como no nazismo aconteceu com os judeus, foi feito talvez pior com o povo Krenak aqui. Não tinha nada de reformatório. Isso é uma forma de amenizar um local de tortura, um local de práticas desumanas”, pontua Geovani.
“Quando a gente passa lá, olha para o presídio onde meu pai ficou preso, onde ele foi amarrado e arrastado por um cavalo como exemplo para outras crianças. Aonde o meu avô foi preso, torturado e depois foi exilado em outra aldeia indígena. Então, assim, as marcas são inúmeras. E talvez também a inação do estado brasileiro em reconhecer os crimes que cometeram, talvez seja o que nos traz mais revolta”, completa a liderança.
A reparação coletiva para o povo Krenak é defendida pelo Ministério Público Federal (MPF) desde 2015. O pedido de reparação foi indeferido em 2022 na gestão de Jair Bolsonaro (PL), após ficar parado na Comissão de Anistia durante os governos de Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB).
Em março de 2023, porém, uma mudança no regimento interno da Comissão de Anistia permitiu o julgamento: antes somente era possível conceder reparações individuais às vítimas da ditadura. A revisão de decisões antes consideradas indeferidas, como o caso dos Krenak, também foi outra alteração no regimento da comissão.
Além do pedido de reparação à Comissão de Anistia, o MPF move uma Ação Civil Pública contra a União, o estado de Minas Gerais e contra o major reformado da Polícia Militar de Minas Manoel dos Santos Pinheiro, considerado pela CNV o responsável direto responsável direto pelo Reformatório Krenak e pelo recrutamento de indígenas para a Guarda Rural Indígena (Grin). Ele morreu em 20023 sem ser condenado por seus crimes.
“A gente tá talvez criando um movimento de vanguarda, para que sejam assistidos esses parentes que também foram exilados, torturados e mortos durante todo período da ditadura militar. Então a gente espera que esse julgamento ele de fato comece para os povos indígenas”, explica Krenak.
A liderança indígena ainda pontua a importância da demarcação do território de Sete Salões como uma resposta às violações e à invasão do território Krenak durante a ditadura por parte de fazendeiros.
“O nosso povo está doente, por conta de tudo que está acontecendo, o processo do regime militar, o processo de morte do nosso sagrado. Então a gente precisa reunir forças pra poder continuar lutando. E isso passa muito pela demarcação da nossa terra”, finaliza.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Pela primeira vez na história, poderá ser concedida anistia de forma coletiva dentro da Comissão de Anistia. Qual a importância do julgamento desta terça-feira (2) para o povo Krenak?
Geovani Krenak: A decisão é histórica pelo fato de que o estado brasileiro está dando sinais de que tudo que o governo cometeu na época da ditadura através das instituições, através de pessoas, será julgado. Então, é histórico porque é o reconhecimento de um direito coletivo. Por mais que a gente tenha na Constituição, resguardado no artigo 232, que o estado reconhece as organizações indígenas, o modo de vida das populações indígenas, no dia dia, em tudo que a gente vivenciou, ainda não.
Então é histórico porque está se reparando direitos coletivos de um povo que foi exterminado, perseguido, exilado e morto. E é o primeiro caso de de um julgamento coletivo após a mudança do entendimento da comissão de anistia. Então, o povo aguarda com muita ansiedade esse julgamento e espera que de fato seja histórico nos direcionamentos. É histórico se de fato, tudo aquilo que a gente sofreu na época da ditadura seja reparado
Geovani, a gente pode falar um pouco mais sobre essa mudança na regulação que tornou possível esse julgamento coletivo ser feito. Isso pode ser considerado uma conquista para os povos indígenas?
É interessante a gente conversar sobre isso, porque a comissão da anistia foi criada para para reparar os perseguidos durante o regime militar, mas ela exclui os povos originários. Nosso povo foi removido coletivamente, foi perseguido por falar a língua. Como não olhar para isso dentro da comissão, inclusive na lei de anistia. A gente está indo para esse julgamento, e a gente vai sugerir uma mudança na lei de anistia. Ela precisa olhar o que a gente sofreu, porque a Constituição reconhece, reconhece o nosso modo de vida, reconhece a nossa organização. Como que a comissão de anistia leva tanto tempo para colocar o caso dos perseguidos coletivamente? então, a gente, inclusive, foi marginalizado durante todo esse processo.
Além da questão Krenak, tem uma questão dos povos originários. A gente tá talvez criando um movimento de vanguarda, para que sejam assistidos esses parentes que também foram exilados, torturados e mortos durante todo período da ditadura militar. A gente espera que esse julgamento comece para os povos indígenas, porque a anistia, a lei da anistia, não está de acordo, inclusive com a Constituição.
Estamos levando também essa exigência do povo Krenak de reparar economicamente, culturalmente, socialmente, e de uma forma abrangente. A gente não espera que haja uma reparação simbólica. De simbolismos nosso povo já está por aqui.
