07/09/2020
Fonte:https://www.hypeness.com.br/2020/09/livro-e-coisa-de-elite-nao-dizem-coletivos-perifericos-professores-e-economistas/?fbclid=IwAR3Al0TOLs_RJLPfWWmieRnT1geY_1nLOJR3KT0lSSkyBh3yNnN4k2IBioEO Ministro da Economia, Paulo Guedes, anunciou que incluirá um imposto de 12% sobre o mercado editorial em sua tardia e polêmica proposta de reforma tributária. O argumento principal do governo é que livros seriam objetos de luxo, bens de elite, enfim, coisa de rico e esse tributo seria uma forma de cobrar de quem paga mais. Mas será a ideia do governo faz sentido? (Já te adiantamos que não.)
A tributação zero para livros teve seu pontapé inicial por autoria de Jorge Amado, então deputado da Assembleia Constituinte pelo Partido Comunista Brasileiro. O autor brasileiro de enorme proeminência nacional e internacional lutou pela taxação zero para o papel usado em impressões obras literárias na Constituição de 1946 e a conquistou. Em 2004, as taxações de PIS e Cofins sobre livros são zeradas. Entretanto, com a criação de um novo imposto – o CBS (Contribuição de Bens e Serviços -, o Ministério da Economia quer reverter esse processo.
74 anos depois, o Ministro Paulo Guedes acredita que a volta desse imposto pode ser uma das pontes para o tão sonhado equilíbrio fiscal do país. Entretanto, existem dúvidas sobre o quanto o Estado poderia arrecadar com esse tributo e o quanto ele poderia desacelerar o já cambaleante mercado editorial brasileiro.
Conversamos com professores, economistas, escritores e editoras independentes para entender como essa alteração tributária pode impactar o mercado editorial e o que ela representa como política de estado no Brasil.
Não faltam exemplos no nosso país de escritores e leitores periféricos. A última Festa Literária das Periferias trouxe dados importantes: 97% dos participantes do evento se declaram leitores frequentes de livros, 72% são não-brancos e 68% eram das classes C, D ou E. Seria um pouco difícil de acreditar que, por exemplo, na última e polêmica Bienal do Livro no Rio de Janeiro, com mais de 100 mil participantes, a maioria seria da elite carioca. Não era, não poderia ser, e não foi.
No dia 14 de setembro, o Instituto Pró-Livro vai publicar a 5ª edição de sua pesquisa ‘Retratos da leitura’. Feita em parceria com o Itaú com dados do IBOPE Inteligência, o estudo mostra que 27 milhões de brasileiros nas classes C, D e E que são consumidores de livros. Com o aumento de 12% no valor dos livros que será redistribuído ao consumidor final, resultando num aumento de 20%, segundo especialistas, os mais afetados serão os mais pobres.
“O preço exerce peso maior nas classes mais vulneráveis: enquanto na classe A, o preço é fator de influência para 16% dos que já compraram um livro, na classe C a proporção chega a 25% e nas classes D/E, vai a 23%. Ao observar a renda familiar, a influência do preço praticamente dobra ao se comparar os indivíduos com renda familiar entre 5 a 10 salários mínimos (15%) e aqueles com renda de 1 a 2 salários mínimos (28%)”, afirma o estudo.
O Brasil só promulgou um Plano Nacional de Leitura e Escrita em 2018. Isso já existe na Colômbia desde os anos 50. 55% das escolas brasileiras não tem biblioteca ou sala de leitura. Mesmo relegados pelo estado, os brasileiros de Classe C, D e E movimentam a economia do mercado editorial.
“O Brasil perpetua, de modo geral, uma visão de que a favela, a periferia, os grupos mais pobres, não gostam de ler, mas isso não é verdade. O que ocorre é que não há política pública que seja voltada ao incentivo da leitura. Eu trabalho há 20 anos com literatura marginal/periférica e o que observo nesse período é que os grupos mais oprimidos e marginalizados são o que mais anseiam pela literatura. No entanto, falta investimento, falta disposição, falta vontade, falta jogar fora a síndrome da distinção, que faz a classe média se sentir superior porque consegue entrar na Livraria Cultura e comprar um livro que está entre os mais vendidos da lista da Veja, mas que tem pavor se ver uma criança da favela lendo ou, ‘mais grave’, escrevendo”, afirma Jéssica Balbino, jornalista e curadora de eventos literários, autora de ‘Traficando conhecimento’.
O caro amigo Fred di Giacomo abordou melhor a questão na sua coluna no Ecoa, do UOL. “A falácia do “tudo que é bom (incluindo livros) é coisa de rico (de boy)” aborda o tema sob outra perspectiva. “A quem interessa que o trabalhador brasileiro, as pessoas negras, os indígenas, a maioria do Brasil que é composta pela classe média, os trabalhadores e pobres não tenham acesso a saúde, boa alimentação, autocuidado, informações, relacionamentos saudáveis e momentos, merecidos, de lazer? A quem interessa seguir convencendo a maioria de que o que é bom é para poucos?”, afirma o escritor, em sua coluna.
“Quarto de Despejo” é livro de cabeceira para todos que pensam em literatura periférica. Carolina de Jesus narrou de forma poética sua vivência periférica e preta na Favela do Canindé, em São Paulo, através de um diário que virou livro, símbolo da literatura marginal, que ganharia ainda mais força a partir de então.
Mas foi a partir dos anos 2000, com a emergência da cultura do hip-hop que a literatura periférica começou a ganhar voz; Ferréz e Sérgio Vaz se tornaram dois expoentes desse movimento que começou a turbinar a voz silenciada das periferias na literatura. Na última década, o slam começou a dominar a quebrada: as batalhas de poesia começaram a narrar as experiências periféricas, dos pretos, dos pobres, das mulheres, dos LGBT, em apoteóticas apresentações faladas da literatura, de fato, marginal.
Nesses eventos e nos pontos culturais de São Paulo não é difícil encontrar os marreteiros da literatura, que vendem no boca a boca seus textos, em sua maioria impressos em pequenas xeroxes, impressões de mimeógrafos ou em livretos de baixa impressão para tentar arrecadar uma graninha da palavra literária.
“Nossos autores e autoras, na sua maioria, não vivem das vendas de livros, quase todos têm ocupações secundárias. Na verdade, conheço pouquíssimos escritores que vivem da literatura”, afirma Cristiano Silva Rato, editor da Caos e Letras. “O mercado editorial das editoras independentes é diferente do mercado voltado para a acumulação de capital e domínio, centralização dos saberes. Costumo dizer que as pequenas editoras são as grandes reveladoras de escritores no Brasil e que mantêm viva a chama de realizadores da literatura contemporânea. Nossos custos são maiores, pois, diferente das editoras capitalizadas, não produzimos em massa. Um imposto direto sobre o livro dificultaria mais ainda o acesso e a diversidade de produção de literatura no país.”, completa.
Se no celeiro de escritores que se dá nas editoras pequenas a subsistência já é completa, o projeto de Guedes parece tentar barrar qualquer ascensão das vozes ali representadas. Com o imposto, o salto dos xeroxes para o livro impresso e editado profissionalmente é quase impossível.
“Eu não consigo desvincular este projeto de um, ainda maior, que é o de calar as vozes emergentes e efervescentes da literatura, especialmente a marginal e periférica”, reitera Jéssica Balbino.
Das grandes empresas às pequenas editoras, desde 2006 o mercado editorial está em crise. A queda real de faturamento do mercado está na casa dos 30%, com inflação somada. O movimento é mundial, mas o cenário brasileiro piora a situação.
A crise econômica que se alastra no país desde 2015 ganhou a pandemia do novo coronavírus como cereja do bolo (com queda de 9,7% do PIB em 2020). O mercado editorial foi duramente impactado. A Fnac fechou suas fecharam suas lojas físicas em 2018. Saraiva entrou em recuperação judicial e Cultura também. Entre 2018 e 19, a produção das editoras caiu 4,5%.
“No Brasil, o mercado encontrou uma redução estrutural na demanda. O número de leitores no Brasil é muito baixo. Nosso índices educacionais mostram um resultado muito pífio quanto à proficiência em leitura. A gente tem um índice elevado da população que não possui capacidade leitora. Isso impede que o mercado cresça, ainda que a gente viva num país de 200 milhões de habitantes”, afirma Mariana Bueno, economista e consultora da Nielsen Books.
Quando olhamos para pequenas editoras e autores independentes, o buraco se aprofunda ainda mais. Com tiragens menores e possibilidade pequena de fazer best-sellers na lista de Veja, as margens de lucro dos pequenos produtores é ínfima e um imposto dessa natureza poderia acabar com esse mercado.
“A produção do livro é mais cara para as independentes. Como trabalhamos com pequenas tiragens, o custo de impressão da unidade é maior. Além disso, você precisa lidar com outros custos, como toda editora: imposto, serviços editoriais e gráficos embutidos no livro, site, hospedagem, correios, taxa de venda em livrarias virtuais. O que acontece é que muitos de nós, pequenos editores, já trabalhamos no limite, no mínimo lucro para que o negócio seja viável. Um imposto de 12% levaria muitas microeditoras a fechar as portas. Teríamos que embutir o valor no preço do livro, o que também não seria bom, nem para o leitor nem para a editora, pois significaria uma queda nas vendas”, afirma Eduardo Sabino, editor da Caos e Letras, editora independente de Belo Horizonte.
As próprias editoras maiores entrariam em crise com esse tipo de taxação e teriam de repensar seus modelos de negócio. Em uma carta aos seus leitores, o Grupo Companhia das Letras condenou a taxação de Paulo Guedes e procura pressionar congressistas a barrarem o projeto.