A gente espera uma reparação completa, concreta, e a partir de um momento que a gente consiga também olhar para os povos que foram muito massacrados, muito perseguidos, mas que só estão colocados nesse processo o povo indígena Krenak e o povo Guarani. A gente espera de fato criar uma legislação onde a gente consiga olhar para os povos indígenas do Brasil no que diz respeito à comissão de anistia.
Nas suas entrevistas, você situa que ao longo da história houveram dois processos de quase extinção do povo Krenak. Você poderia delimitar quais foram esses períodos?
Olha, na verdade a gente está também em um momento hoje de tentativa de massacre e de extinção da nossa cultura, uma vez que a gente teve um crime ambiental, talvez o maior crime da história do nosso povo e do nosso país, com relação a morte do Watu, nosso rio sagrado. Mas a gente pode pontuar guerras que foram emblemáticas, como a guerra justa de 1808 declarada por Dom João Sexto, que mandava matar e exterminar os botocudos, que é um termo pejorativo a qual eles se referiam ao meu povo. Quando eles começaram a adentrar por esses vales, encontrou nosso povo e nosso povo nunca aceitou a destruição das matas, nunca aceitou essa forma de como eles vinham chegando. Então esse é o momento em que onde o nosso povo foi quase terminado por completo. Mas a gente conseguiu sobreviver e conseguimos nos organizar.
Aí a gente entra já no período do Brasil onde tem as mineradoras, como a Vale, entrando num território e, consequentemente, o período do regime militar. Eu posso pontuar que foram os dois períodos de tentativa de extermínio legalizado pelo estado brasileiro. Em um momento, lá em 1808 e depois, na época da ditadura. Então foram os 2 períodos que o nosso povo escapou por pouco do extermínio. São dois períodos muito difíceis da gente rememorar e que a gente ainda tem marcas de crimes ambientais e também de crimes contra a pessoa humana, contra o indígena.
Agora entrando mais especificamente no período do regime militar. Eu queria que você falasse um pouco quais são as marcas da ditadura que ainda estão presentes entre o povo krenak?
Olha, ainda causa muita dor esse período. Tentaram exterminar nosso povo pelo fato da gente ser indígena, da gente ser Krenak. Nosso povo sofreu porque a gente nunca negou, nem mesmo sobre as armas, sobre imposição, sobre as ameaças, a gente nunca deixou de falar que nós éramos e que nós somos e que a gente vai continuar sendo Krenak. Então isso trouxe também consigo outras táticas de extermínio, que era o exílio, que era a proibição de falar a língua Krenak, a língua borun, que é do tronco macro-jê. A gente era proibido de falar. Até hoje alguns velhos, nosso povo que sofreu nesta época, ainda têm dificuldades para ter liberdade de falar da forma que a gente deve falar. Já tivemos projetos para poder organizar isso em nossa aldeia.
Tem o presídio que foi construído dentro da nossa aldeia, perto da onde a gente tomava banho. Quando a gente passa lá onde a gente tomava banho, a gente olha para o presídio onde meu pai ficou preso, onde ele foi amarrado e arrastado por um cavalo como exemplo para outras crianças. Aonde o meu avô foi preso, torturado e depois foi exilado em outra aldeia indígena. Então, assim, as marcas são inúmeras. E talvez também a inação do estado brasileiro em reconhecer os crimes que cometeram, talvez é o que nos traz mais revolta. Porque nós temos as leis, nós temos os tratados ratificados no Brasil, como a convenção 169, nós temos vários tratados internacionais que falam dos direitos dos povos originários e que, mesmo com ação civil pública, com artigos pré estabelecidos na Constituição, a gente vê ainda uma certa distância do estado brasileiro em tentar reparar e criar políticas públicas de atenção a esses povos que sofreram tanto na ditadura, assim como grande parte da população.
Então, é revoltante e muito forte essas táticas que aconteceram na época do regime militar e a gente vê, de uma outra forma, acontecendo agora também. Para você ver, só depois de 30 anos é que foi reconhecida a possibilidade de um julgamento coletivo na comissão de anistia. Então isso também é doloroso para o povo Krenak. Então a gente espera que com esse julgamento a gente comece de fato a reparação mesmo, porque ela ainda não aconteceu.
Geovani, há levantamentos que evidenciam um total de 23 povos indígenas com representantes presos e torturados dentro do reformatório Krenak. Muitas pessoas classificam esse espaço como um campo de concentração dentro de um território indígena. A gente pode definir dessa forma?
Reformatório Krenak é uma forma muito singela de se falar que era um campo de concentração. Assim como no nazismo aconteceu com os judeus, foi feito talvez pior com o povo Krenak aqui. Não tinha nada de reformatório. Isso é uma forma de amenizar um local de tortura, um local de práticas desumanas. A aldeia indígena Krenak é um local sagrado, mas esse reformatório é o lugar que causa medo onde foi construído esse presídio.
Ao mesmo tempo que nós temos um local sagrado onde a gente nasceu, onde a gente foi criado, onde a gente pesca, planta e cria os nossos filhos, é um local onde tem um presídio onde essas torturas ainda assombram nosso povo Krenak. Então é muito antagônico ter no mesmo local um local abençoado e sagrado, e também um que nos causa espanto.
Nós temos ainda as ruínas desse presídio e é um local que as vezes a gente evita até olhar quando está passando. Eu não sofri na época, mas meu pai sim, o meu avô, torturas físicas. Estas coisas na memória ainda causam espanto, porque olho para o local onde estou passando e vejo que foi ali que meu pai foi perseguido por ser Krenak, por falar o idioma nativo, por querer brincar e nadar nas águas do Rio Doce. Era esse o motivo de tortura. Então é esse local que a gente está falando.
Inclusive outros parentes vinham para cá, cumpriam pena por às vezes somente sair do território por brigas internas de parentes. Vinham para cá, ficavam presos, às vezes morriam e às vezes caíam e não tinha como retornar para as suas aldeias. É desse lugar que a gente está falando. Às vezes é difícil a gente rememorar isso com os parentes mais velhos, porque ainda está muito vivo. É muito recente. Inclusive a gente está com dificuldade de levar os parentes para poder acompanhar o julgamento. Então é desse local que a gente fala, onde foram torturados não só o povo Krenak, mas os parentes de outras aldeias. As práticas de tortura eram as mais horríveis, dá muita revolta ainda nos dias de hoje.
Para encerrar nosso último tema relacionado a ditadura e o povo Krenak. A gente percebe que além dos processos de violência e tortura, o regime militar também foi um período marcado pela invasão de fazendeiros dentro do território indígena em Resplendor (MG). Uma das formas de reparação que o povo Krenak reivindica é a demarcação do território de Sete Salões. Gostaria que você falasse sobre a importância desta demarcação e como se deu o processo de invasão das terras Krenak?
Durante o processo de ditadura, a gente teve essa invasão do nosso território. Isso é algo que acontece desde sempre, principalmente nos territórios indígenas. Mas a época da ditadura foi crucial para poder de fato determinar isso. O nosso território foi invadido, parte dele destruída. Tanto é que em 1997 o governo estadual decreta o parque estadual dos Sete Salões. É onde tinha um pouco de mata, o governo decreta parque, mas deixa com os fazendeiros. Já tem estudos desde 1920 da reivindicação do povo Krenak a respeito desse território, que tem as lutas sagradas, os nossos cemitérios sagrados. E que tem água. A gente pode ir nas minas de sete salões e beber água com a mão. Daqui a um tempo eu acho que isso vai ser cada vez mais difícil. A gente pode fazer isso lá nos sete salões.
E é o local do povo Krenak que aqui se pode fazer as práticas culturais, uma vez que o nosso rio foi destruído, foi contaminado. Então esse julgamento é histórico também porque ele reconhece e prevê o reconhecimento do estado brasileiro de que o povo Krenak foi torturado, massacrado, exilado, ou seja, a gente foi retirado do nosso território de origem.
Isso passa pra gente é muito importante para poder intensificar nossa luta junto com o estado. É preciso devolver o nosso território. Não é demarcar, é preciso devolver nossa terras. Temos um processo parado na Funai, onde a gente quer que o mínimo seja cumprido. A gente não está querendo nada que seja de ninguém, uma vez que hoje é um parque estadual. Já nem é dos fazendeiros, porque o governo já sabe que aquilo é um território indígena.
A gente espera que esse território seja devolvido antes que acabe nossas águas, acabe nossas grutas sagradas. Hoje há um turismo predatório onde as pessoas estão indo lá e acabando com nossas pinturas rupestres. Isso é inadmissível para o nosso povo Krenak. São pinturas sagradas. Então a gente tem muita esperança que isso caminhe para que a gente possa se proteger.
A gente protegendo Sete Salões é proteger algo espiritual para o povo Krenak, é perpetuar nossa cultura. Como eu te disse, está pré-estabelecido na Constituição, a gente não tá querendo nada que seja inovador, a gente só quer o cumprimento da lei, nada mais do que isso, exigindo a demarcação imediata de sete salões
Tem alguma coisa que eu não perguntei você gostaria de acrescentar?
Eu queria que ficasse enfatizado nesse bate papo nosso essa principal luta que é a demarcação da nossa terra. Tem outras coisas. Tem reparação, tem pedido de desculpas, mas o nosso povo só tem condições de lutar futuramente com o nosso território. O nosso povo está doente, por conta de tudo que está acontecendo, o processo do regime militar, o processo de morte do nosso sagrado. Então a gente precisa reunir forças pra poder continuar lutando.
E isso passa muito pela demarcação da nossa terra, pra gente praticar o nosso ritual sagrado, pra gente poder voltar a fazer coisas que eu fazia quando era mais jovem. Nadar. Olha você, que coisa tão simples. Meus filhos não podem. E a gente não pode fazer isso. Então a demarcação de Sete Salões irá fortalecer nosso povo mais uma vez para que a gente continue brigando não só por direitos nossos como povos indígenas, mas de todos que precisam do meio ambiente minimamente equilibrado.
Edição: Rodrigo Durão Coelho