“Ainda não se descobriu nada mais barato, ágil e eficiente do que a palavra impressa – em papel ou telas digitais – para se divulgar as ideias, para se contar a história da humanidade, para multiplicar as vozes da diversidade, para denunciar as injustiças, para se prever as mudanças futuras e para ser o complemento ideal da liberdade de expressão”, afirma carta assinada por diversas associações de editores, livrarias e escritores, divulgada pela Companhia das Letras.
Ainda que as editoras menores não possam ser impactadas porque operam pelo Simples Nacional (o mesmo sistema que os MEIs e PJs pagam seus impostos), a ideia é que essa taxação possa limitar novas vozes nas grandes editoras. “As editoras já sinalizaram que não vão conseguir operar dessa forma. Isso impacta diretamente a nossa bibliodiversidade. As editoras vão produzir aquilo que dá mais certeza que será vendido. Elas não vão produzir sem certeza”, afirma Mariana Bueno. “Tem muita gente média fora do Simples que vai ser impactada e isso vai impactar a nossa bibliodiversidade”. Teremos a distopia dos livros de auto-ajuda e de youtubers.
A tributação de livros pode parecer mais uma da soluções para tentar resolver a complexa Reforma Tributária que se debate há anos no Brasil. Uma das principais vozes dos projetos da alteração na maneira como pagamos impostos no país é o economista Bernard Appy, que é consoante com o discurso de Guedes sobre a taxação do livro.
Na América Latina inteira — com exceção do Chile, que cobra uma taxa reduzida no seu IVA (Imposto sobre valor agregado) — não há imposto sobre livros. Um estudo da International Publisher’s Association (IPA), mostra cerca que 40% dos países do mundo tem taxa zero para publicações impressos. Outros 33% tem regimes especiais para a cobrança do imposto, categoria em que o Brasil se enquadraria.
O novo modelo de taxação proposto pelo governo que elimina diversos outros impostos e simplifica a tributação é bem visto por economistas e é utilizado em boa parte do planeta. A CBS (Contribuição sobre bens e serviços) é o nome dado por Guedes ao IVA (Imposto sobre Valor Agregado). Enquanto os debates técnicos se alastram sobre as alíquotas e divisão entre estados e municípios, os efeitos do novo imposto no mercado editorial estão em debate.
A economista Mariana Bueno afirma que a proposta arrecadaria pouco e traria mais benefícios que prejuízos. “Há uma estimativa que o governo arrecade entre 500 e 600 milhões, o que do ponto de vista das contas públicas é muito pouco. O saldo com a incidência da CBS é negativo. Não só porque esse montante representa muito pouco pro estado, mas fundamentalmente porque esse setor deveria ser encarado como estratégico pro Estado. Uma vez que ele tem relação direta com indicadores de organismos internacionais para medir índices de desenvolvimento socioeconômico. A arrecadação com a taxação do livro é muito baixa, porém a perda com a taxação é imensa.”
O especialista em tributação Rodrigo Orair afirma que isenções de impostos podem criar distorções no sistema de arrecadação e gerar mais desigualdades. “Infelizmente isso não é diferente com bens culturais. Quando você isenta o livro, todo mundo que tem algum tipo de publicação impressa pede isenção também. O jornal pede isenção, o gibi pede isenção, e muita coisa irrelevante entra na isenção. Como você não consegue evitar as brechas no sistema, você acaba isentando muito mais coisas irrelevantes do ponto de vista cultural e pedagógico do que aquela parcela relevante”, afirma o economista.
Ele defende uma alíquota “mais baixa possível” e projetos de pedidos de isenção para projetos culturalmente relevantes. Entretanto, ele pondera. “[Um projeto de subvenção] poderia sim burocratizar. Por isto tem que ser bem feita (não suscetível a influências de governos). No final das contas, os países acabam dando alíquotas especiais por estas dificuldades.”
A estimativa da tributação não foi anunciada. Guedes também disse que “vai dar livros para os pobres”, como uma maneira de resolver a problemática proposta. Não explicou como o projeto funcionaria e, portanto, é impossível compreender como isso aconteceria.
“A incidência da CBS vai restringir esse acesso e afetar diretamente a bibliodiversidade. Os impactos vão muito além do próprio livro em si. Estamos falando da capacitação da mão de obra do país, que tem relação direta com a entrada de investimento direto e externo. É uma indústria pequena, de 5 bilhões, o que é pouco comparado ao PIB, mas é uma indústria que cumpre papel central no desenvolvimento socioeconômico do país”, conclui Mariana.
Fotos: Foto 1: © Getty Foto 2: Divulgação/Bienal do Livro do Rio de Janeiro Foto 3: Divulgação/FNAC Foto 4: Editora Malê/Divulgação Foto 5: IPA, tradução nossa Foto 6: © Getty Images